Em menos de dez dias, oito parlamentares brasileiras receberam, em seus e-mails profissionais, ameaças de estupro corretivo e feminicídio. Todas registraram denúncias nas polícias civis de seus respectivos estados, mas a autoria do crime ainda não foi identificada. Um grupo de deputadas também acionou o Ministério da Justiça (MJ), e o órgão decidiu federalizar as investigações por meio da Polícia Federal (PF).

As ameaças começaram em 14 de agosto contra a deputada federal Daiana Santos (PCdoB-RS), as deputadas estaduais Rosa Amorim (PT-PE) e Bella Gonçalves (PSOL-MG), e as vereadoras Mônica Benício (PSOL), do Rio de Janeiro, e Iza Lourença (PSOL) e Cida Falabella (PSOL), ambas de Belo Horizonte. 

Os ataques contêm descrições do estupro, com requintes de crueldade, e o criminoso diz que seu objetivo seria “curar” as parlamentares, que são lésbicas, bissexuais ou aliadas da comunidade LGBTQIA+. Ele alega ter o endereço de várias delas e estende as ameaças a pessoas próximas, como a filha de três anos de Iza Lourença.

“Não é por acaso que uma violência como essa seja tenha sido cometida em agosto, que é o Mês da Visibilidade Lésbica”, destaca Mônica Benício. “É muito importante dizer que ser lésbica não é uma doença e portanto não precisa de cura, e que estupro é crime hediondo. Não aceitarei intimidações e nem ameaças violentas. Não vou recuar da luta contra a lesbofobia e a violência política de gênero.”

Daiana Santos conta que reforçou a segurança, mas entende que a motivação das ameaças é a intimidação, e não pretende deixar de lutar pelas pautas que sempre foram caras ao seu mandato, como o combate à LGBTfobia e à misoginia. No dia 29 de agosto, como ato de resistência, a parlamentar realizou a primeira Sessão Solene do Dia da Visibilidade Lésbica da história da Câmaras dos Deputados.

Em 21 de agosto, a vereadora Talita de Lima Barbosa (PSB), de Taubaté, que é lésbica e pessoa com deficiência, também recebeu um e-mail misógino e capacitista, cujo título dizia: “estupro vai fazer você andar”. “Diante de tal ato de violência e intimidação, manifesto profunda preocupação. Sinto que o ocorrido busca silenciar minha voz”, denuncia.

Depois dela, a deputada estadual Lohanna França (PV-MG) foi ameaçada. No e-mail, o criminoso escreve que, devido à proposta de instituir a “Semana Estadual da Maternidade Atípica” em Minas Gerais, a parlamentar tem “sangue nas mãos” e promove “irresponsabilidade feminina na sociedade”, por isso deve ser estuprada.

Ameaça masculinista

A blogueira feminista Lola Aranovich aponta que os crimes praticados contra as parlamentares seguem o modus operandi de grupos masculinistas que se organizam na internet, através de comunidades, fóruns e canais misóginos. “É um meio de ‘gerar lulz’ (render risadas), gerar notoriedade, competir pra ver quem consegue mais mídia, e, lógico, aterrorizar e tentar silenciar mulheres”, expõe.

Lola nomeia a Lei Federal 13.642 contra a misoginia cibernética, devido aos inúmeros ataques de masculinistas que sofreu na última década. O autor de grande parte deles, Marcelo Valle Silveira Mello, foi condenado a 41 anos de prisão em 2018

Segundo a blogueira, o discurso do estupro corretivo é muito comum entre esses grupos. “No site de ódio criado e divulgado por Marcelo e Emerson Eduardo Rodriguez (que no início de 2018 fugiu para a Espanha, onde se encontra até hoje) em 2011, já havia várias postagens defendendo que lésbicas poderiam ser ‘curadas’ e virarem hétero através do estupro”, resgata Lola.

“Em 2015 um dos vários sites de ódio que Marcelo criou se chamava ‘Tio Astolfo’. Algumas das ameaças que as parlamentares de MG receberam vieram assinadas por ‘Astolfo Bozzonio Rodrigues’, que era o personagem principal do site. Ou seja: são seguidores de Marcelo fazendo algum copy & paste de postagens antigas”, afirma.

Investigações

A advogada Luanda Pires, diretora do Me Too Brasil, observa que os crimes perpetrados contra as parlamentares estão previstos no Código Penal brasileiro como ameaça, estupro corretivo e violência política de gênero. 

“A gente vê que essas ameaças advém de uma discriminação baseada no gênero, por meio de uma violência política, que é para dizer que essas mulheres que elas não devem estar naquele lugar que elas estão ocupando”, analisa a especialista.

Ela ainda chama a atenção para o fato de que os e-mails foram majoritariamente enviados na semana em que o Supremo Tribunal Federal formou maioria para equiparar a LGBTfobia ao crime de injúria racial. Assim, os ataques também podem ser enquadrados como injúria LGBTfóbica. 

O maior desafio desses casos é identificar a autoria do crime. “Os grupos masculinistas, que é de onde saem esses crimes, estão organizados na deep web e nas redes sociais, e ainda existe uma dificuldade de identificação por parte da polícia, principalmente a polícia estadual, já que a hospedagem desses meios está localizada fora do país. Então, para a gente conseguir pedir a quebra desses IPs e chegar na origem do ataque, é preciso abrir uma ação judicial”, explica a advogada. 

No entanto, ela lembra que a internet não é terra sem lei e existe, sim, a possibilidade de requerer a quebra desse sigilo, seja por meio da polícia ou pela via judicial. 

Em 21 de agosto, o ministro Flávio Dino recebeu, em Belo Horizonte, as vereadoras Cida Falabella e Iza Lourença, a deputada estadual Bela Gonçalves e a federal Dandara Tonantzin. “As parlamentares apresentaram documentação com denúncias de ameaças e intimidação. O material foi repassado à Polícia Federal para abertura de inquérito”, diz o MJ ao Catarinas. A PF não informou sobre as investigações.

O Catarinas também solicitou posicionamento da Polícia Civil nos cinco estados onde os crimes foram registrados: Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Distrito Federal (DF), Pernambuco (PE) e Minas Gerais (MG) – essas duas últimas não responderam.

“A ocorrência foi registrada na Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin). O caso está sendo investigado. No momento não haverá atendimento à imprensa”, disse a Polícia Civil do DF.

“O caso é investigado por meio de inquérito policial instaurado pela Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Taubaté. A equipe da unidade ouviu a vítima, de 26 anos, e trabalha para identificar e localizar o autor. Detalhes serão preservados para garantir autonomia ao trabalho policial”, manifestou a PCSP.

“O caso é investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi). Diligências estão em andamento para apurar os fatos”, informou a PCRJ.

Estupro corretivo

De acordo com Paula Damasceno, pesquisadora em Direito e Saúde Pública, o termo “estupro corretivo” nasceu a partir das denúncias reportadas pelos coletivos lésbicos da África do Sul, no início dos anos 2000, sobre reiterados estupros cometidos sob o pretexto de “corrigir” ou “curar” a orientação sexual de mulheres lésbicas negras.

No Brasil, a violência sexual com o propósito de “corrigir” a orientação sexual e/ou identidade de gênero de mulheres lésbicas e bissexuais, além de pessoas trans, é relatada desde a década de 1980, mas naquela época o termo “estupro corretivo” não era acionado.

Em 2018, foi sancionada a Lei 13.718, que prevê aumento de até dois terços na pena em casos de estupro corretivo.

Mas, de modo geral, levantar dados a respeito do crime é um desafio para as pesquisadoras da área, que se deparam com a displicência dos órgãos de saúde e segurança pública do Estado. Damasceno explica que eles têm condições de registrar o estupro corretivo, mas raramente o fazem, gerando subnotificação.

A pesquisadora destaca a atuação de organizações da sociedade civil, que vêm se mobilizando para produzir dados sobre o estupro contra a população lésbica, como forma de subsidiar a criação de políticas públicas para combater esse tipo de violência. Exemplo é o Lesbocenso. Em 2022, 24,76% das 22 mil mulheres lésbicas que participaram do levantamento realizado pela Liga Brasileira de Lésbicas e pelo Coturno de Vênus do Distrito Federal, declararam ter sofrido estupro – 75,13% desses crimes foram cometidos por pessoas conhecidas.

Violência política

“É muito difícil ser uma mulher lésbica dentro do parlamento, que é um espaço dominado por homens brancos e tão hostil à diversidade. Então, a violência política de gênero me atravessa todo dia, de diversas formas, às vezes sutil e silenciosa, outras vezes de forma mais explícita”, lamenta Monica Benício. 

Desde que iniciou sua luta por justiça por Marielle em Anderson, em 2018, a vereadora conta que é alvo constante de ameaças, seja na rua ou na internet.

Da mesma forma, Daiana Santos entende que “ser uma mulher negra, lésbica e defensora dos direitos humanos é ser um constante alvo de violência”, sobretudo no parlamento. “Me atacam, intimidam, ofendem, mas não vão me parar.”

Rosa Amorim, cujo primeiro mandato completou seis meses em agosto, também sente que sua presença é rechaçada na Assembleia Legislativa de Pernambuco. “A violência política de gênero e de raça é uma tentativa de nos afastarem dos espaços políticos, porque a imagem que sempre venderam é que as casas legislativas eram para os homens brancos. Então, quando eu, uma mulher, negra, lésbica, jovem e sem terra, entro nesse espaço, muitos tentam questionar a minha presença aqui”, diz.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Política de Saia, em parceria com o Projeto Justiceiras, aponta que 51% das mulheres envolvidas no ambiente político brasileiro já foram vítimas de preconceito e discriminação porque são mulheres. Dois anos após a sanção da Lei n. 14.192, que criminaliza a violência política de gênero, o Ministério Público Federal monitora 124 casos em todo o país, a fim de investigar e responsabilizar os agressores – a pena prevista é de um a quatro anos de prisão. 

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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