No mês da Consciência Negra, o Catarinas lança a série “Aquilombar: enegrecendo a cultura catarinense”, que traz entrevistas com cinco mulheres negras, moradoras de Santa Catarina, que produzem cultura e memória no estado. A iniciativa foi promovida pela Fundação Heinrich Böll.

Já apresentamos a história da artista visual Gugie Cavalcanti e, hoje, vamos apresentar a cantora Dandara Manoela. 

No trabalho de resgate e registro dessas biografias, é importante destacar os contextos sociais e políticos que ajudam a explicar o apagamento da cultura negra no Sul do País. Segundo a União Brasileira dos Compositores, apenas 15% das pessoas associadas como autoras são mulheres. O Sul concentra apenas 9% dessas compositoras, perdendo apenas para a região Norte em relação à menor diversidade de gênero (2%).

Quando pensamos em quem manda no mercado fonográfico, a questão racial é ainda mais desanimadora: segundo levantamento realizado pelo jornalista e pesquisador Leo Feijó, para o seu livro “Diversidade na Indústria da Música no Brasil: um olhar sobre a diversidade étnica e de gênero nas empresas da música”, em 62,5% das empresas analisadas, menos de 5% dos cargos executivos são ocupados por pessoas negras.

Nos próximos dias, você vai conhecer mais sobre outras mulheres que resistem a esse cenário: Mana MoaMC, Solange Adão e Aldelice Style. Acompanhe!

Uma família negra se reencontra no palco

Assim que entramos na casa de Dandara Manoela em São José, Região Metropolitana de Florianópolis, uma fila de miniaturas coloridas chama a atenção. A cantora e compositora nos explica que acaba de aumentar sua coleção de alebrijes, artesanatos animalescos e coloridos que, reza a lenda mexicana, são protetores de sonhos e trazem sorte.

“Na primeira vez que fui ao México, trouxe dois exemplares, mas dessa vez quis aumentar a coleção”, conta a musicista. “Eu gosto muito das cores e do que dizem sobre eles voltarem de outras vidas com novos poderes. Um cachorrinho, por exemplo, pode voltar com asas”, explica.  

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Foto: Tay Nascimento.

Quando abriu as portas da sua casa, Dandara tinha acabado de chegar de viagem de sua última turnê no México, em comemoração ao Día de los Muertos. 

Moradora de Florianópolis há quase uma década, Dandara Manoela também encontrou uma reinvenção colorida de si quando saiu de Campinas, interior de São Paulo, para estudar Serviço Social na capital catarinense, em 2014. Foi na Ilha da Magia que ela profissionalizou um sonho que começou quando era criança, dentro da igreja e da música gospel. 

Em Floripa, Dandara descobriu que era uma pessoa política no movimento estudantil e muitas vezes manifestou suas opiniões por meio da música, o que chamou a atenção da rede cultural da cidade. Aos poucos, a artista foi criando uma rede de apoio que lhe deu forças para lançar o primeiro álbum, Retrato Falado, em 2018. Com o trabalho, ela ganhou o prêmio de melhor álbum daquele ano, no Prêmio da Música Catarinense. Ela já havia recebido, no ano anterior, o de melhor cantora.

O disco também deu origem a seu trabalho de conclusão de curso, “Retrato falado e a mulher negra no Brasil: uma reflexão sobre a relação entre o singular e o universal”. No texto, ela fala da música que dá nome ao álbum.

“Retrato Falado é espelho da realidade em movimento, denúncia e expressão, uma música que registra a história da minha bisavó, da minha avó, da minha mãe e a minha história, um retrato íntimo, a princípio. Mas é a partir da inserção na Universidade, no curso de Serviço Social, que passo a compreender que ‘Retrato Falado’ não é uma história pontual, mas sim o retrato de grande parte das mulheres negras na sociedade brasileira. Assim, neste trabalho de conclusão de curso, tenho por objetivo refletir sobre esta compreensão, a partir do movimento de sair do singular e buscar suas mediações com a totalidade das relações sociais e suas contradições.”

Hoje, Dandara está preocupada com as oportunidades limitadas que a Ilha oferece a seus artistas, em especial a pessoas negras que resistem na cultura catarinense. Ela pensa em voltar para São Paulo, mas, por ora, segue contribuindo para diversos projetos culturais de Florianópolis, como o bloco Cores de Aidê, do qual é uma das coordenadoras. 

Agnes Sofia Guimarães: Dandara, você comentou comigo que sua carreira musical teve uma forte influência religiosa por ter sido seu principal convívio em comunidade na infância. Pode nos contar como isso aconteceu e de que forma você construiu seu próprio caminho como a Dandara Manoela, que hoje canta tantos gêneros dentro da Música Preta Brasileira?

Dandara Manoela: Fui criada pela minha avó e tia paternas, na Igreja Adventista. E aí eu me lembro de um dia estar assistindo à Sessão da Tarde e eles estavam exibindo o filme Mudança de Hábito 2, que tem a Whoopi Goldberg como protagonista. Ela se fingia de freira e ensinava um coral de estudantes a cantar. Eu saí completamente apaixonada daquele filme, porque olhei aquilo e falei: “Eu quero ser cantora”. E eu tinha sete anos! Na época eu via os filmes e projetava diferentes futuros para mim, coisa de criança que fica pensando no que vai ser quando crescer. Eu já tinha me encantado por outras coisas, me imaginado lutadora, dançarina… Mas aquele filme me pegou de uma forma que só anos depois eu fui entender. Era um filme com uma protagonista negra, uma cantora fazendo coisas legais, incentivando estudantes a cantarem também. Hoje eu entendo que era um lance de representatividade que estava rolando ali comigo, já que, quando eu era criança, era difícil ver mulheres negras assumindo papéis legais em novelas, na TV, essa coisa de representações positivadas que não tínhamos. 

A partir dali, não parei de cantar. Como eu tinha o espaço da igreja para isso, eu fiquei pedindo para cantar nesse lugar. Primeiro eu participava de eventos sazonais, como Dia das Mães, Dia dos Pais, mas meu sonho mesmo era o coral, porque foi isso que me encantou no filme. Mas eu estava no interior de São Paulo, em Campinas, dentro de uma Adventista, com um coral composto em sua maioria por pessoas brancas e idosas, muito distante do coral do filme (risos). Só fui conseguir um espaço naquele coral aos 13 anos, mas nessa época eu também já acabei assumindo um papel de destaque de solista no coral, então comecei a viajar junto com o coral, a ter ensaios com mais frequência… 

A igreja foi mesmo a minha primeira escola de música, e eu tinha aula de canto particular, inclusive, com a regente do coral. Depois eu entrei em uma banda mais alternativa, também de gospel, formada por meninos, e comecei a cantar nos casamentos. Era ensaio todo sábado, eu vivia uma grande contradição. 

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Foto: Tay Nascimento.

Qual contradição?

Eu fui criada com a minha avó e a minha tia, dentro da Igreja Adventista.

Mas a minha mãe sempre foi de religiões de matriz afro, só que eu nunca morei com ela: eu a visitava em alguns finais de semanas, e na casa dela sempre havia muitos sambas. Lá eu fiquei muito apaixonada por aquela realidade, só que era sempre uma dualidade, porque a galera da igreja achava aquilo errado, mas eu estava ali, na casa dela, cada vez mais embalada pelo samba, MPB…

Era uma coisa conflituosa, saber que meu sonho de verdade era cantar aquelas outras coisas que estavam ali, né? Até que eu saí da igreja, e as coisas se desenrolaram. 

Como foi a saída da igreja? 

Desde cedo eu já sabia que não me encaixava naquele lugar, aliás, até me encaixava, mas parcialmente, porque a Igreja era meu palco, onde eu comecei a cantar. Mas eu não me sentia integrada espiritualmente, e também descobri, aos sete anos, que eu gostava de meninas. E já sabia, desde aquela época, que isso não era legal para a igreja, e os anos que passei ali dentro, passei lutando contra isso. Mas, enfim, eu sabia que não me encaixava. 

Então, com 17, 18 anos, como eu era Adventista, a gente tinha que guardar o sábado. Não podia trabalhar no sábado, só que nessa época eu arrumei um emprego em que eu tinha que trabalhar aos sábados. Foi meio assim, de propósito, e aí eu falava “gente, mas eu preciso trabalhar, eu sei que isso não é certo, mas eu preciso trabalhar”. Foi uma forma de eu ir me afastando aos poucos da igreja sem chatear muito a minha tia.

Quando consegui sair, eu senti muita falta de cantar, então foi bom para que eu conseguisse buscar o canto em outros lugares, né? Comecei a fazer outras conexões que me permitiram isso. Foi uma saída consciente, mais estratégica para ter minha liberdade de ser quem eu era, de assumir também minha sexualidade. 

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Foto: Tay Nascimento.

E fora da igreja, por onde você cantou em Campinas? 

Eu estudava em uma faculdade privada, um curso de Publicidade e Propaganda com ênfase em Marketing para o qual eu ganhei uma bolsa. Fui morar no centro da cidade, mais perto da faculdade, mas eu tinha amigos de Barão Geraldo [distrito de Campinas em que moram, em sua maioria, estudantes da Universidade de Campinas, a Unicamp], então eu ia pra lá, ia para as festas, e fiquei apaixonada. Falei, cara, era isso que eu queria para minha vida. Universidade pública.

E nas festinhas eu às vezes cantava, me jogava com a galera, mas eu via que essa mesma galera não me dava muita moral, primeiro porque achava que eu não tinha repertório, já que cresci na igreja, e depois porque era uma panelinha mesmo.

Eu acho essa história muito interessante, porque hoje eu tenho ainda os mesmos amigos e até outros, do curso de Música da Unicamp, e antes de começar a pandemia eles toparam fazer uma banda comigo para circular em Campinas, para cantar composições autorais minhas, mas só conseguimos fazer um único show, que foi em Barão Geraldo. Muito doido ver como as coisas dão volta…

Onde foi esse show lá em Barão? 

É que um desses meus amigos, Otis Selimane, um músico moçambicano muito talentoso, inclusive, tinha um projeto cultural dentro das repúblicas, então o show foi na república em que ele morava.

E foi muito simbólico voltar depois de tantos anos a esse lugar com algumas pessoas que eu conhecia na época anterior à minha saída de Campinas. Eu sonhei muito em ser abraçada musicalmente em Campinas, não consegui e então eu me fiz ser abraçada musicalmente em Florianópolis (risos). 

E esse salto para o Sul do Brasil? Como é que foi?

Eu perdi a minha bolsa de Publicidade de Propaganda, e eu fiquei meio desesperada porque eu não tinha condições de pagar uma universidade. Eu não botava fé que passaria em uma universidade pública. 

Então eu comecei a fazer um cursinho comunitário e pensei: “cara, vou ter que conseguir”, e aí, nessa de fazer o cursinho comunitário no meio desse auê, eu comecei a namorar uma menina que conheci pela internet. Ela morava em Criciúma, que é aqui perto. Eu nunca nem tinha ouvido falar de Florianópolis, Criciúma. A gente ficou namorando pela internet um ano e eu vim pra cá três vezes nesse período, eu sempre parava em Floripa para ir para Criciúma. Então eu tentei o Enem e na hora de escolher um curso, resolvi tentar no Sul, que pelo menos eu ficava perto da garota e já realizava meu sonho de ir pra universidade pública. E deu tudo certo.

Enfim, acabou que deu um mês que eu vim para cá, terminei o relacionamento que eu tinha com ela (risos). 

E você já chegou compondo suas próprias músicas? 

Cara, não vim pra cá compondo porque compor nem era um plano. Assim que eu vim parar aqui, eu já entrei na minha primeira banda, e a gente ficava fazendo as festinhas porque todo mundo sabia que eu cantava, então não demorei a receber convites para cantar em qualquer evento.

Em Campinas uma amiga que é poetisa sempre me falava: “Dandara, você precisa compor!”. Eu respondia: “Cara, eu sou intérprete e tá tudo bem!”

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Foto: Tay Nascimento.

Como foi essa experiência de cantar nas festinhas?

Eu saí literalmente da igreja, tudo bem que tive um tempo em Campinas em que me joguei, mas eu ainda era aquela menina da igreja que por mais que sempre quisesse romper com as normas, tinha muito conservadorismo introjetado dentro de mim. Então eu vivi uma vida que, logo de cara, me assustou quando eu fui para uma república em que o pessoal fazia cachaça para vender na Universidade Federal de Santa Catarina, coisa que para mim era tudo muito assustadora, sabe?

Assustador? Mesmo após a coragem de deixar tudo para vir para o Sul?

Ah, não no sentido negativo, mas no sentido de lidar com tantas novidades, informações… Eu convivia com pessoas veganas na república e eu nem sabia o que era veganismo na época. 

Ao mesmo tempo, foi muito bom viver e aprender tudo muito rápido. Eu entendi várias coisas, como a ideia de relacionamento aberto, que eu também nunca tinha ouvido falar. Era muita coisa diferente e eu comecei a ficar com uma dessas meninas que viviam essa forma de se relacionar. Era um rolê que a gente nunca conversou sobre, mas nitidamente ela ficava comigo e ficava com muitas pessoas ao mesmo tempo, e eu fui sacando isso. De vez em quando ela pegava o travesseiro, dormia lá no meu quarto e vice-versa. Um dia, ela chegava com uma outra pessoa e eu tinha que falar “oi, tudo bem, pessoal?”, e ia para outro quarto. 

Eu fui captando essa coisa sem muita conversa e surgiu minha primeira composição, que é Peixe. Eu sentia que a gente já tinha uma amizade, que a gente ficava, que não era nem sexo, nem amor. Para mim era poesia. Eu sentia que tinha muita arte naquilo.

Não sei se foi uma fuga da minha cabeça, mas eu pensava “cara, eu não preciso morrer de ciúme ou surtar, isso aqui que eu estou vivendo é arte!”. E um dia, ficando com ela, me veio esta frase na cabeça: “Nem sexo, nem amor, pra mim é poesia”. E aí foi a minha primeira composição aqui na Ilha, a primeira de todas. 

E qual foi o impacto da sua vivência universitária na sua formação política como mulher negra?

Eu gosto de dizer que já entrei na Universidade Federal de Santa Catarina dentro do movimento estudantil. Porque quando cheguei já estava rolando uma ocupação pedindo vários direitos aos estudantes, então pode-se dizer que já cheguei no olho do furacão, e também participei muito do movimento negro estudantil. 

Foi uma época de vários rompantes, assim como nessa casa em que eu vivi. Foi o rompante de alguém que cresceu na igreja e que não se conformava com aquele lugar. Aqui eu consegui nomear algumas coisas, então a galera de Campinas acha muito estranho quando eu falo, mas eu me encontrei muito em Floripa não por conta de Floripa, mas porque a universidade é esse lugar múltiplo, que tem gente do mundo inteiro, não só do Brasil. 

A universidade pública me trouxe essa possibilidade de me encontrar por meio da diversidade de experiências que pude viver nela.

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Foto: Tay Nascimento.

Você comentou que Dona Fátima (sua avó) também entrou na universidade com você…

Ah, minha avó é uma pessoa muito engraçada. Quando ela veio, em 2015, e entrou na faculdade para me visitar, ela falava pra todo mundo: “Eu entrei na universidade!”. Só que ela dizia isso no sentido literal de ter entrado fisicamente ali, e falava alto, as pessoas observavam rindo (risos). Mas ela estava muito emocionada de pisar na universidade onde a neta dela estava estudando. E ela faz amizade muito fácil, então todo mundo conversava com ela e eu lembro que a gente sentou no bosque da universidade. Ela começou a contar muito da nossa história de vida, coisas que me fizeram entender por que nunca fui criada pela minha mãe, que é filha dela. Eu cresci com muitas lacunas e sem entender por que, quando minha avó paterna estava brava comigo, dizia sempre: “Ai, e tua mãe não queria ter você e quis te abortar”. E então eu entendi a história por trás dessa frase. Eu comecei a entender muito não só da minha vida, mas de como a questão do racismo estrutural mexe com as nossas vidas. Enquanto mulheres negras, né? Essa conversa no bosque com minha avó se transformou na música Retrato Falado, que também deu nome ao meu álbum. 

Como você apresentaria dona Fátima a partir da história que ela contou a você – e que depois você transformou em música?

Minha avó foi e é muita coisa, ela já foi modelo, é uma mulher maravilhosa. Existem boatos de que ela já teria ficado com pessoas famosas e tudo mais. 

Mas ela também tem um histórico de ter ficado doze anos presa no sanatório. E ela também foi técnica de enfermagem, e já idosa, também cuidava de idosos. 

Uma mulher plural que se jogou muito na vida e que também tem uma dor pesada que carrega, a de que ela foi abusada quando foi fazer uma denúncia.  

Dentro da delegacia? Quando foi isso? 

Cara, a minha vó é jovem, tem 67 anos, e isso deve ter sido quando ela tinha uns 20 anos, então foi em meados da década de 1970. Ela chegou na delegacia para denunciar o pai dela, que agredia muito a mãe dela. Mas ela era vista como louquinha, todo mundo já a conhecia por essa fama, e a vivência em casa também era conhecida por ser pesada, então ninguém a respeitava. 

Ela entrou para fazer a denúncia, foi estuprada e saiu de lá grávida. 

Acho que eu compreendi um pouco essa coisa da minha mãe também querer me abortar, porque são gerações de sofrimento, né? Eu entendi, historicamente, que as mulheres negras escravizadas também queriam abortar seus filhos como uma forma de fuga. Que não queriam que eles viessem a esse mundo para sofrer o que elas já sofriam. 

Então algumas coisas foram se encaixando e até consegui me conectar um pouco mais com a minha mãe, porque parece uma coisa muito cíclica. Tipo, minha mãe não consegue se conectar com a mãe dela e eu não conseguia me conectar com a minha mãe, que também não me criou. Era tudo bem doído. 

Com todas essas informações eu fui transformando tudo em música e entendi que isso não era tão individual, que apesar das histórias serem outras e serem diversas, tinha uma coisa muito universal que violentava nossos corpos, as nossas histórias, as coisas que nos atravessavam enquanto mulheres pretas. E isso só no lado materno. Ainda temos a história da família paterna, principalmente da minha avó Delba, e da minha tia Deborah (Tata), que me criaram. 

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Foto: Tay Nascimento.

Quem é sua tia paterna?

A irmã do meu pai me criou sendo empregada doméstica a vida toda. Eu vivi muito na casa dessas mulheres, patroas, com a minha tia precisando dizer “nossa, obrigada por tudo que vocês estão fazendo por nós e não sei o quê”, e minha tia, na verdade, estava vivendo uma vida análoga à escravidão praticamente, porque ela trabalhava quinzenalmente e folgava um final de semana, para depois trabalhar por mais quinze dias sem parar e sem folga.

Eu vivi também nas casas dessas patroas durante toda a minha infância e fiquei rodeada por contradições. De ter um motorista particular que me buscava na escola, com ar-condicionado, porque eu vivia no quartinho de empregada da patroa dele, que também era da minha tia, mas saindo desse carro luxuoso, eu ia direto pra minha quebrada visitar minha avó ou voltar para casa.

Tudo isso não é apenas sobre ter sido a filha da empregada, as histórias de abuso que minha avó materna viveu. 

Eu também trago no álbum Retrato Falado que fui abusada pelo meu “vodrasto” (padrasto do pai). Na música Denúncia eu conto sobre isso. E é uma música que já nem canto mais em shows. Floripa, o movimento estudantil e o movimento negro abriram a minha mente para que eu não naturalizasse mais essas histórias, abrisse minha mente e levasse tudo para o disco.  

O que é o Retrato Falado?

O Retrato Falado é uma forma de fazer uma denúncia ao contrário, né? Porque o retrato falado é isso da gente, na delegacia, ver que desenham os rostos das pessoas que nos violentam e quando paramos para observar, são rostos de pessoas pretas. Elas que são sempre as suspeitas de terem cometido as violências. Quando comecei o Retrato Falado, a ideia era subverter um pouco isso, ser a pessoa preta com a cara estampada que tá denunciando, na verdade, e não a que está sendo denunciada.

É um momento de pensar o que essa sociedade faz com nossos corpos, com as nossas famílias, com as nossas cabeças. Muitas vezes a falta de amor que existe dentro de algumas famílias pretas é também reflexo dessa estrutura social. Eu trago um pouco disso nesse primeiro álbum. Nesse primeiro momento é um álbum até bastante denso. Eu já acho que me distanciei bastante da essência dele.

Por que você sente que se distanciou dessa “essência”?

Porque eu acho que a gente está em movimento, e aí quando eu lancei o single Pretas Yabás, depois do álbum, eu quis ver as coisas de um outro lugar, me colocar num outro lugar, não só ser aquela pessoa que denuncia. Para mim foi importante assumir as denúncias, foi um respiro, mas eu queria também celebrar o fato de estar viva e de estarmos vivas. Então, no single Pretas Yabás eu levo literalmente para o centro mulheres pretas daqui de Floripa que me fizeram renascer. 

E de novo o ciclo das mulheres pretas que me colocaram no mundo, que deram tudo para que eu estivesse aqui. E aqui eu ganhei mais fôlego. Então eu trago pessoas que são referências para mim, pessoas amigas, e a gente faz essa ocupação, cada uma no seu melhor momento, vestidas de rainhas, honrando a diversidade de cada uma delas. 

Acho importante denunciar, mas também quero valorizar nossas existências e celebrá-las. 

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Foto: Tay Nascimento.

Ainda assim você continua com essa essência quando busca ocupar o território a partir do que você escolhe como trajetória, você não acha?

Foi uma ocupação de um território que dizem que não é nosso, de um território embranquecido. Teve uma época que a gente só podia ocupar os centros da cidade para trabalhar. Sempre tinha alguém para nos lembrar que a gente precisava voltar. Voltar para as margens, para o morro, então a música é uma forma de ocupar esse lugar de centro como nosso, não só como um lugar de servir. 

Para mim, simbolicamente, foi uma forma de dizer “olha, esse espaço também é meu e esse espaço também é nosso”. E valorizar essas mulheres que me acolheram nesse lugar, né? Porque todo mundo ainda estranha quando eu digo que fui acolhida por Florianópolis, mas não é uma coisa do nada. 

E as turnês pelo Sul? Sentia algum conflito por parte do público?

O François Muleka é um artista que eu chamo de padrinho. Ele disse que há 20 anos, quando ele começou aqui, ele foi um dos pioneiros entre os artistas negros que vieram para cá. Ele era um dos únicos nos palcos. Assim, um dos únicos mesmo, né? E as pessoas não estavam prontas para ouvir artistas como ele. Ele foi abrindo portas para outros artistas pretos que foram chegando e eu sinto que eu peguei muito isso como missão no primeiro momento que realmente subi aos palcos daqui.

As coisas foram mudando tanto a ponto de eu ser reconhecida como melhor cantora representando Santa Catarina em um prêmio grande! E em prêmio que teve uma parte de voto popular muito grande, né? Então isso, pra mim, para além do que literalmente possa significar, não responde se houve uma melhora ou não da aceitação do público, mas responde que a gente tem como missão abrir mais portas.

E fora da Ilha, como é ser recebida como cantora do Sul, de Florianópolis?

Aqui eu já convidei o cantor Rincón Sapiência para cantar comigo. Esse território me traz muitas experiências. Eu sinto quase como uma anfitriã muitas vezes, sabe? Eu também fico feliz por isso, mas eu quero mais, eu quero ser recebida também, assim como eu recebo as pessoas aqui, quero poder ir para São Paulo e cantar com artistas de São Paulo, mas sinto falta da visibilidade da imprensa sobre o que produzimos de cultura aqui. Falta interesse em fazer a gente ecoar, sabe? Eu sou uma artista independente e eu tenho muita coisa para falar. A gente faz coisas gigantes. Tem uma artista grandiosa: Marissol Mwaba, que viveu aqui por muito tempo, fez colaborações com Luedji Luna, gravou no disco do Emicida, é professora de canto da Mariana Aydar e pouco tem sido reconhecida em seu território.

E quando vamos ter o próximo álbum seu, Dandara? 

Tenho um desejo imenso de um novo disco, mas aqui começa um novo desafio, porque o meu primeiro disco saiu a partir de um financiamento coletivo e eu sinto que é uma coisa que já não é mais o momento para tentar com êxito. Eu acho que já não está funcionando tanto quanto uma vez que eu já fiz, eu gostaria de conseguir através de outros recursos. A gente está escrevendo editais, traçando estratégias porque é custoso. Agora é mais. Na época, 20 mil reais já dava, agora precisamos de muito mais. 

Mas a ideia de um single me agrada muito. Eu acho que a gente tem que ter flexibilidade, né? Não dá para parar. Singles e clipes ajudam a nos manter em movimento.

Referências mencionadas por Dandara durante a conversa:

Otis Selimane Remane – Músico, produtor, educador moçambicano, radicado no Brasil há quase uma década, já realizou trabalhos ao lado de artistas como Luedji Luna. Foi o vencedor do Prêmio Novos Talentos do Jazz 2018. É formado pela Unicamp, onde também atua como pesquisador de etnomusicologia.

François Muleka – Cantor, compositor e multi-instrumentista brasileiro de origem congolesa. O artista já lançou quatro álbuns autorais e em 2017 sua obra em coautoria com sua irmã, Marissol Mwaba, intitulada Notícias de Salvador, ficou conhecida na voz de Luedji Luna.

Cores de Aidê – Grupo formado por mulheres e pessoas LGBT+ que tocam, cantam e dançam o samba reggae em Florianópolis. Hoje, o bloco é um dos mais famosos do Carnaval catarinense.

Marissol Mwaba – Cantora e compositora brasileira, multi-instrumentista, de origem congolesa.

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  • Agnes Sofia Guimarães

    Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Apl...

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