*Contribuição de Pietra Dolamita Kuawa Apurinã (Conselho Editorial).

Após um ano do início da pandemia de coronavírus no país, a situação dos Povos Indígenas é preocupante, mesmo fazendo parte do grupo prioritário para receberem vacinas. O Estado mostra sua perversidade ao não dar a assistência suficiente para que a saúde e os direitos dessas populações sejam assegurados, pelo contrário, reforça a ideia de um projeto político de extermínio, descaso e descontinuidade de uma vida pautada na coletividade.

Em 2021 são mais de 50.358 casos confirmados, 994 mortos em 163 diferentes povos indígenas afetados até o momento, dados do boletim de 11/03, da Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil.

Na região Norte, em razão das cheias dos rios e da vazão das águas das hidroelétricas, muitos Povos Indígenas enfrentam cotidianamente o alagamento de suas terras, de seus roçados e a impossibilidade da pesca, fatores que aumentam as vulnerabilidades. As doenças causadas pelo contato com a Covid-19 se propagam, as mortes impactam profundamente as culturas e as relações sociais, aumentando o sofrimento psíquico em diferentes povos.

As vozes das mulheres indígenas

A indígena Maria Eva Canoé, do Povo Canoé, é integrante do Conselho de Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) de Guajará-Mirim, Rondônia, território próximo à fronteira com a Bolívia. Toda a sua família foi infectada pelo coronavírus, seu filho Orowao Pandran, 35 anos, liderança indígena, foi levado pela doença após a reinfecção pelo vírus. Foi entubado na UTI por duas semanas, em meio ao colapso do sistema de saúde, e não resistiu.

Maria Eva Canoé/ Foto: arquivo pessoal 

“Eu, Eva Canoé, juntamente com minha família, estamos enfrentando o maior desafio de nossa vida. Além de estarmos vivendo a dor da perda do meu único filho homem vítima do Covid,  fomos infectados também. Hoje, somos cinco pessoas precisando dar continuidade ao tratamento, pois o vírus do mal deixa sequelas horríveis no nosso organismo. Estou fazendo tratamento antidepressivo. Meu esposo, há dois anos, faz tratamento de glaucoma e todo mês compramos colírio. Meu esposo está desempregado e com a situação da pandemia o nosso orçamento ficou reduzido”, relata.

Em meio ao sentimento de luto, Eva conta que, tanto o seu Povo Canoé, como o Povo Oro Mon do seu esposo Wenprawane, estão abalados psicologicamente com o falecimento de seu filho, pois ele foi o primeiro jovem vítima da Covid-19 entre eles.

Segundo Eva, a situação de dificuldades se repete em outras famílias do Povo Canoé. “O meu povo que mora na aldeia está bem, na medida do possível. Mas minha mãe está deprimida devido ao falecimento do meu filho. Eles foram vacinados. Já os que vivem na cidade estão passando dificuldades. Apesar de tudo que estamos vivendo, eu e meu esposo damos apoio aos demais parentes, conseguimos algumas cestas básicas e distribuímos”, explica.

Nas vizinhanças do território vive o Povo Mura, às margens do Rio Madeira, no estado de Rondônia e no Amazonas. Márcia Mura, professora indígena e doutora em História Social (USP), diz que algumas comunidades estão em estado de abandono das políticas públicas e vulneráveis às fake news de pastores. Mesmo com a vacinação ainda estão ocorrendo muitos óbitos por conta da Covid-19.

“Em alguns territórios Mura, como Autazes, os parentes estão fortalecendo a organização política, que é o Conselho Indígena Mura (CIM). Estão indo de aldeia em aldeia para conscientizar os parentes a se vacinarem, porque há muita influência de pastores, de fake news, que deixa uns parentes inseguros a ponto de não quererem se vacinar. Há interferências que confundem a cabeça dos parentes”, denuncia.

Márcia Mura/ Foto: arquivo pessoal 

De acordo com a indígena Mura, em Rondônia, às margens do Rio Madeira, existem comunidades que hoje são denominadas como ribeirinhas, resultado de um longo processo de tentativa de embranquecimento e introdução dos indígenas à sociedade nacional. São pessoas e famílias que, há gerações, passaram por um processo de desterritorialização e de movimentação entre diferentes localidades na Amazônia. 

“Pessoas que tiveram seus tataravós vindos do Pará, passaram pelo Amazonas, chegaram até aqui. Pessoas que foram introduzidas no espaço de seringal, tiveram sua mão de obra explorada nesses espaços, pessoas que foram colocadas numa situação que não podem hoje dizer, muitas delas, de qual etnia elas são, mas que mantém um modo de ser indígena e que vivem a vida indígena ligada ao rio e à floresta, que mantém a sua percepção de mundo indígena. Essas pessoas, que são subnotificadas há quatro gerações, estão ali resistindo a todo projeto de morte”, explica a pesquisadora.

O Povo Mura está sofrendo com a Covid-19 e a Malária

Segundo Márcia Mura, além da pandemia do Covid-19,o Povo Mura está enfrentando novamente a epidemia de malária. Muitas comunidades estão sem lâminas para teste de malária, sem testes para o Covid-19, com um agendamento de vacinação indeterminado. Algumas aldeias já começaram a vacinar os idosos a partir de 80 anos, mas, ainda assim, estão havendo muitos óbitos.

“Na nossa comunidade, onde eu moro, Nazaré, como os antigos chamam ‘furo, em duas semanas foram a óbito três pessoas mais velhas, fora os que estão na cidade intubados. Essas comunidades às margens do Rio Madeira estão totalmente abandonadas. Há muito tempo que essas pessoas, essas comunidades, vêm lutando para existir por conta própria, sem apoio governamental. Segue o curso da política genocida, segue o curso dos projetos de morte”.

Márcia Mura faz parte do Coletivo Mura em Porto Velho (RO) que, por meio de campanhas voluntárias, busca recursos para atender às diversas demandas que chegam todos os dias.

“Parentada doente, desempregada, sem atendimento, sem prioridade para a vacinação porque não estão dentro uma aldeia, de um território demarcado. Porque foi tirado esse direito deles pela própria política genocida de Estado que provocou isso, e hoje não os reconhece”, afirma.

Os saberes das pessoas mais velhas, com maior conhecimento em relação à cultura, estão sendo profundamente afetados, alterando negativamente o ciclo de continuidade das práticas tradicionais, transformando também os ciclos da natureza que são referências culturais para os Povos Originários.

“A malária está vindo com toda força porque está no período em que as hidrelétricas estão abrindo as comportas e a água está vindo muito forte, o rio está subindo muito rápido. Desde quando foram feitas as hidrelétricas no Rio Madeira a nossa temporalidade mudou, os mais velhos perderam as condições de entender o que estava acontecendo, porque o movimento das águas não é mais regido pela natureza. São as hidrelétricas que determinam quando abre as comportas e quando a água tem que subir. Não é mais o tempo natural das águas, em que a água branca adentra os igarapés de água preta, que é um sinal de um tempo que se inicia”, conta.

A alteração dos modos de vida por interferências dos grandes projetos

Márcia Mura denuncia as mudanças nos modos de vida dessas populações indígenas e ribeirinhas em razão da construção das hidroelétricas, que alteram os ciclos naturais das águas. Além disso, muitos moradores precisam sair de suas casas quando as comportas das hidroelétricas são abertas, pois muitas áreas são alagadas.

“Não é mais o pássaro que canta dizendo que está começando a cheia, e que canta quando está terminando a cheia. Não, são as hidrelétricas. Nos preocupa muito o que está por vir porque sem a pandemia de Covid-19, os tempos de inundação alterado pelas hidrelétricas já são muito difíceis, temos que sair de nossas casas. Quem mora na parte da várzea tem que ir para terra firme, alguns ficam acampados, outros acolhidos em casas de parentes, além de doenças causadas pela lama, quando desce essa água. São muitas dificuldades porque os roçados são alagados”, diz a moradora do local.

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    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

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