Semana passada, durante o breve hiato de paz neste Brasil de perene aflição, algumas memórias suscitadas nos comentários da postagem feita pela conta de Instagram Imagens & História que resgata uma capa da Revista Capricho de julho de 2002 com a atriz Priscila Fantin compeliram meu grande amigo Jhonatan Zati a sugerir que escrevêssemos sobre o tema para o Catarinas.

É claro que desde domingo, 8 de janeiro, nossas atenções se concentraram nos acontecimentos derivados do lastro de pilhagem e destruição deixados por bolsonaristas fanáticos nos prédios dos Três Poderes da República, em Brasília. Dia após dia, felizmente, temos nos regozijado ao menos com a beleza e força de eventos institucionais – como a posse conjunta das Excelentíssimas Ministras Anielle Franco, no Ministério da Igualdade Racial, e Sônia Bone Guajajara, no Ministério dos Povos Originários, na quarta-feira (11). Mas não é só a política que desperta interesse feminista, e com este texto visamos trazer a atenção da leitora para um outro tópico: o que, após ano, sustenta discussões sobre “ser feliz com o próprio corpo”. 

Voltando à capa da Capricho. Nela, Fantin – então com 19 anos – posa de pé num cenário de fundo alaranjado, vestindo camiseta justa preta, calcinhas largas azuis e jeans arriado na altura do tornozelo; os braços dobrados para cima levam mãos levemente fechadas a cobrir sua boca, escamoteando o sorriso maroto, típico das revistas para adolescentes, que escapa pelo seu olhar. Aparece em destaque, entre outras manchetes de capa, uma citação atribuída à atriz: “sou feliz com o meu corpo”.

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Imagem: reprodução.

A legenda que a página pôs para acompanhar a imagem diz que “No início dos anos 2000, uma atriz estampou a capa de uma revista adolescente como exemplo por se aceitar com esse corpo.” Aqui fazemos alguns esclarecimentos, por prudência, mesmo achando que deveria ser óbvio: este ensaio não é sobre Priscila, seu corpo, ou sua declaração. Nosso texto não é sobre nenhum corpo, nem sobre o que significa ser feliz. Aqui, visamos navegar sobre a superfície de outra coisa: a produção de imagens e discursos que sedimentam a padronização. Esse texto se ocupa de desvelar padrões que se revelam a partir de lógicas normativas. 

Por “lógicas normativas” queremos dizer as práticas de produção e sustentação das normas que engendram padrões. As lógicas normativas que produzem e sustentam a padronização de corpos privilegiam branquitude, cisgeneridade dentro do, e o próprio binário de gênero, heterossexualidade compulsória, e plena capacidade física. Além disso, elencamos a juventude e a magreza como outras lógicas normativas a informar a produção de imagens da feminilidade que enfatiza a hegemonia da masculinidade. (E a leitora atenta saberá que os termos em itálico, e suas origens, são frequentemente referenciados nesta coluna). As narrativas que se ocupam de encorajar as pessoas a existirem e serem felizes apesar dos padrões são prova de sua força normativa. E uma avaliação breve das imagens que mais circulam – seja em capas de revista ou no cinema, televisão, publicidade e na cultura influencer das redes sociais – não é difícil observar o que elas ignoram, preferem ou veneram.

Dentro de um absurdo inimaginável, a capa com a Priscila Fantin a declara como estando “longe de ser magrinha” – o que não é um defeito, mas tampouco corresponde à realidade que podemos enxergar. Ela é, objetivamente, magra. A mesma perversão naturalizada pela mídia, e uma da mesma época, diz respeito às supostas “curvas acentuadas” da uber model Gisele Bündchen, que os autores desta coluna sempre pensaram descrever seus artificialmente enrolados cabelos, mas não exatamente seu lindo e magérrimo corpo. O padrão há muito privilegia mulheres de aparência emaciada – vide a modelo Twiggy (em tradução literal, “gravetinho”), ícone da moda dos anos 1960 e, na década de 1990, a exaltação da aparência “heroin chic” eternizada por uma muito magra Kate Moss em lingeries da marca Calvin Klein. 

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Kate Moss | Imagem: reprodução.

A escolha da capa de uma revista se dá por diversos fatores. Publicações como a Capricho povoam o imaginário coletivo – e não apenas de meninas adolescentes – já há mais de 70 anos, e a revista é considerada a primeira de seu gênero publicada no Brasil, tendo resistido, mesmo que a duras penas, ao império da internet e suas especificidades. Hoje, alinhada com os tempos, a revista existe no formato online e começa a dar sinais de abertura pró-diversidade.

Quando se fala em “revista feminina”, o primeiro questionamento que vem à mente é: quem é “essa mulher”, essencialmente abstrata, a quem essa publicação se destina? Para editar uma revista dedicada a “um público específico” é primordial homogeneizá-lo, torná-lo um corpo só, com interesses iguais, com o mínimo de variedade possível.

Esse material se retroalimenta: usa as estruturas anteriores a ele enquanto as reproduz, reformula e sustenta. No caso das publicações dedicadas às mulheres, essas precisam debruçar-se a códigos anteriores à sua própria existência; a cada época, revistas como Capricho servem a regulamentos próprios da sua geração. 

Não podemos esquecer que, se há muito tempo já parece ridículo que uma publicação adolescente ou jovem adulta publique dicas para “salvar o casamento”, ainda não é incomum que meninas sejam submetidas, nestas revistas, a testes inapropriados – como o de “etiqueta sexual” da capa que propulsiona a escrita deste texto. Testes como esses mandam mensagens nocivas: para que o namorado “goste do sexo”, a namorada é quem precisa aprender como agir. É pouca a diferença entre estes testes “descolados” e as mofadas dicas de outrora, como “mantenha-se calada para não o irritar depois do jantar”. 

Essas publicações são bastante responsáveis pela sedimentação de um desejo social e coletivo por ideais de mulher – que é mais frequentemente do que não cis, heterossexual, branco, magro, e privilegia a beleza acima de tudo e o recato perante todos. Assim, estas revistas acabam também por negligenciar particularidades das mulheres, e mesmo de homens. Quantas mulheres negras agraciam capas e reportagens, sendo bem representadas em forma e conteúdo? Sobre mulheres com deficiência, então, é rara até uma menção. Lésbicas ou bissexuais, sobretudo se trans, subvertem por demais o ideal de família tradicional para serem contempladas por estes veículos de padronização. 

E quanto aos homens, para eles o ideal de galã, sempre hétero, com faces de James Dean, olhar lânguido e lascívia palpável. Exatamente como ninguém que conhecemos na vida real. Ugh! Como fica a autoestima das pessoas invisíveis? Uma fala sobre isso, da roteirista, produtora, diretora e atriz Mindy Kaling sobre autoestima (em uma entrevista que infelizmente não conseguimos encontrar para este texto…) toca fundo nessa questão, e brilhantemente. O repórter que a entrevista queria saber como ela tinha tão boa autoestima – e aqui vale dizer que Mindy é estadunidense, de origem Indiana e, como Fantin, só não é lida como magra por gente muito entorpecida pelo padrão. Sua resposta sarcástica ao jornalista curioso, típica de sua comédia, foi que seus pais a criaram como se ela fosse um homem branco. Kaling, ali, explode a lógica padronizadora ao constranger seu entrevistador, um de tantas pessoas que imaginam que felizes são os que existem dentro de ideais padronizados. É genial que ela tenha escolhido, ao invés de sustentar qualquer fala piegas sobre a importância de se aceitar, expor o quão ridículo é privilegiar a humanidade padrão a ponto de achar que quem não cabe nela não pode ter uma autoestima saudável.

E importa também ressaltar aqui que as manifestações da padronização infelizmente não agonizam junto com a mídia impressa de massas. Ao contrário, esta prática informa, e muito, a cultura influencer. O que não falta na internet são mulheres magérrimas no Instagram ou TikTok divulgando guarda-roupas de milhões, dietas irresponsáveis, shakes de sabor indecifrável, química questionável e valor nutricional nulo, suplementos sem razão, e dá-lhe promover maquiagem, exercícios físicos (não por saúde, mas para atingir aparências específicas), harmonização, e tantos mais produtos e serviços cujas #publi reforçam este exato padrão a que nos referimos aqui. A insistência de que é difícil ser feliz fora dos padrões faz pouco além de reiterar e reforçar suas normas. Mesmo com influenciadores que se propõem a desafiar a norma, ela permanece viva, quase intacta. 

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Imagem: Unsplash.

As diferenças entre Jhonatan e eu são muitas, mas muito temos em comum – e foi nosso apreço por divas e teoria feminista o que engendrou uma amizade que há anos vem sendo alinhavada pelo interesse mútuo na produção de imagens da feminilidade. Decidimos escrever este texto porque nos interessa alargar o entendimento do que é humano, e erradicar do in/consciente coletivo a noção opressora de perseguir um ideal de humanidade. Lutamos por entendimento de que a diversidade é a realidade, e que por isso é fundamental estabelecer políticas públicas dentro do estado democrático de direito que favoreçam a inclusão dos marginalizados, causada pela força hegemônica da normatividade. 

Nós todos, todas e todes, não apenas “temos” corpos – nós somos nossos corpos e o que fazemos deles, e não há motivo para girar em falso debatendo se é ou não possível ser feliz fora da norma. Toda norma será questionada, e trabalhamos para que não reste dúvida de que todo corpo é um corpo de verão. 

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*Colaborou com esta coluna Jhonatan Zati. Zati é de Elói Mendes/MG. Pessoa com deficiência e LGBTQIA+, é graduado em Letras pela Universidade Federal de Alfenas e trabalha como professor com prática de educação popular no Emancipa e pré-vestibulares. Dedica-se a achincalhar a masculinidade vigente por meio da cultura pop e propõe um olhar diverso para o dissidente. Desenvolve pesquisas dentro da Crítica Literária Feminista e da Semiótica.

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    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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