De 114 serviços de referência para realização do aborto legal no Brasil, apenas quatro, ou seja, 3,5% do total, realizam a interrupção de gestações acima de 20 semanas em casos de violência sexual: dois no Nordeste e dois no Sudeste. Entre eles, estão o Hospital de Clínicas de Uberlândia, no interior de Minas Gerais, e o Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, capital de Pernambuco. Os demais pediram para não ser identificados pois temem represálias. 

Essas informações foram obtidas a partir de um cruzamento de dados do Projeto Vivas, organização que ajuda pessoas que gestam a terem acesso ao aborto legal no Brasil ou no exterior, e demais entrevistas feitas para esta reportagem. Foram considerados serviços de referência aqueles disponíveis no Sistema do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde em novembro de 2023.

O aborto é permitido em três situações no país: quando a gravidez é resultado de um estupro, quando coloca em risco a vida da pessoa gestante e quando o feto não desenvolve o cérebro (anencefalia). Apesar da legislação brasileira não colocar limite para interromper gestações avançadas, a maior parte dos serviços não faz abortos acima da 20ª ou 22ª semana de gestação, podendo variar desde que o feto tenha até 500 gramas.

“Normalmente, quando falamos de gestação avançada, tratamos de mulheres altamente vulnerabilizadas, que não conseguem acompanhar a gravidez ou que têm uma relação traumática com a violência e levam tempo para falar. Podem ser adolescentes e meninas que não têm ciclos menstruais regulares e demoram para entender que sofreram uma violência da qual resultou uma gestação”, explica Tatiana Campos Bias Fortes, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo. 

Um caso emblemático divulgado em 17 de novembro pela Folha mostra o quanto a imposição do tempo gestacional reforça a vulnerabilidade das pessoas que procuram pelo cuidado em aborto legal. Mirian Bandeira dos Santos, uma mulher indígena de 35 anos, morreu no parto após ter a interrupção negada no Paraná, deixando dois filhos. Ela descobriu a gravidez com 20 semanas, na Unidade Básica de Saúde de Guarapuava, a cerca de 250 quilômetros de Curitiba. 

A gestação teria sido resultado de uma violência sexual cometida por um ex-namorado que não aceitou o fim da relação entre os dois. Após a violência, Mirian relatou ter tomado contraceptivo de emergência, além de fazer uso de anticoncepcional injetável com regularidade. Ela também fez um teste de gravidez em seguida, e deu negativo. 

Em 18 de agosto, ela foi acolhida por uma assistente social da Rede de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do município, que a descreveu como “extremamente abalada e fragilizada”, relatando que “não conseguia se sentir mãe” e “não conseguia amar essa criança”. Foi através da assistência social que o caso chegou ao Nudem estadual. 

A Defensoria buscou o Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, que negou o atendimento devido à idade gestacional avançada. Então, acionou o Projeto Vivas, que conseguiu uma vaga pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a interrupção no dia 28 de agosto, em outro estado, mas antes Mirian foi procurada por agentes públicos da assistência social do município, questionando o procedimento e dizendo que ela poderia ser “processada” caso seguisse com o aborto legal. 

“Não acho que tenha sido por má-fé do serviço, mas por uma falta de compreensão, por ausência de diretrizes e fluxos e pelo temor que permeia o tema. O medo de responsabilização e criminalização do aborto está em volta dessa temática, e acaba fazendo com que as pessoas, querendo ter alguma segurança, imponham barreiras descabidas que nesse caso acabaram fazendo com que ela desistisse”, disse Mariana Martins Nunes, defensora pública e coordenadora do Nudem do Paraná, em entrevista ao Catarinas.  

Mirian desistiu do aborto e parou de responder ao Nudem. Em contato com o Serviço Social do município, a Defensoria soube que ela optou pela entrega voluntária para adoção. No entanto, em 15 de novembro, ela faleceu durante o parto devido a uma embolia pulmonar. 

Apesar de não ser a primeira situação de aborto legal negado em razão da idade gestacional acompanhado pela defensora Nunes, ela considera esse caso simbólico e pede por diretrizes para que a interrupção legal da gravidez seja realizada em qualquer momento.

“A gente consegue ver toda a peregrinação da mulher em busca do aborto legal e ela acaba falecendo no parto, deixando duas crianças pequenas. Acredito que deva servir como um divisor de águas para que passemos a enxergar a questão do aborto em qualquer momento como saúde pública e como direito humano básico”, afirma a defensora.

Em nota, a Secretaria da Saúde do Estado do Paraná disse investir continuamente em apoio técnico e institucional aos profissionais e serviços da Rede de Atenção à Saúde do estado, conforme disposto pelo Ministério da Saúde, acrescentando que não há normativas técnicas da pasta que orientem o procedimento de interrupção em idades gestacionais no caso de violência sexual, nem sobre o procedimento de indução de óbito fetal.

Por e-mail, a administração municipal de Guarapuava informou que a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres segue todos os protocolos do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado da Saúde. Sendo assim, possibilitou a Mirian todas as opções disponíveis e orientações referentes aos seus direitos, garantindo e respeitando a sua decisão pessoal de não realizar o aborto.

“É parte do protocolo de atendimento ter pleno conhecimento das instituições que participariam do processo de aborto legal, como, por exemplo, a ONG e o hospital responsável pelo procedimento, para que a equipe pudesse dar o suporte necessário, garantindo os direitos pertinentes e priorizando a individualidade da vítima”, fala a prefeitura.

Faltam diretrizes claras sobre aborto legal em gravidezes acima de 20 semanas

No Paraná, existem quatro serviços de referência ao aborto legal, mas todos atuam com o limite de 20-22 semanas, com o feto pesando menos de 500 gramas. O entendimento é resultado da interpretação de uma Norma Técnica do Ministério da Saúde de 2012

O documento afirma que não há indicação para interrupção da gravidez após 22 semanas de idade gestacional. “A mulher deve ser informada da impossibilidade de atender à solicitação do abortamento e aconselhada ao acompanhamento pré-natal especializado, facilitando-se o acesso aos procedimentos de adoção, se assim o desejar”, diz uma parte da normativa. 

Helena Paro, ginecologista, obstetra e vice-coordenadora do Comitê pelo Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo), diz que a lei é muito restritiva ao permitir o aborto legal somente em três causas. Porém, alerta para o fato de que o texto da lei não coloca um limite de tempo gestacional, ou seja, está de acordo com as orientações mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Paro é coordenadora do Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas) do Hospital de Clínicas de Uberlândia, no interior de Minas Gerais, um dos quatro serviços brasileiros que realiza o procedimento sem limite de tempo gestacional. Desde agosto de 2020, o Nuavidas oferece também o aborto legal por telemedicina. No princípio era até a 9ª semana, porém, com as atuais diretrizes da OMS, de 2022, aumentou para a 12ª semana.  

As mesmas diretrizes orientam para a descriminalização total do aborto, sem restrições de tempo gestacional e sem a necessidade de qualquer autorização institucional ou requisito, desaconcelhando leis e outras regulamentações que proíbam o aborto com base nos limites de tempo gestacional.

Da mesma maneira, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia manifestou-se, após o caso da menina de 11 anos que foi impedida de ter acesso ao aborto legal em Santa Catarina, denunciado pelo Portal Catarinas e pelo Intercept Brasil, informando que “os limites estabelecidos em manuais ou normas técnicas do Ministério da Saúde são infralegais e devem ser superados a partir das evidências científicas e recomendações das sociedades da especialidade”. 

Em nota, a Federação disse que seus documentos técnicos, a exemplo das diretrizes da Figo e da OMS, não limitam a assistência a meninas e mulheres em situação de aborto legal ao tempo gestacional. Apontando, inclusive, orientações sobre a dose do tratamento adequado para o aborto induzido em gestações acima de 20 semanas. 

No Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), o Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei funciona desde 1996, mas a equipe ainda enfrenta esse entrave institucional. “Aqui a gente só pode realizar os procedimentos até a 22ª semana, porque existe essa nota técnica defasada do Ministério da Saúde que ainda gera esse equívoco”, diz a enfermeira sanitarista Lígia Maria Carlos Aguiar, que integra a equipe do Programa. 

De acordo com os dados fornecidos pela equipe, a média de tempo gestacional recebida pelo serviço, que atende 17 municípios de Goiás, Bahia e Minas Gerais, é de 14 semanas. O perfil sociodemográfico acolhido é de mulheres heterossexuais, negras, cristãs e solteiras – o que está em consonância com a Pesquisa Nacional de Aborto, de 2021, que aponta que 81% das mulheres que abortam têm religião; e com a pesquisa Aborto e Raça, de 2023, que analisou o período de 2016 e 2021, apontando que a probabilidade de se fazer um aborto é 46% maior para mulheres negras de todas as idades.    

Desde janeiro até 16 de novembro, haviam sido realizadas 179 interrupções legais da gravidez no Hospital Materno Infantil de Brasília, em gestações decorrentes de violência sexual. No mesmo período, o Programa fez cinco acolhimentos de pessoas com gestações acima de 22 semanas, que representam menos de 3% da demanda total, e as encaminhou a outro serviço.

Segundo Aguiar, casos como o de Mirian seriam direcionados por iniciativa da própria equipe e com apoio do terceiro setor. “Quando a gente recebe pacientes acima de 22 semanas, entramos em contato com o Vivas para viabilizar a ida delas para o Nuavidas, em Uberlândia”, disse à reportagem. Não há um protocolo formal estabelecido no SUS. 

Quando o Projeto Vivas recebe um caso com mais de 20 semanas, o primeiro passo é conferir o local que a pessoa está e qual o exato tempo gestacional. A partir daí, a organização começa a busca pelos locais mais próximos que possam garantir a interrupção legal. Às vezes é preciso viajar entre regiões do país. 

“Já ajudamos pessoas que viajaram do Sudeste para o Nordeste para ter acesso a esse direito, por exemplo. Quando acionamos um serviço que garanta o atendimento em outro estado, nós organizamos essa viagem. Geralmente a mulher não tem recursos, então entramos com a parte financeira. A gente entra em contato com o serviço e garante que ela chegue até lá”, explica Rebeca Mendes, fundadora e diretora executiva do Vivas. 

Até 20 de novembro, a organização havia facilitado o acesso de 203 casos de aborto legal, e destes 29 eram gestações acima de 20 semanas, o que consiste em pouco menos de 15%. O Vivas está realizando um papel que deveria ser feito pelo Estado, por meio do Tratamento Fora do Domicílio (TDF). O procedimento consiste em fornecer ajuda de custo aos pacientes atendidos na rede pública ou conveniada/contratada do SUS que dependam de tratamento fora de casa, mediante a garantia do atendimento no município de referência. 

Para a defensora pública de São Paulo, Tatiana Fortes, quando o tema é interrupção de gestações acima de 20 semanas, não existe um grande volume que acarrete a falta de vagas de internação em hospitais que a realizam. “O maior obstáculo é os serviços de origem iniciarem esses procedimentos de forma voluntária, geralmente o encaminhamento é sugerido informalmente”, afirma.

Ministério da Saúde anuncia elaboração de nova política de aborto legal

Estabelecer esse limite de tempo gestacional ausente na legislação do país reforça a vulnerabilidade de quem precisa do cuidado e dos profissionais da saúde que buscam atender essas pessoas. A enfermeira Lígia Aguiar, do Hospital Materno Infantil de Brasília, descreve uma rotina estressante e cheia de desafios. 

“Os entraves e os tabus envolvendo o tema atravessam as demais áreas aqui do hospital e acabam gerando um estresse razoável”, fala a profissional. Segundo ela, a equipe conta com seis pessoas fixas. “Nossa equipe é muito pequena e o trabalho é desgastante, a gente mata um leão por dia”. Atualmente, o grupo está tentando eliminar o leão da barreira institucional das 22 semanas. 

Aguiar vê esses tensionamentos como parte de um trajeto até a descriminalização e a naturalização da interrupção gestacional como um procedimento de saúde. “É provocando o tensionamento e gerando desconforto que a gente traz o debate à tona e abre o espaço para a educação permanente de profissionais e para educação popular em saúde da população”, afirma. 

Em 28 de agosto, o Ministério da Saúde se manifestou, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 989, que tramita no Supremo Tribunal Federal, anunciando a elaboração de uma nova Norma Técnica sobre o aborto legal e situando a temática como uma questão de saúde pública. 

Há uma expectativa de profissionais, entidades e movimentos sociais que atuam com o tema de que essa atualização contribua para superar obstáculos com base em melhores evidências científicas, além de promover um atendimento humanizado e acolhedor para quem busca o serviço. 

“Espero que o Ministério da Saúde passe a estabelecer esses critérios para avançar na pauta. As mulheres estão morrendo e o caso de Mirian deixa bastante evidente que é por falta de acesso”, diz Nunes, coordenadora do Nudem Paraná. 

A ADPF 989 pede que o STF tome providências que assegurem a realização do aborto nos casos permitidos. Na ação, são apontados diversos entraves para o aborto em casos de gestações decorrentes de estupro: a desigualdade no acesso pela concentração dos serviços em determinadas regiões, as inconsistências nas informações relativas às instituições autorizadas a realizar o procedimento, a grande distância entre a moradia das vítimas e o serviço, a falta de protocolos, de técnicas adequadas e de capacitação profissional.

A manifestação no âmbito da ADPF, elaborada pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde e pela Secretaria de Atenção Especializada, declara que não existe um prazo gestacional fixo para a realização do aborto decorrente de estupro ou qualquer outra circunstância legalmente prevista. 

Em referência ao documento “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, de junho de 2022, que a ação pedia a revogação imediata, a pasta liderada por Nísia Trindade informou que foi retirado da plataforma por conter orientações desatualizadas, e que não há justificativa para o seu uso. Editado durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), o protocolo restringia ainda mais a realização do aborto nos casos previstos em lei. 

O atual Ministério da Saúde afirma que o documento, ao tratar sobre aborto espontâneo e induzido no mesmo texto, induzia os profissionais ao erro de estabelecer limites gestacionais para o procedimento, realizando uma “transposição artificial” entre as duas situações que não condiz as normas jurídicas, nem com indicações das Normas Técnicas da Figo. Além disso, o texto orientava que as vítimas de violência sexual que buscavam o serviço com gravidez acima de 22 semanas mantivessem a gravidez para posterior adoção, como foi sugerido no caso de Mirian. 

O Ministério disse que essa imposição “representa uma grave violação de direitos humanos, com caracterização de tratamento desumano e degradante pelo Estado”, o que já foi explicitado em tratados internacionais da Organização das Nações Unidas. Também assumiu a responsabilidade de garantir o acesso ao atendimento e aos direitos estabelecidos na legislação, através de políticas públicas qualificadas. 

Benita Spinelli, enfermeira e diretora do Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), hospital de referência em aborto legal no Recife, diz que esses retrocessos em relação aos entendimentos já consolidados sobre o aborto legal impactaram diretamente o serviço. “Isso trouxe muitos desconfortos. ‘Ah, agora não pode, porque o Governo disse que não é assim, agora tem que tudo ir para a delegacia, tem que juntar material e ir para a coleta de vestígio.’ Retrocedeu e muito”, afirma. 

Desde 1996, com a implantação do Pró-Marias, o hospital se tornou referência na assistência a mulheres e adolescentes em situação de violência sexual e doméstica, o que inclui o aborto legal. Durante a pandemia, a equipe garantiu a interrupção da gestação da menina de dez anos do Espírito Santo, que teve o procedimento negado no seu estado por estar com 22 semanas e quatro dias. Para acessar o atendimento médico, a criança entrou na instituição no porta-malas de um carro. Na época, o caso foi denunciado pelo Catarinas. 

Em entrevista, Spinelli disse que o serviço atualmente está em um momento “de baixas”. “Tem momentos que tem uma maior sincronia, em outros as coisas ficam mais abaladas. A gente está tomando fôlego”, explicou. O Cisam é um dos hospitais do país que realizam interrupções de gravidez acima das 22 semanas. Desde 2020 até outubro de 2022, o Pró-Marias atendeu três abortos legais acima de 20 semanas, segundo o relatório estatísco do serviço

Na elaboração da nova Norma Técnica, o Ministério da Saúde tem incorporado discussões com entidades de pesquisa que são referência para o tema e representantes da sociedade civil organizada que lutam em defesa dos direitos humanos de mulheres, meninas e outras pessoas que gestam para que haja consenso e legitimidade em torno da temática reconhecidamente sensível para a sociedade brasileira. 

A ginecologista e obstetra Helena Paro, referência no país, confirmou que teve voz no Ministério da Saúde. “A pasta tem participado de encontros com os serviços”, relata.

Entre as ações apontadas pela pasta, foi confirmada a participação em reuniões como o “Encontro dos serviços brasileiros de aborto legal: aborto legal em gravidezes avançadas – desafios para o acesso no Brasil”, e do Fórum Intersetorial de Serviços Brasileiros de Aborto Previsto em Lei. Representantes do Fórum, pesquisadores de diferentes universidades e representantes de organizações feministas também foram recebidos para uma reunião no Ministério.

Estado de SP é processado por dificultar aborto legal

Em São Paulo, a Defensoria Pública ingressou com uma ação civil pública contra o Estado por dificultar o acesso ao aborto legal, que, de acordo com o órgão, é um direito à saúde, dignidade, autonomia, igualdade e cidadania das mulheres e meninas. 

Dos dez hospitais visitados pela Defensoria, nenhum realizava a interrupção voluntária em gestações acima de 20 semanas. 

A informação foi confirmada pela Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, que em nota informou à reportagem que há 12 hospitais credenciados para atender situações de aborto legal, e a recomendação da pasta é que seja seguida a Norma Técnica do Ministério da Saúde.

Tatiana Fortes, defensora pública de São Paulo, explica que essa limitação acontece nos casos de violência sexual. “O argumento é de que precisaria de uma preparação técnica. Alguns hospitais, por exemplo, fazem no caso de risco à vida e anencefalia. Nesses casos, não haveria um dilema moral, por exemplo. Não demandaria cuidados e decisões éticas, morais e médicas”, afirma. 

Além do descumprimento da legislação, a Defensoria também identificou a falta de informações relacionadas ao procedimento em canais oficiais do Estado, assim como a ausência de capacitação e falta de respaldo institucional para os responsáveis pela prestação desse atendimento. “O primeiro grande problema é saber quais são os hospitais que estão referenciados no estado para fazer esse tipo de atendimento”, diz Fortes. 

Como um exemplo positivo de divulgação objetiva e simples, a ação aponta o canal institucional da Secretaria de Saúde da Bahia, que indica todos os serviços de atendimento a vitímas de violência sexual, especificando quais realizam o aborto legal. 

Outro exemplo que conhecemos no processo de apuração desta reportagem, é uma simples alteração no termo de pesquisa no site da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, que tornou as informações mais acessíveis. Em 2021, o termo de pesquisa que antes era “interrupção gestacional prevista em lei” foi alterado para “aborto legal”. 

“Uma pessoa desesperada não procura interrupção na internet, procura aborto. Nós conseguimos mudar isso no site institucional. Se você coloca nas ferramentas de pesquisa ‘aborto DF’, o site do nosso serviço é o primeiro que aparece. Hoje, a maior parte das pacientes chega aqui através da internet”, conta Lígia Aguiar, enfermeira do serviço.  

O Programa do Distrito Federal também conseguiu ampliar o entendimento de violência sexual para além do estupro, estipulado no Código Penal de 1940. A equipe segue a definição de violência sexual da OMS para autorizar a interrupção no sistema de saúde. O que inclui casos de stealthing, que é a retirada do preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da outra pessoa.  

Segundo a OMS, violência sexual seria qualquer ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou outro ato dirigido contra a sexualidade de uma pessoa por meio de coerção, por outra pessoa, independentemente de sua relação com a vítima e em qualquer âmbito. Compreende o estupro, definido como a penetração mediante coerção física ou de outra índole, da vulva ou ânus com um pênis, outra parte do corpo ou objeto. 

No país, há leis recentes que permitem ampliar essa definição para permitir abortos legais em situações para além do estupro, como a Maria da Penha (2006) ou a do Minuto Seguinte (2013), que consideram violência sexual qualquer forma de atividade sexual não consentida. 

No entanto, esse olhar atualizado aos dias de hoje não é a regra dos serviços. Em uma visita ao Hospital da Mulher – antigo Hospital Pérola Byington, que era referência no atendimento ao aborto legal –, em março deste ano, a Defensoria Pública de São Paulo constatou que o estabelecimento só atende vítimas de estupro. Não há informações recentes sobre mudanças no protocolo.  

As barreiras encontradas pela Defensoria no estado mais populoso do país são muito semelhantes às encontradas a nível global, conforme publicação “Barreiras ao Aborto Seguro”, da Figo, de setembro de 2021.

Entre outras questões, falta capacitação e sensibilização constante aos profissionais de saúde sobre o tema; os profissionais dos poucos serviços existentes estão sobrecarregados; não há articulação municipal, estadual e regional que garanta o deslocamento de pacientes a atendimentos fora do domicílio; a alegação da objeção de consciência é usada como justificativa para negar o direito, sem oferecer alternativas. 

Em nota, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo disse que aguarda a tramitação do caso para se manifestar.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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