De incel a red pill: a falta de efetivação da Lei Lola contra a misoginia na internet
Em entrevista, Lola Aronovich diz que ameaças de estupro corretivo recebidas por parlamentares seguem modus operandi masculinista
Nove parlamentares brasileiras foram ameaçadas de estupro corretivo no último mês, via e-mail institucional – de acordo com a blogueira feminista Lola Aronovich, os crimes seguem o modus operandi dos masculinistas, que se unem a bolsonaristas, neonazistas e supremacistas brancos para atacar grupos minorizados na internet.
Lola é professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará e autora do Escreva Lola Escreva há mais de 15 anos, tendo denunciado centenas de casos de misoginia. Por conta de sua atuação como ativista feminista, recebe ameaças de grupos masculinistas há mais de uma década. O autor de grande parte desses ataques, Marcelo Valle Silveira Mello, foi condenado a 41 anos de prisão em 2018.
Desde então Lola nomeia a Lei Federal 13.642, sancionada no governo Temer, cujo texto prevê que “quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres” sejam investigados pela Polícia Federal.
Em entrevista, a blogueira afirma que a lei, que deveria facilitar a identificação de autores de crimes misóginos na internet – já que os criminosos costumam se esconder por meio de sites hospedados fora do país –, ainda não foi devidamente implementada. Para combater o ódio contra mulheres, a ativista sugere que o Estado brasileiro criminalize a misoginia e investigue crimes misóginos com seriedade.
Jess Carvalho: Pode nos explicar o que são os grupos masculinistas? Como eles se organizam e agem?
Lola Aronovich: Há vários grupos masculinistas em todo o mundo. O termo red pill (que eles pegaram do filme Matrix para dizer que os homens que tomam a pílula vermelha passam a ver a verdade da sociedade – e a verdade pra eles é que o mundo é dominado pelas mulheres e que as vítimas da opressão são, na realidade, os homens brancos e héteros) abrange vários sub-grupos, como incels (os celibatários involuntários), MGTOW (Men Going Their Own Way, ou “homens trilhando seu próprio caminho”, que defendem a segregação de gêneros), PUAs (Pick-Up Artists, ou “artistas da sedução”, que são os coaches que lucram em cima de homens que fracassam em conquistar mulheres), por aí vai.
Em comum entre eles, a misoginia (quase sempre ligada a outros preconceitos, como racismo, LGBTfobia, capacitismo, gordofobia etc), um grande apreço por teorias da conspiração e pela extrema direita. Eles se organizam na internet, através de comunidades, fóruns, canais. Muitos se dizem focados no desenvolvimento dos homens, mas eles só falam (mal) de mulheres o tempo todo. Vários grupos masculinistas não agem, apenas ficam lamentando suas vidas, e não saem do lugar. Mas há aqueles que se organizam para atacar e ameaçar mulheres e meninas e para promover e celebrar massacres em escolas, por exemplo.
Quais grupos sociais costumam ser alvos da ação dos masculinistas?
Mulheres em geral, e feministas em particular, são os grandes alvos. Mas, assim como outros grupos da extrema direita, o masculinismo se junta a bolsonaristas, neonazistas e supremacistas brancos para atacar não só mulheres, mas pessoas de esquerda, negros, LGBT. Celebridades que estão em evidência também são atacadas. Por exemplo, a dançarina Thais Carla é um alvo constante, por ser mulher e gorda. O casal Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank também, por adotarem uma menina negra. Mascus em geral odeiam adoção (eles consideram “criar esperma alheio”, algo que emascula um homem), mas para eles também é inconcebível que um casal branco não reproduza crianças brancas. Eles também adoram atacar mulheres que estão na política. Em 2020 enviaram diversas ameaças a vereadoras negras, lésbicas, e trans que foram eleitas. Fazem isso sempre.
Esses grupos seguem ativos mesmo após a prisão de Marcelo Valle?
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Marcelo Valle Silveira Mello comandou apenas o grupo do Homens Sanctos através de um chan que ele criou, o Dogolachan. O chan não existe mais, embora volta e meia ele ressurja, sem causar impacto. O chan em si, quando esteve na superfície, entre 2013 e 2018, era um chan pequeno, com poucos membros. Ele cresceu mesmo e encontrou seu nicho de mercado ao migrar para a deep web, no final de 2018, e teve participação bastante ativa no massacre de Suzano. A sua influência continua. Houve ministros do Supremo Tribunal Federal que receberam ameaças assinadas por um “grupo Marcelo Valle”. No final de 2020, ao receber várias ameaças por telefone, eu notei uma diferença nos homens que me atacavam – eles estavam mais jovens. Eram adolescentes de 13, 14 anos. Havia turmas de jovens no Discord que se inspiravam no Dogolachan e queriam chamar a atenção e ganhar o respeito de mascus mais velhos. Até então, eu nunca tinha ouvido falar do Discord.
O caso das parlamentares ameaçadas de estupro corretivo tem similaridades com o modo de ação dos grupos masculinistas, de acordo com a sua experiência?
Sim, eles sempre fazem isso. É um meio de “gerar lulz” (render risadas), gerar notoriedade, competir pra ver quem consegue mais mídia, e, lógico, aterrorizar e tentar silenciar mulheres.
Você já tinha se deparado com esse discurso do estupro corretivo nos fóruns masculinistas antes?
O discurso do “estupro corretivo para lésbicas” já existia na época das comunidades misóginas no Orkut, por volta de 2008. No site de ódio criado e divulgado por Marcelo e Emerson Eduardo Rodriguez (que no início de 2018 fugiu para a Espanha, onde se encontra até hoje) em 2011, já havia várias postagens defendendo que lésbicas poderiam ser “curadas” e virarem hétero através do estupro. Em 2015, um dos vários sites de ódio que Marcelo criou se chamava “Tio Astolfo”. Algumas das ameaças que as parlamentares de MG receberam vieram assinadas por “Astolfo Bozzonio Rodrigues”, que era o personagem principal do site. Ou seja: são seguidores de Marcelo fazendo algum copy & paste de postagens antigas. Sabemos que a violência contra lésbicas é forte no Brasil.
Que destino geralmente têm as denúncias relacionadas a crimes como esse? Por que é tão difícil punir os autores?
É difícil porque em geral os autores são anônimos e usam equipamentos que disfarçam sua identidade virtual. No caso do Marcelo, mesmo que na maior parte das vezes ele usasse TOR ou algo assim para mascarar quem era, ele foi ficando crente na impunidade e passou a relaxar. Fez ataques partindo até do computador onde trabalhava. E foram anos de investigação até a polícia chegar a ele. Mas finalmente ele foi preso e condenado a 41 anos de cadeia.
A Lei Lola tem sido eficaz na identificação dos autores de crimes de misoginia praticados na internet? Você recebe relatos nesse sentido?
A Lei Lola ainda não foi realmente implementada. Continuo recebendo pedidos de ajuda de meninas e mulheres que são atacadas na internet e não sabem o que fazer. Vamos ver se agora que voltamos a ter um governo progressista e comprometido com os direitos humanos possamos realmente colocar a lei pra valer.
Mas a gente não sabe bem o que acontece nas polícias. Outro dia, ao ver o documentário Massacre na Escola: A Tragédia das Meninas de Realengo, fiquei feliz que o delegado Flavio Setti, que foi responsável pela Operação Bravata em 2018, que prendeu Marcelo, disse que a Lei Lola trouxe um ganho para as investigações nos crimes contra mulheres na internet, pois a polícia pode agir quando uma mulher é atacada pela sua condição de mulher.
Quais são as lacunas que o Estado precisa preencher para garantir que esses crimes não passem impunes?
Acho que tem havido uma melhora nos últimos tempos. As delegacias de crimes cibernéticos já entendem melhor que há muitos ataques misóginos. Essas delegacias antes pareciam se preocupar mais com crimes patrimoniais, como roubo de senha. Hoje é diferente. Também vejo uma comunicação maior entre as polícias. Vários massacres em escolas são impedidos por conta dessa colaboração. Alguns anos atrás, eu ficava exaltada ao perceber que um delegado da Polícia Federal de um estado não fazia ideia das denúncias pelo mesmo crime em outro estado. Hoje acho que há uma integração maior, necessária para uma investigação eficiente. Mas é preciso criminalizar a misoginia, assim como foi feito com o racismo e a LGBTfobia. Também é importante que a mídia continue falando desses crimes, porque ainda há muita gente que nem sabe que existem grupos organizados de misóginos que passam seus dias ameaçando mulheres.