Na última semana, não é exagero afirmar que o Brasil todo se mobilizou em torno do caso da criança de dez anos que, grávida em decorrência de estupro, passou por inúmeros obstáculos desnecessários para ter seu direito ao aborto garantido. 

A reportagem de Paula Guimarães para o Portal Catarinas, intitulada “‘Quero voltar logo pra  jogar futebol’: a saga de uma criança para fazer o aborto no Brasil” gerou grande repercussão e fez com que o caso continuasse reverberando, especialmente por trazer os detalhes dessa “saga”, que envolveu a montagem de uma operação minuciosa para que a criança de São Mateus-ES chegasse ao Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros – CISAM, em Recife-PE, após ter negado o atendimento por um dos hospitais de referência para a interrupção legal da gestação em seu estado, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM), em Vitória.

A comoção em torno do caso demonstrou o interesse público sobre o tema e, por isso, em 19 de agosto, o Portal Catarinas convidou algumas das mulheres que foram as fontes da reportagem, profissionais, estudiosas e ativistas pelos direitos humanos das mulheres e meninas para uma conversa na live Menina não é mãe: toda criança tem direito ao aborto legal.

Com mediação da autora da reportagem, a coordenadora do Portal Catarinas, Paula Guimarães, o diálogo teve como convidadas Emanuelle Góes, pesquisadora do Cidacs-Fiocruz e do Musa/ISC/UFBA, Paula Viana, enfermeira-obstetra do Grupo Curumim – Gestação e Parto, e Sandra Bazzo, advogada e coordenadora do Cladem – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. Elas debateram temas como o direito ao aborto no Brasil, os obstáculos para o acesso a esse direito por mulheres e meninas e questões legais, médicas e de direitos humanos que envolvem o estupro de menores e a hipocrisia social em torno do aborto.

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O desamparo das meninas vítimas de estupro no Brasil

O caso da menina de São Mateus é representativo de uma série de violações a que milhares de meninas são expostas no país. 

“É um caso emblemático por causa do perfil da menina: ela representa as meninas que não têm acesso, que também não têm voz. Desde o começo do contato que a gente teve com ela, a gente vê que é uma criança retraída, uma criança calada, uma criança com o olhar triste. Eu fiquei muito tocada, porque veio na minha cabeça ‘quais são as experiências dessa menina?’. As experiências dela estão relacionadas a calar, à dor, porque ela tinha uma ameaça real à integridade dela e das pessoas a quem ela ama. A menina já não tinha o pai e a mãe por perto, e o avô e a avó são as referências dela. Então, foi uma experiência muito forte que retrata bem a desassistência que o Estado brasileiro dá às meninas e a desproteção que elas vivem”, relatou Paula Viana. 

A gravidez até os 14 anos, entendida legalmente como resultante de estupro, não é uma exceção. Tampouco são exceções os nascidos vivos resultantes dessas gestações. De 1994 a 2018, 655.836 meninas de 10 a 14 anos pariram, o que representa uma média de mais de 27 mil meninas, por ano, que foram estupradas, engravidadas e obrigadas a manter a gestação até o fim, a despeito do risco à sua saúde. Os dados mais atualizados do DataSUS, em 2018, registraram que 21 mil meninas entre 10 e 14 anos foram estupradas, engravidaram e pariram no país. Segundo a campanha do Cladem, “Gravidez Infantil Forçada é Tortura”, têm-se, nesses casos, três tipos de violações: estupro, gravidez e o não acesso à interrupção da gravidez. 

De acordo com Emanuelle Goes, é preciso entender quem são essas meninas que estão mais expostas à violência sexual. “São meninas negras, pobres – e aí a questão do território vai contar -, sobretudo meninas de áreas rurais, do interior das cidades. Mas se a gente for pensar na discussão do racismo, pensando no racismo patriarcal, na intersecção do racismo com essa estrutura patriarcal que controla os corpos das mulheres, se a gente pensa nas mulheres negras e o que elas experimentam com o incremento do racismo, a gente sabe que esse cenário tem uma maior violência para as meninas e adolescentes negras. Tem relação com a hipersexualização dos corpos das meninas. Os corpos negros femininos são hipersexualizados. E esse corpo negro de uma criança, de uma adolescente, está exposto às vulnerabilidades por conta das opressões de gênero, de raça e de geração”, ressalta Emanuelle. Para ela é necessário que se discuta as relações assimétricas, as dinâmicas de gênero e geração como marcadores que oprimem as meninas e adolescentes. 

“No caso das meninas e adolescentes negras, tem esse incremento do racismo, de como o corpo negro feminino é visto desde a sua infância. As meninas são vistas sempre com aquele corpo hipersexualizado. O corpo negro, enquanto for hipersexualizado, ele vai ser visto como um corpo para o sexo, é um corpo como objeto, ele não é um corpo para a maternidade”, analisou Goes.


Os obstáculos para o acesso ao direito ao aborto legal 

De acordo com Sandra Bazzo, o fato de os hospitais do Espírito Santo terem se negado a realizar a interrupção da gestação demonstra a falta de capacitação dos profissionais para a realização do aborto legal; o preconceito e a discriminação em relação às mulheres, que impõem a maternidade como destino, exercendo, sempre que uma mulher fica grávida, o poder sobre seus corpos; e a quase inexistente divulgação dos direitos das mulheres pelo poder público brasileiro. Ela lembra que a própria Norma Técnica “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” do Ministério da Saúde, editada em 1999 e atualizada em 2012, que orienta a interrupção das gestações até 22 semanas ou peso fetal de 500 gramas, não tem caráter legal ou impõe qualquer tipo de restrição. 

“Quando uma menina de 11 anos gestante chega em uma unidade de saúde, e essa gestação está fora desse parâmetro, por algum motivo se concebe que não se pode fazer nada. Mas, na verdade não é isso, porque se uma gestante estiver correndo risco de vida e chegar ao hospital, ninguém vai pedir uma autorização para escolher entre interromper ou não, pensa-se sempre na gestante. Então, uma menina de 10 anos, mesmo que tivesse discernimento sobre o que é uma relação sexual e que isso desencadearia em uma gestação, ela ainda assim estaria correndo risco de vida porque o corpo dela ainda não está pronto para gestar”, explicou Bazzo.

No Brasil, a interrupção da gravidez é permitida por lei e deve ser realizada em hospitais públicos em três situações: quando em decorrência de estupro, quando representa risco de morte para a gestante e quando se constata anencefalia fetal. Nos dois últimos casos, não há um prazo limite, em número de semanas, para a realização do procedimento. 

“Toda maternidade, todo serviço de saúde reprodutiva, tem condições de realizar o aborto previsto em lei, assim como toda maternidade, todo obstetra, ou seja, especialista, tem condições de interromper o aborto a qualquer momento dessa gravidez, pois existe tecnologia segura para isso. Então, nada impede, nem juridicamente, nem tecnicamente”, garantiu Paula Viana.

Este foi o entendimento da equipe do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros – CISAM, em Recife-PE, que atendeu a menina na noite de domingo, 16 de agosto. De acordo com Viana, existem alguns outros serviços e equipes que realizam, na base da resistência, da resiliência e da bravura, a interrupção legal das gestações, e que foram cogitados para o encaminhamento do caso. Mas, também, foi preciso considerar o contexto de pandemia, que provocou, segundo ela, uma “re-desorganização” do SUS, resultado do caos na saúde pública em um sistema de saúde que já sofre com a diminuição, a cada ano, nos investimentos de estrutura e formação.

“Então, teve que ser tudo muito rápido para não perder um minuto, porque essa menina corria risco. Cada dia que passava ela entrava num patamar de cuidados mais arriscados para a idade dela, para o tamanho dela e para a constituição física dela”. 

Apesar de amparadas pela lei, a equipe de saúde sofreu assédio de um grupo de “religiosos” que foi até o centro de saúde se manifestar contra o atendimento médico à menina, chegando a chamá-la, e aos profissionais de saúde, de “assassinos”. De acordo com Sandra Bazo, a atuação de grupos fundamentalistas, que tentam interferir na decisão de mulheres e impedir o acesso ao aborto legal para crianças ou mulheres vítimas de estupro, é muito semelhante em vários países da América Latina. 

“É muito semelhante este abuso de direito. Eu não encontro palavras para definir isso sem me revoltar, porque uma coisa é o direto à religião, à religiosidade, mas o exercício desse direito é de cada um. Assim como o direito ao corpo, à maternidade, à gravidez é uma escolha existencial. Só cabe à mulher decidir se ela vai ou não manter uma gestação. Essas experiências se repetem no Paraguai, na Argentina, isso é muito característico, essa investida inicial para impedir a interrupção, com o argumento de serem pela vida do nascituro, mas, ao mesmo tempo, sem pensar na vida dessa gestante que está em risco”, analisou.

“Essa ‘defesa da vida’ é tão frágil que nós vemos crianças na rua, nós vemos crianças sem comer, sem escola, sem condições de vida digna e ninguém faz nada por essas crianças. Eu diria que é muito desumano”, disse a advogada. 

A violação dos direitos dessa criança e a ofensiva fundamentalista fez com que inúmeros grupos e pessoas públicas se manifestassem, inclusive o influenciador digital Felipe Neto, que ofereceu à família o pagamento dos estudos da menina até sua entrada na universidade. Segundo Paula Viana, desde o início houve uma mobilização nacional para garantir os direitos dessa criança. “Foi um grupo que se formou rapidamente e a partir do momento em que a gente acompanhou o processo, da promotoria, da decisão do juiz, nós começamos a saber que lá no Espírito Santo essa menina não ia acessar esse direito. Vale salientar que um estudo do Ipea de 2014 diz que apenas 5,6% das meninas que notificam a violência sexual e que ficam grávidas dessa violência acessam os serviços de saúde para garantir esse direito. E então essa articulação, via movimento feminista, pode viabilizar esse tratamento”.   

Para Viana, o desfecho positivo do caso demonstra a importância da articulação do feminismo no Brasil. “Teve uma mobilização eficiente, especialista, e teve uma mobilização durante, no local, que foi muito impressionante. Imediatamente chegou assim, 40, 50 jovens feministas, velhas feministas, profissionais, estudantes da universidade, de medicina, de enfermagem, da assistência social, a Frente Pela Legalização do aborto de Pernambuco, o Fórum de Mulheres de Pernambuco, a Marcha Mundial de Mulheres, e não só feministas, teve movimento de direitos da criança e do adolescente, movimento de direitos humanos”, enumerou. 

Ao considerar eventos similares do passado, Viana também avaliou que houve maior abertura para pauta no debate público. “Eu tenho visto que a sociedade brasileira tem amadurecido nessa discussão. Eu estou vendo muito mais adesão ao direito de escolha, e o caso dessa menina veio para alavancar isso, porque ela decidiu. E é impressionante botar essa responsabilidade em uma menina de dez anos, mas eu fiquei impressionada com isso, com a força dela. Ela aprendeu da vida isso, ela tá aprendendo. Espero que ela possa ainda curtir a infância dela, o restinho da infância dela, é isso que eu torço”.


Brasil age na contramão da prevenção das violências e garantia dos direitos 

A luta pelo acesso ao aborto legal em casos de estupro, especialmente de crianças, é uma mobilização necessária. Segundo Emanuelle Goes, existe uma conta que não fecha sobre o acesso a esse direito. Enquanto 21 mil meninas de 10 a 14 pariram em 2018, sendo que gravidez nessa idade sempre é entendida como resultado de estupro, somente 62 acessaram o aborto legal. 

“Então, a gente tem essa discrepância. O serviço de aborto legal ainda está bem distante. A gente está lutando pela legalização do aborto, mas o mínimo que a gente tem com os três permissivos, a gente também não acessa”, ressalta. 

Para Goes, a luta pela legalização do aborto também tem como objetivo a melhoria no acesso das meninas e mulheres ao aborto nos casos permitidos pela lei atualmente. “A criminalização atrapalha o aborto legal, essas três permissões, porque o profissional se sente sempre no direito de julgar por conta dessa criminalização do aborto”. 

Segundo a pesquisadora, a dificuldade das meninas e mulheres acessarem o aborto legal no Brasil está relacionada à uma objeção de consciência generalizada, de todos os profissionais que trabalham no serviço de saúde, desde a recepção até o/a médico/a. 

“É bem complicado a gente pensar as dinâmicas de poder nas relações, porque a objeção de consciência não é só do médico, é de todos os trabalhadores. Todos estão ali na objeção para que a pessoa não consiga acessar o seu direito, para que as mulheres não consigam acessar o serviço. E a curetagem é uma forma inclusive de punição. Por isso que, mesmo sendo mais caro, mesmo sendo mais oneroso para a saúde em contraposição ao AMIU (Aspiração Manual Intra-uterina), se usa a curetagem como meio de punição das mulheres. A curetagem tem essa função”, analisou. 

Para Sandra Bazzo, essas atitudes têm relação com a falta de informação e de formação para desmistificar o preconceito e a discriminação de gênero que é parte da nossa cultura. “Isso é cultural. Isso não é inerente ao ser humano. Todas as convenções vão falar que qualquer política de prevenção da gravidez infantil deve começar pela criação de programas abrangentes de educação sexual. Crianças e adolescentes precisam ser informados e treinados para rejeitar carícias, abordagens sexuais indesejadas, prevenir a gravidez e as infecções sexualmente transmissíveis, bem como capacitar-se para desenvolver a sua sexualidade de forma livre e segura’”, observou. 

No entanto, o Brasil caminha na contramão, retirando de pauta a educação em sexualidade. Recentemente, o país também se posicionou contrário à aprovação de duas resoluções da ONU (Organização das Nações Unidas) que visam combater a discriminação contra as mulheres e a mutilação genital feminina, manifestando-se na direção de limitar os direitos e solicitando expressamente a retirada de termos como “educação sexual” e “saúde sexual e reprodutiva”. 

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