Dirigido pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski, Matrix é uma das obras primas da cinematografia do século 20. Não somente pelos efeitos especiais que na época foram utilizados, mas, principalmente, pela inquietação que criou ao fazer-nos pensar sobre a existência de um poderoso e grande sistema de dominação para o qual somente nos atentaríamos ao ingerir uma pílula vermelha. O filme é genial na exata medida da genialidade de suas diretoras, em cujo currículo também se encontra a fantástica série Sense 8 (que, por sinal, recomendo muitíssimo!).

Se para Neo (personagem principal da trilogia) a pílula vermelha teve o condão de despertá-lo para a realidade na qual raça humana está dominada pelas inteligências artificiais, presa num programa de computador, servindo apenas como fonte de energia; para nós, ela, metafórica e ideologicamente, representa a tomada de consciência que faz perceber como o patriarcado, o capitalismo e o racismo se articulam para conservar e fortalecer cada vez mais o exercício do poder cis-hetero-branco-elitista.

Ironicamente (quiçá pela ignorância que é peculiar a essas hordas), justo a pílula vermelha (vermelha!) de Matrix, de uma obra assinada por duas mulheres trans, foi escolhida como símbolo de um suposto “despertar” de homens que se reúnem em grupos intitulados de Incel, MGTOW, PUA, Macho Sigma e, enfim, Red Pill. Todos tendo em comum o ódio em relação ao feminino.

Promover, instigar e incitar a repulsa e a violência às mulheres não é novo na história da humanidade. Submeter, torturar e, inclusive, matar mulheres por serem mulheres é parte de um ciclo odioso de controle do qual apedrejamentos, mutilação genital ou, entre nós, feminicídios fazem parte. Expressões de desprezo e repulsa essas caracterizadoras do que chamamos de misoginia, tal como escrevi no livro Feminicídio de Estado: a misoginia bolsonarista e a morte de mulheres por covid-19 (Editora Blimunda, 2021).

Nada de novo, portanto. Contudo, nos últimos dias, a partir de uma ideia legislativa protocolada pela profa. Valeska Zanello junto ao Senado Federal, tomou conta do debate público a necessidade ou não de que a misoginia seja criminalizada. Uma proposta muito bem-vinda como provocação e sobre a qual precisamos nos debruçar.

Nos termos da proposta da pesquisadora, misoginia “inclui injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro; promover discurso de ódio; hostilizar por palavras, cantos, gestos, atos, pessoas em razão do seu sexo feminino.” Sendo sua proposição a de que a misoginia seja considerada como crime, de modo similar ao já tipificado como racismo e ao a este equiparado como homofobia e transfobia.

Tenho dúvidas sobre se um tipo penal aos moldes de crime contra a honra seja o mais adequado. Assim como, enquanto garantista, me causa espécie a possibilidade de que qualquer lei penal surja no calor dos acontecimentos – como, infelizmente, é a regra em nosso país. Normas de natureza criminal exigem parcimônia em sua elaboração.

Seja como for, não me parece adequado que a proposta seja tomada como uma mera expressão punitivista. Fruto quase que da “ingenuidade” (ou, pior, da “sanha punitiva”, à la a pauta criminal de extrema-direita) de uma parcela do movimento feminista em relação ao sistema penal.

A proposta de um direito penal mínimo para as mulheres foi um dos pontos de chegada de minha obra Criminologia Feminista (Editora Saraiva, 2014). Ademais, como já tive oportunidade de escrever aqui na coluna, a misoginia se apresenta como a feição mais violenta do patriarcado.

Reafirmo não serem poucos os registros históricos, remotos e contemporâneos, exemplificativos de que em sistemas autoritários, autocráticos e/ou fascistas o despontar da misoginia trata-se de conditio sine qua non. Mulheres livres, pensantes e atuantes são a base para qualquer construção democrática. E, por óbvio, são também uma ameaça a qualquer sistema fora desse espectro.

Dizia eu também, que sublinhar o cunho misógino de toda as espécies de violência contra as brasileiras, em especial contra as que exercem altos cargos de poder, como vem ocorrendo de 2016 para cá, e jogar os holofotes sobre a predominância que esta característica vem tomando desde a institucionalização do fascismo em 2019, não é questão de menor importância. Pelo contrário: é uma exigência para a retomada aos rumos do processo democrático.

Em que pese ecoem aqui ou acolá vozes que perseveram no erro histórico e político criminal de compreender o sistema penal como intrínseco ao capitalismo em suas dimensões racial e patriarcal, e não como um instrumento que precisa ser dele capturado e recolocado em sua real função, o fato é que a proposta – já com mais de 18 mil adesões – nada tem de punitivista. Trata-se, sim, de uma inquietação legítima acerca da real razão de ser do próprio sistema penal.

Assim como o racismo (e a LGBTIfobia a ele equiparado por decisão do Supremo Tribunal Federal), a possível criminalização da misoginia nos provoca a pensar sobre o bem jurídico que eventualmente se há de proteger, inclusive, pela aplicação da lei penal. E me parece que, em última instância, o que se deve condenar é misoginia enquanto conduta que fere frontalmente qualquer possibilidade de realização do objetivo democrático-republicano de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

O momento nos exige amadurecer a ideia legislativa e fazer dela um instrumento a serviço do processo democrático, pois, ao fim e ao cabo, se alguém ingeriu a pílula vermelha que fez despertar para a realidade, estas foram as feministas. De um lado, por – sem nenhuma ingenuidade – estarem absolutamente cientes dos riscos e limites que o manejo do direito penal traz. E, de outro, por, de olhos abertos, seguirem na resistência para libertar toda a humanidade.

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  • Soraia Mendes

    Soraia Mendes é jurista, doutora em Direito, Estado e Constituição com pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas...

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