“Mulheres que querem ser mães são descartadas”, diz em entrevista a trabalhadora que luta contra a privatização do serviço de limpeza das ruas e coleta de lixo em Florianópolis.

4h da madrugada, enquanto parte da população permanece dormindo, Jeziddiane Tuchtenhagen Medeiros, 32 anos, acorda para mais um dia de trabalho. O ônibus passa às 5h15, mas antes disso ela toma um café preto. Depois de pegar o primeiro ônibus perto de casa, na praia João Rosa, em Biguaçu, região metropolitana de Florianópolis, ela segue para esperar o segundo, que vai levá-la até o bairro Itacorubi. Seu destino é a Comcap, autarquia responsável pela coleta de lixo e limpeza da capital catarinense, onde trabalha.

Jeziddiane é auxiliar operacional, uma das trabalhadoras que fazem a varrição das ruas da cidade. É fato que desde a pandemia essa rotina mudou. Por escassez de horários de ônibus ela vai ao trabalho com o carro da família, mas certamente isso não faz da trabalhadora, que ocupa o cargo de mais baixo salário da categoria, uma privilegiada. As mulheres representam 30% do total de trabalhadores da Comcap, a maior parte delas exerce o mesmo ofício da nossa entrevistada.

Foto: arquivo pessoal

Das 7h às 13h podemos encontrá-la varrendo as calçadas, assim como as outras margaridas. Pelo caminho ela recolhe folhas secas, papéis, muita bituca de cigarro e até mesmo máscaras descartáveis. Nem sempre a vassoura dá jeito nos resíduos, como latinhas, copos plásticos e garrafas que ficam presos ao bueiro, forçando-a a se abaixar para pegar com as mãos. “Quando chove pode entupir e causar alagamento. Tem muito descarte de resíduo, na pandemia encontramos muitas máscaras que o pessoal descarta, ainda falta muita consciência da população nesse sentido”, contou a trabalhadora.

Filiada ao Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Florianópolis (Sintrasem), a margarida participou ativamente da greve que durou duas semanas e terminou em 1º de fevereiro, em protesto ao projeto de lei complementar 1838/2021 do prefeito Gean Loureiro (DEM), aprovado pela câmara de vereadores em 26 de janeiro. A proposta, chamada pela prefeitura de “direitos iguais”, por equiparar os funcionários da empresa pública com outros da prefeitura, corta benefícios estabelecidos em acordos coletivos entre a Comcap e a prefeitura, além de colocar em risco direitos de outras categorias.

A Lei Complementar Nº 706 fragmenta o quadro de trabalhadores em duas secretarias, aumenta a carga horária, extingue diversos direitos, como a refeição quente servida às trabalhadoras e trabalhadores, reduz a hora-extra, reduz o tempo de licença maternidade, o valor da insalubridade, do vale-alimentação, do auxílio creche, entre outras perdas que juntas diminuem a renda da trabalhadora. Extingue até mesmo a licença que garantia um dia de descanso sem desconto salarial no dia do aniversário.

“Apesar de dizerem que não tivemos perda salarial, porque não mexe no salário base, mas mexe em insalubridade, prêmio de férias, e outros benefícios que impactam na minha renda em 40%, o que faz bastante diferença porque sou mãe de três filhos. Eles falam em supersalários, mas na verdade os que ganham muito e não trabalham para a população, são pessoas que têm cargos de confiança, não são casos como o meu ou de garis que correm atrás do caminhão”, revolta-se a trabalhadora.

Jeziddiane viu seus rendimentos, carreira e estabilidade atacados em um golpe de narrativa do prefeito Gean Loureiro, embalado pela mídia tradicional e pela base na Câmara, que chamou de privilégios os direitos daquelas/es que limpam as ruas e coletam os lixos da cidade. O executivo defendeu que o corte traria uma economia de mais de R$20 milhões, porém não apresentou estudo sobre os impactos socioeconômicos dessa política privatista.

O projeto estava entre os seis enviados pelo prefeito da capital em regime de urgência, no dia 15 de janeiro, antes mesmo do início do ano legislativo. Foram mais de 1000 páginas com propostas de mudanças radicais em diferentes áreas para serem lidas, debatidas e votadas em menos de 10 dias. Quatro dos projetos de lei complementar foram aprovados em duas sessões extraordinárias, dias antes da primeira sessão do ano. Ao final da discussão, das 9h às 17h30 de 26 de janeiro, a proposta direcionado à categoria foi aprovada com 13 votos favoráveis, oito contrários e uma abstenção.

Foto: arquivo pessoal

“Os vereadores não sabiam nem no que estavam votando, um deles perguntou se a emenda era da base dele ou de oposição para ver se votaria contra ou a favor. Para ver o nível dos políticos com quem estamos lidando, eles não têm moral para falar de família, falar que são cidadãos de bem. Durante a votação, um vereador falou que a gente não tinha lido o edital do concurso que dizia que teríamos que trabalhar debaixo de sol e de chuva e eu gostaria de contestá-lo. Li o edital o qual garantia os meus direitos, estabilidade, sindicato, e eles estão querendo acabar com tudo isso, e concretizaram isso em alguns aspectos”, conta a trabalhadora.

A lei aprovada também retira a cláusula do estatuto da Autarquia Melhoramentos da Capital, a Comcap, que estabelece a coleta de lixo na cidade como sua exclusividade, o que abre caminho para a terceirização dos serviços prestados pela companhia estatal. Junto disso veio também a proposta de revogação da estabilidade e garantia de emprego, que só não foi aprovada em função das emendas conquistadas depois de dias de mobilização.

Foi a estabilidade que levou a margarida a se inscrever no concurso para ser auxiliar operacional há mais de dez anos, quando a Comcap ainda era uma empresa mista. Cansada de ser discriminada por ser mulher, ela buscou um trabalho que lhe garantisse autonomia financeira e até mesmo autonomia reprodutiva, neste caso o direito de ter filhos sem que isso coloque em risco sua fonte de renda.

“Tive os três filhos já estando na Comcap, na primeira gestação que foi de risco eu tive que ficar dois meses internada. Se isso acontece em outra empresa em que eu não tivesse estabilidade, quando eu voltasse da licença maternidade muito provavelmente seria demitida. Escutei este absurdo de que a estabilidade deveria acabar para que a gente não ficasse usando a empresa para ter filhos. A ideia desses políticos com essa mentalidade seria justamente acabar também com esse benefício para que a gente não pudesse ocupar esse lugar, como já ocorre na iniciativa privada. Eles descartam as mulheres que querem ser mães, que querem sustentar os seus filhos como se fôssemos menos profissionais por isso. É um total absurdo que não sei nem qual nome dou para esse tipo de pensamento”, conta com indignação.

Jeziddiane se juntou aos milhares de trabalhadoras/es da Comcap e seus familiares, em passeata na Beira Mar Continental, em 31 de janeiro/Foto: arquivo pessoal

Quando chega em casa, ela troca o turno com o marido, que sai para trabalhar formalmente, no cuidado da casa e dos filhos. Ela divide os custos da casa com ele, mas diz que nem todas as trabalhadoras da Comcap têm essa possibilidade. “A minha renda não é a única da família, o meu esposo tem o trabalho dele, e mesmo assim isso vai afetar bastante a gente. Imagine as trabalhadoras que sustentam sozinhas uma família inteira, mães chefes de família, com filhos pequenos, avós que criam filhos, pais de família que sustentam a casa sozinhos, isso em um momento de grande desemprego”, enfatiza.

Foto: arquivo pessoal

A trabalhadora lembra ainda de como a estabilidade garante autonomia para mulheres que precisam sair de um relacionamento abusivo. “A questão da grande maioria das mulheres é a independência, a gente precisa de independência econômica para sair muitas vezes de um relacionamento abusivo, para conseguir sustentar os filhos e resistir à essa situação que se criou de que as mulheres não podem trabalhar fora porque têm outras demandas”.

Segundo ela, é perceptível o avanço da participação das mulheres nos mais diversos cargos da Comcap. “Nós somos muito dedicadas em tudo que a gente faz, eu vejo isso nas minhas colegas não só operacionais, mas também garis, motoristas, a gente ainda é em número menor, mas isso está mudando. Estamos ocupando cada vez mais os lugares e isso me deixa emocionada, porque temos que ocupar todos os lugares, em equiparação aos homens, não podemos mais ser minorias, se sujeitar a não estar porque tem muitos homens, ou porque sou mãe, temos que nos livrar dessas amarras. A gente faz um trabalho tão bom e até melhor do que os homens, me desculpem os homens”.

Acompanhe o diálogo completo com a trabalhadora:

Como foram esses dias de greve?
Foi bem cansativo, participei ativamente, a greve que mais participei nesses doze anos de Comcap, contei bastante com apoio da família, meu marido, sogra e mãe que deram apoio, alguns dias só vinha para casa para dormir, um dia nem para dormir, fiquei na ocupação no Itacorubi.

De que forma a retirada de direitos impactou na sua vida?
Recebia em torno de R$1.500, não costumava fazer hora-extra porque não tenho com quem deixar as crianças. Então, o meu salário não varia muito além disso, mas tem pessoas que costumam fazer, que precisam, às vezes a empresa necessita que as pessoas trabalhem aos finais de semana ou que estendam sua carga como ocorre na coleta. Recebia o auxílio-creche para um filho menor de sete anos, benefício que foi cortado. Essa perda representa R$300. Sem contar a parte dos prêmios de férias, insalubridade e licença, eu automaticamente já perco 40% do salário, a partir do próximo mês.

Como você percebe esse desmonte dos direitos?
Eu vejo com bastante indignação porque na minha visão existem outras formas de economizar do que tirar do bolso do trabalhador, de pessoas que ganham um, dois ou três mil reais, que não é um super salário como falaram. Existem outras formas de economizarem e manterem o município, se essa realmente fosse a intenção deles, que na minha visão não era.

Durante a campanha política do Gean nas últimas eleições, aconteceu uma coisa que nunca vi nesses doze anos, foi uma liberação para todos os funcionários da Comcap, qualquer funcionário que quisesse de qualquer setor poderia passar de seis para oito horas de trabalho, isso aumentaria o salário base em 36%. E além dessas 8 horas poderia fazer mais duas horas extras pagas todos os dias e finais de semana. Conheço colegas que trabalharam dois meses direto, dez, doze horas por dias aproveitando desse momento para aumentar a sua renda mesmo que temporariamente. Aí a prefeitura tinha dinheiro, não estava preocupada em economizar, por isso vejo com indignação, essa falsa economia que diz que vai ter, essa preocupação.

Foto: arquivo pessoal

Enquanto ele não se preocupa com a cidade no sentido da pandemia, não se preocupa com os trabalhadores no sentido de garantir vacina imediata para nós, não se preocupa com o que de fato é importante. Ele se preocupou em época de campanha em gastar bastante dinheiro público que não é dele, gastar no sentido de fazer uma força-tarefa para que a cidade ficasse “mais bonita” ao ver das pessoas, para que vissem os trabalhadores mais atuantes, para que ele pudesse fazer a campanha dele.

Isso me causa indignação, porque ele fez a campanha dele em cima dos trabalhadores e com o dinheiro do povo, usando a máquina pública para isso, e agora ele tira o que deu lá atrás, dizendo que precisa economizar ou botar em dia as contas públicas. É falsa a ideia de que vai se economizar tantos por ano, porque vão criar secretarias e não vou me espantar se criarem mais cargos comissionados, esses sim têm grandes salários.

Pode falar um pouco sobre a sua trajetória profissional?
Trabalhei em comércio, telemarketing, em serviços assim, a última empresa em que estava trabalhando quando fui chamada para o concurso eu era do telemarketing e trabalhava na mesma escala de horário, mas eu vi no concurso… fiz o concurso pensando na estabilidade de emprego. Na época não tinha filhos, mas hoje vejo com mais importância por ter filhos, que a estabilidade no emprego faz muita diferença pra gente ocupar o mercado de trabalho. Somos julgadas em entrevistas de emprego, se tem filhos então você não serve para trabalhar na minha empresa, você não pode ficar aqui por muito tempo. Veem uma mãe de família como prejuízo para uma empresa e isso faz muita diferença. Foi por isso que resolvi fazer o concurso.

Como tem sido esse processo de formação política junto ao Sintrasem?
Eu era uma ignorante no sentido da política, eu não tinha ideia nem de como votar, muitas vezes nem lembrava em quem havia votado. Aprendi com os meus colegas de trabalho como a política mexe diretamente com o nosso trabalho, aprendi a prestar atenção nisso, a pensar, a avaliar a vida dessas pessoas que a gente coloca para administrar a nossa cidade, emprego e vida.

Como você percebe a importância do trabalho realizado pela Comcap?
A importância do nosso trabalho ficou muito mais evidente agora na época da pandemia, faz toda diferença ter um serviço de qualidade de limpeza pública numa época tão difícil. A Comcap faz coleta, varrição, esses serviços que aparecem mais, mas não sei se ficou claro para as pessoas, a gente também fez parte da sanitização da cidade nesse período. O processo de sanitização ocorreu diariamente em postos de saúde, pontos de ônibus, cemitérios, um serviço específico para o qual alguns funcionários foram treinados especialmente.  Ter uma limpeza pública de qualidade, como essa de excelência que a Comcap faz … por isso parabenizo todos os meus colegas. Ficou claro na greve que outras empresas não conseguem fazer o que a gente faz com a mesma excelência. 

O prefeito Gean pautou sua campanha em defesa do projeto dizendo combater os privilégios da categoria sobre outros funcionários. Você se sente privilegiada pela estabilidade e a sua fonte de renda?
Os meus privilégios são, como foi dito por um colega gari em assembleia, o apoio da família, da população, os amigos que a gente faz no trabalho, essa família que se cria no serviço, muitas vezes dividimos os mesmos problemas, esses dilemas de ônibus, de horário, de poder estar mais com a família, tudo isso a gente divide muito com os colegas, mas em questão de trabalho e salário não temos privilégio nenhum.

Como tem sido desde a aprovação do projeto?
Muitas pessoas estão trabalhando frustradas, tristes. Apesar da tristeza que é normal, nós acabamos de sofrer um ataque, senão um dos piores da história da Comcap, um ataque terrível contra a classe trabalhadora. Se podemos tirar algo de bom disso é a união das pessoas que ainda eram enganadas por essa classe de políticos, especialmente de direita. Estamos mais unidos, organizados, não vamos parar de lutar por causa disso, pelo contrário é impulso para continuarmos resistindo a esse tipo de política. Não podemos esquecer e nem a população, para quem a gente presta serviço, não esqueça: sempre me considerei funcionária da população e não de prefeitos ou vereadores. 

Bate uma tristeza, porque o que fizeram com a gente foi nos humilhar, a gente não pode baixar a cabeça para isso porque faço parte de um grupo de pessoas que apesar da indignação está organizado e firme na luta. Sinto-me apoiada pela população, ouvi frases como ‘que bom que voltaram, vocês são importantes para nós’, apesar da minoria não saber nosso valor.

Como você percebe a participação das mulheres na luta por direitos iguais?
A questão da grande maioria das mulheres é a independência, a gente precisa de independência econômica para sair muitas vezes de um relacionamento abusivo, para conseguir sustentar os filhos e resistir à essa situação que se criou de que as mulheres não podem trabalhar fora porque tem outras demandas. Nós somos muito dedicadas em tudo que a gente faz, eu vejo isso nas minhas colegas não só operacionais, mas garis, motoristas, a gente ainda é em número menor, mas isso está mudando, gente está ocupando cada vez mais os lugares e isso me deixa muito feliz, emocionada, porque acho que temos que ocupar todos os lugares, em equiparação aos homens, não podemos mais ser minorias, se sujeitar a não estar porque tem muitos homens, ou porque sou mãe, temos que nos livrar dessas amarras, a gente tem que ser livre, independente dessa sociedade machista, ocupar com força e dizer ‘aqui é o meu lugar e ninguém vai me tirar’. A gente faz um trabalho tão bom e até melhor do que os homens, me desculpem os homens.

Foto: arquivo pessoal

Como você colocou, ainda há discriminação em relação ao exercício da maternidade…
Tive os três filhos já estando na Comcap, e eu sei que se fosse em uma empresa privada, sem garantia de estabilidade, na primeira gestação que foi de risco e precisei ficar dois meses internada, quando eu voltasse da licença maternidade muito provavelmente seria demitida. Escutei dentro da empresa que a ‘estabilidade deveria acabar para que a gente não ficasse usando a empresa para ter filhos’, escutei esse absurdo. A ideia desses políticos com essa mentalidade seria justamente acabar também com esse benefício para que a gente não pudesse ocupar esse lugar, como já ocorre na iniciativa privada, eles descartam as mulheres que querem ser mães, querem sustentar os seus filhos, como se fossemos menos profissionais por isso. É tão absurdo que não sei nem qual o nome que dou para esse tipo de pensamento.

A estabilidade da categoria foi mantida com muita luta…
A emenda diz que a estabilidade terá vigor até que o último funcionário tenha idade para se aposentar. Se a gente não conseguir ter concurso para manter o quadro de funcionários, esses novos funcionários não terão benefício da estabilidade. E o que acontece na iniciativa privada vai passar a ser realidade na Comcap: as que forem mãe não serão contratadas, a grande maioria não é, principalmente se os filhos forem pequenos que é quando mais precisamos de apoio financeiro, e também não terão estabilidade as que já tiverem filhos, porque depois da licença maternidade serão descartadas no mercado de trabalho. Isso vai afetar as próximas pessoas.


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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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