Eu sou de Salvador, mas fui adotada pela ilha e já tentei sair daqui de todo jeito, mas ela não me deixa”, brinca Aldelice Batista Braga, 59 anos, na sua casa na região nordeste de Florianópolis, no Rio Vermelho. 

Com uma agenda disputada para o final do ano, a mulher de três profissões, como Aldelice mesma se define, é CEO há quase 15 anos da marca que criou quando o médico pediu para que ela abandonasse a dança, devido a uma lesão nos quadris. A também dançarina e professora de educação física recebeu o atestado de invalidez, mas rejeitou a aposentadoria. Aprendeu a costurar naquele mesmo ano de 2009 e não demorou a começar um novo ofício de corte e costura – que também defende como ancestral, conforme conta ao Portal Catarinas.

Esta é a quarta entrevista da série “Aquilombar: enegrecendo a cultura catarinense”, promovida pela Fundação Heinrich Böll. Na última semana, divulgamos as entrevistas de Gugie Cavalcanti, Dandara Manoela e Solange Adão

Passos e costuras que atravessaram Atlânticos e estatísticas 

A indústria criativa é formada por áreas que têm o conhecimento e a informação como matérias-primas, como a cultura, a tecnologia e a publicidade. A indústria criativa catarinense é uma das forças motoras da economia do estado de Santa Catarina e um destaque na economia criativa do Brasil. Dados do Painel do observatório do Itaú Cultural, divulgado em 2023, contam que a cultura e a criatividade de Santa Catarina respondem por 8,5% do produto interno bruto (PIB) do setor cultural brasileiro. O dado é de 2020, ano em que a economia criativa do país todo superou a indústria automobilística e a indústria extrativa no PIB. 

Entre os estados, Santa Catarina acaba ocupando o terceiro lugar na economia criativa nacional, sendo o terceiro estado que também conta com o maior número de empresas do nicho. Se a moda que Aldelice produz, vende e emprega faz parte do sucesso catarinense, ela própria, que também é uma das fundadoras da Feira Afro ao lado da atriz Solange Adão, acaba representando uma figura da economia criativa que ocupa uma parcela muito pequena da empregabilidade do setor a nível nacional.

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Foto: Tay Nascimento.

O Painel de Dados do Observatório Cultural também traz que a participação de negros (pretos e pardos) na economia criativa brasileira é menor do que na economia geral do país. Entre o 2º trimestre de 2022 e o 2º trimestre de 2023, a participação de trabalhadores negros no total de ocupados na economia criativa foi de, em média, 41%, menor a média de 54% de pessoas negras que atuam de alguma forma em toda a economia brasileira. Entre a população branca acontece o inverso: o percentual de trabalhadores é maior na economia criativa do que no grupo geral. Temos uma média de 57% comparado aos 44% agregados na economia brasileira.

Dentro do setor criativo, os trabalhadores negros se concentram em ocupações culturais em Atividades Artesanais, nas Artes Cênicas, Artes Visuais, Cinema, Rádio e TV, Música e Museus e Patrimônio), comparadas a ocupações de consumo e tecnologia. Dentro das ocupações culturais, nos últimos dez anos, os setores que mais empregaram pessoas pretas e pardas foram o Design (passando de 4% para 10%), Moda (de 5% para 9%) e Atividades Artesanais (de 6% para 10%). E é importante destacar que não são cargos de liderança, já que os salários médios de pretos e pardos seguem sendo cerca de 40% menores do que os dos trabalhadores brancos da economia criativa. Mulheres pretas recebem 60% a menos do que homens brancos. 

Dados que reforçam a resistência que Aldelice criou não só em relação aos desafios da vida, quando não aceitou desistir diante do diagnóstico médico que recebeu em 2009, como também às práticas da branquitude de apagamento, e de micropolíticas para não empregar pessoas negras no mercado. Atravessamentos de toda uma vida da estilista, que, antes da moda, foi a Nêga da dança de Santa Catarina. Seu trabalho foi um dos pioneiros na dança afro-brasileira na ilha de Florianópolis, conforme ela conta a seguir.

Já que a marca Aldelice Style surge depois, como surge a Nêga dançarina?  

Em relação ao próprio nome Nềga, eu me apresentava assim porque eu não gostava do meu nome. E em Salvador só me chamavam de neguinha, por causa do pessoal da faculdade e do esporte. E aí, quando eu cheguei a Florianópolis, o pessoal também começou a me chamar de Nêga, Neguinha baiana, né? Meus amigos Fátima Lima e o Edinho também me chamaram assim e eu ajudei a fundar com eles o Bloco Africatarina

Mas a história com a dança começou com o fato de que sempre fui uma pessoa muito ativa, desde a adolescência. Eu fui corredora, velocista. Não cheguei a ser profissional, eu competia em campeonatos escolares e depois na faculdade. Estudei em escola pública e naquela época ela oferecia muitas oportunidades. Meio turno eu estudava, e meio turno eu fazia as atividades: capoeira, corrida, dança…

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Foto: Tay Nascimento.

Vocês são quantos na família?

Eu tenho dois irmãos do casamento dos meus pais e sou a primogênita deles. Mas o meu pai era aquele típico homem, daqueles que são ensinados a ter várias mulheres, então antes do casamento com a minha mãe ele também teve a minha irmã mais velha.

Meu pai era o católico apostólico romano que só ia à igreja uma vez ou outra. Mas a minha mãe veio do interior da Bahia, de uma cidade chamada Amargosa, porque ela tinha perdido a mãe e as irmãs não tinham como cuidar dela. E a minha avó pediu para que uma família de Salvador cuidasse da minha mãe, que é justamente essa minha família, com os tios que eram alfaiates e que ensinaram a minha mãe o ofício da costura. As minhas tias eram costureiras também…E foi dali que eu fui direcionada para o candomblé, que era a religião dessa família da minha mãe. Então, na minha dança também tem a minha infância no terreiro, já que era o nosso momento de brincadeiras. Nas festas, a gente ficava ali vendo os movimentos, as movimentações, a maneira de vestir os orixás, a maneira de fazer comida. Tudo isso influenciou muito na minha vida. Porque além das roupas, hoje, também gosto de cozinhar, arrisco aqui de vez em quando a comida típica baiana, mas hoje ando preguiçosa, porque a roupa me tira totalmente a energia (risos).

O terreiro então foi sua primeira escola de dança, de alguma forma?

Sim. Inclusive, eu tinha certeza que eu tinha nascido no Curuzu [bairro de Salvador] mesmo, mas há uns 5 anos uma grande amiga da minha mãe me disse: “Não, você nasceu aqui no Candeal [bairro de Salvador], você nasceu na maternidade, que era perto do terreiro do Curuzu”.  Então, eu tinha toda essa intimidade com o Ilê, como eu tenho até hoje, né? Eu tinha essa apropriação de que eu tinha nascido dentro dele, mas na verdade nasci no Candeal, que é um outro celeiro musical. Na verdade esses espaços são guetos, quilombos. O Curuzu, com o Ilê Aiyê, o Candeal, com o Timbalada. 

Depois eu fui morar com 11, 12 anos no Cabula Conjunto ACM, quando a minha mãe conseguiu comprar um apartamento lá, popular. E foi o meu terceiro gueto, porque ali eu também tive vivência com muitos meninos do meu bairro que gostavam muito de música. E eu morava em um conjunto habitacional em que metade dos moradores eram servidores públicos de escolas, a outra fazia parte do Corpo de Bombeiros, em que muitos desses bombeiros tocavam em filarmônicas, com filhos que depois também se tornaram artistas, então foram referências fortes. Do Cabula que surgiu a banda Reflexu’s que foi uma inflûência forte para mim. 

E, na escola, eu tive contato com a dança afro e foi assim que fui me formando, tive aulas com Mestre King, Antonio Cozido, Edileusa Santos. Dancei também com um balé folclórico chamado Viva Bahia, da Emília Biancardi, e esse grupo me ensinou a jogar capoeira, me ensinou a dançar afro… Eu bebi muito da fonte do momento que Salvador estava, em que a cidade levava a dança para os bairros, para as escolas, para as igrejas.

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Foto: Tay Nascimento.

E por que faculdade de educação física e não dança? 

Na verdade, eu queria fazer faculdade de dança, mas na época tinha teste de aptidão e eu não tinha ponta de pé, de bailarina clássica e foi uma das primeiras coisas que me eliminaram. Disseram, olha, você não vai poder fazer prova para dança, porque você não tem planta de pé para para fazer a prova de bailarina. Então eu não tinha essa habilidade toda, porque a minha habilidade era outra tipo, eu não tinha ponta de pé, eu tinha aquela coisa do pé enraizado, através da dança afro. 

Onde você se formou em educação física?

A educação física foi a minha opção, né? Porque eu queria alguma coisa que tivesse ligada ao que eu já estava fazendo, para o qual o meu corpo já estivesse preparado. Eu fiz o curso na Ucsal, que é a Universidade Católica de Salvador. Fiz particular, porque naquela época eu não tinha condições de bancar uma universidade pública, já que precisava trabalhar meio turno, e a faculdade pública era integral. 

Então fiz particular, com muito custo. Tive que vender bolo, tive que vender amendoim na universidade. Tive que virar sacoleira, que é algo que também mostra a minha relação com a roupa desde antes, né? Porque eu vendia roupas esportivas. Eu sou sagitariana, gosto muito de dinheiro [risos], então eu tinha que dar movimento, tinha que estar fazendo dinheiro, fazendo dinheiro circular e com isso eu aprendi também o ofício de manicure, que também contribuiu muito para o pagamento do meu curso de educação física, que era muito caro, né?

Você tem boas lembranças da faculdade que depois tiveram um impacto positivo na sua carreira? 

Foi uma fase maravilhosa, né? Eu me senti no parque de diversões, foi uma das melhores aquisições da minha vida. Ali dentro eu conheci muitos estados, porque eu fiz parte do movimento estudantil também. Com o movimento estudantil eu tive que viajar para os congressos, também precisei viajar como atleta nas competições de faculdade. 

Eu gosto de viajar, foi uma fase em que pude aproveitar, porque eu joguei handebol também por muito tempo, também praticava atletismo, tinha a dança e nisso conheci muitos estados do Brasil já naquela época. 

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Foto: Tay Nascimento.

Na vida acadêmica você chegou a estudar dança em algum momento?

Em 2012 eu decidi fazer uma pós-graduação. Foi o momento em que eu disse, “Ah, eu acho que eu agora vou encarar aqui um sonho que era a faculdade de dança”, e fiz a minha pós-graduação, que foi um caos. Foi uma das piores coisas que eu fiz na minha vida, porque na época eu achava que era uma boa ideia porque eu estava voltando para passar uma temporada em Salvador, porque estudei na UFBA (Universidade Federal da Bahia), na especialização em Dança Contemporânea. 

Mas foi uma catástrofe, né? Eu saí de lá totalmente decepcionada, totalmente desapontada. 

Puxa, mas que surpreendente. O que aconteceu lá?

Foram três anos de muita chatice. Porque ninguém queria me orientar,  eu não achava nenhuma professora que pudesse me acolher com a minha dança afro. E estávamos em Salvador, uma cidade completamente negra, que tem dança negra nas academias de ginástica. Mas na Academia (referindo-se à área científica) rejeitavam minha pesquisa, rejeitavam a minha dança.

E lá chegavam a dizer que a minha arte não era uma dança orgânica. E eu questionava, mas como não era uma dança orgânica? A dança afro não era uma dança orgânica, mas o que é orgânico, então? Com os blocos afro lá nas ruas e por aí? Era uma época em que não tínhamos professores negros como tem agora, eram professores que vinham do interior de São Paulo, concursados e sem familiaridade com a dança baiana. 

Então isso pra mim foi um momento muito ruim, sabe? Dentro dessa especialização, me traumatizou bastante. 

Aquele problema que bem sabemos da cultura negra ser interessante apenas como objeto de estudo, e não como sujeito, não é mesmo?

Eu já tinha uma resistência com a Academia. Eu acho que é um lugar tão impróprio. Eu aprendi nas academias que os poucos que fazem, são os que mais escrevem. Então, criei essa resistência, não generalizando, mas vivendo dentro da Academia, trabalhando com pessoas da Academia, eu vi que as pessoas que fazem pesquisa acadêmica escreviam o que eu fazia, o que o artista popular estava ali fazendo há anos. Era para esse artista ser o doutor, ele que era para ser o mestre. Então, isso para mim sempre foi uma questão, a Academia nomear uma pessoa que está escrevendo sobre uma cultura popular de mestre. Alguém que é mestre sem sequer pôr o pé no chão, sem sequer vivenciar essa cultura, essa tradição. E só porque ele escreve sobre essa minha arte? Ele é um mestre? É um dos questionamentos que eu tenho com a Academia, a minha grande resistência.

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Foto: Tay Nascimento.

E como você foi trocar a praia de Salvador por Florianópolis?

Então, menina, o que me trouxe para cá é que, com essa coisa de ter muitos amigos, eu tinha uma dupla de amigos daqui que passavam sempre o Carnaval em Salvador. Um dia, no meio do Carnaval, eles me encontraram muito triste porque eu tinha acabado de ser demitida de um clube. Então, eles me sugeriram “Baiana, com essa dança do axé, dos blocos, você ia ficar rica no Sul”.  

Eu me mudei para cá, mas quando eu cheguei para oferecer aula, todas as academias já diziam que tinha uma “Cintia” que já estava oferecendo a mesma dança, então fui atrás dela para entender isso. Aí eu cheguei em uma aula dela, expliquei que era baiana, que trabalhava com dança e logo de cara ela me disse “Ah, você trabalha com dança? Então você é que vai dar aula hoje!” [risos]. 

E com a Cíntia Abadá: vocês trabalhavam como? 

Ela, na verdade, fomos nós duas que fizemos a dança afro na ilha. Mas mesmo antes já teve também a Sandra Mascarenhas. Só que nós duas levantamos muito forte essa corrente. Começamos a dar aula em projetos sociais. 

Nas aulas os moleques não prestavam atenção, e aí a gente sempre se questionava “E agora, como vamos fazer?”. Mas na época estava em alta o Tchan, a dancinha da garrafa, 

e um belo dia, levei uma garrafa plástica. “Bom, então hoje vamos lá, galera. Hoje vai ter uma aula de dancinha da garrafa, aí a molecada toda entrou na sala e eu meio que fui conquistando, né? Foi bem bacana”.

E foi daí que eu comecei a desenvolver esse trabalho de dança afro com a Cíntia. Depois ela saiu, foi fazer faculdade de dança em Curitiba e eu continuei dando aula. 

Chegaram a construir um estúdio só para vocês?

Não, a gente nunca teve estúdio, a gente dava aula em associações culturais, em academias, né? Em praças públicas, também criamos o ritual de 2 de fevereiro, que começou porque eu estava aqui triste, porque estava passando meu 02 de fevereiro fora de Salvador. Ela me disse “Não, amiga, não fica assim, vamos levar as alunas para a praia”. Convidamos, fomos leves, chamamos o Gerry, percussionista, o Nicolas, que era um francês que havia morado muito tempo em Senegal, e fizemos nosso Dia de Iemanjá.  

Aí depois, com o Nicolas, a gente montou um bloco, o Batukajé. Que foi uma forma da gente trazer homens e mulheres tanto tocando, quanto dançando.

Por quanto tempo vocês tiveram o Bloco Batukajé?

Tivemos esse esse bloco por 11 anos. Foi um dos pioneiros em dança afro, a gente se perpetrou principalmente na Lagoa, a gente criou o Carnaval lá. A gente fechava o trânsito, era muito xingado, mas também éramos muito amados, porque vinham muitas famílias acompanhar o bloco. A gente vinha com pessoas com perna de pau e vinha muitas famílias. E durante o ano todo trabalhávamos com as pessoas nas aulas de dança e de percussão. No Carnaval a gente pegava esses alunos e levava para as ruas. Paramos 11 anos depois, quando surgiu aquela vontade de cada um seguir para seu lado, algo natural da vida. 

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Foto: Tay Nascimento.

Como a Nêga, enquanto oficineira ou professora, leva a dança afro para as suas aulas? 

Eu trouxe a minha questão, mesmo de dançar uma dança afro-baiana, né? E a partir das danças dos blocos afros também trago a simbologia das danças dos orixás. Eu não trabalho a dança em si dos orixás, eu trago símbolos de códigos dos orixás, mas não todos os trejeitos, porque eu busco respeitar a minha religião. Eu não preciso levar para a rua o que a minha religião me deu. Então fica uma coisa mais visual e com respeito.

Comparando com o balé, que tem o plié como um dos seus principais movimentos de base, quais seriam os princípios das danças afro?

Eu costumo dizer que o plié da dança afro é o ijexá, que é o pai de todos os ritmos da dança afro-brasileira. Ele tem essa importância muito grande no gesto, né? Nos gestos corporais, do negro e da dança, através dos orixás. Porque, nenhum orixá faz a sua dança, sem antes fazer os passos do ijexá, que é a base das danças do bloco afro também. É aquela coisa de fincar o pé no chão e de fazer o movimento de fluidez dos braços, como se você estivesse numa onda, como se você estivesse numa lama, brincando e fechando. Ou dando, ofertando e recebendo. Uma forma de você agregar essa coisa da cultura negra, de acolhimento. Ijexá é o acolhedor dos gestos. A partir dele, você vai ser conduzida ao maracatu, ao coco, a vários movimentos corporais negros.

E quais foram as similaridades que você encontrou nesse estudo desenvolvido durante a especialização?

O meu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) foi sobre a similaridade da dança do orixá Xangô com o Sabar, que é uma dança típica tradicional do Senegal. A primeira vez que eu vi as pessoas dançando, “sabando”, eu olhava e dizia, “Nossa, parece que ele está dançando para Xangô”. Aí eu fui perguntar para o pessoal se essa dança era de Xangô. E me responderam que não, que era o Sabar. Eu saí de lá intrigada com isso. E eu via os movimentos muito parecidos com o momento da evolução de Xangô. 

O que levou você a ter essa relação tão forte com o Senegal?

Na verdade foi uma curiosidade, porque quando eu fazia parte do movimento estudantil, tínhamos contatos com muitos africanos que vinham estudar em Salvador, e eles sempre me questionavam se eu era senegalesa. Eu dizia, “Não, mas por que me pergunta?”. Os próprios africanos diziam “Não, porque você tem esses olhos muito grandes e essa testa comprida e essa canela muito fina”. Então isso ficou registrado na minha memória e quando eu tive a oportunidade, em 2001, logo depois que eu perdi os meus pais, de fazer algo com a pequena herança deixada, eu fui viajar, viver o luto desbravando o mundo. Na Europa, também conheci africanos que me perguntavam se eu era senegalesa. Então voltei ao Brasil, juntei mais uma grana e fui para Senegal com um amigo. Foram 29 dias que foram quase 29 meses, porque eu vivenciei muitas coisas nesses dias que eu estive lá.

Acabou encontrando algo dessa ancestralidade que apontavam para você?

Na minha infância meu pai, que era policial, sofreu um acidente em serviço e ficou por muito tempo sem memória. Foi muita dificuldade viver a recuperação dele. Então, no dia que eu cheguei no Senegal, um dos amigos desse meu amigo convidou a gente para ir almoçar na casa do irmão dele, e fomos almoçar na casa do irmão dele. Quando eu cheguei na casa do irmão desse cara, ele contou toda a história do outro irmão dele, o irmão que ele amava muito, que ele tinha ido pra Paris trabalhar, pra mandar dinheiro pra família no Senegal. E ele foi atropelado em Paris e ficou por muito tempo desaparecido, já que demoraram a reconhecê-lo no hospital. Uma história parecida com meu pai, porque ele também ficou sumido antes de reaparecer. Então vamos na casa desse outro irmão. E quando chego lá, o cara abre a porta e ele é igualzinho ao meu pai!

E com a mesma história que ele viveu. Eu comecei a chorar e ele chorava e ninguém entendeu nada. E esse homem me olhou e me abraçou, eu comecei a chamar ele de pai e ele me abraçou. Isso foi muito louco, porque eu tinha acabado de perder o meu pai.

O meu amigo não estava entendendo, o irmão do cara não estava entendendo. E aí eu comecei a falar como se estivesse conversando com meu pai, ali com meu amigo traduzindo para eles. E sabe que depois que o meu pai faleceu, eu me sentia muito em débito com ele, então eu repetia para o homem, “Nossa pai, eu poderia ter feito isso, poderia ter feito aquilo”. E ele disse para mim, “Não precisa fazer mais nada. Tudo o que você fez por mim já está feito e foi muito bem feito. Você estudou, você tem uma profissão, você me orgulha muito”. 

Depois eu andava pelas ruas e as pessoas me paravam e já vinham falando comigo se eu as conhecesse, e eu ficava com cara de paisagem, sem entender nada. E elas se irritavam! Diziam “Agora você desconhece a sua amiga. Você não fala mais comigo, só porque está com esse europeu”. 

Em cada mulher que eu via, cada pessoa que eu via, eu identificava. “Aquela mulher parece com a minha tia. Aquela mulher parece com a minha mãe”. Foi uma coisa muito de identidade muito forte. Foi uma vivência muito louca. Eu  pirei. A relação da comida, a forma deles lidarem com a família. Tudo era muito parecido com a minha família e aí foi essa a questão da identidade com o Senegal.

Um encontro que, depois, você levou para a dança…

Dali eu continuei estudando que foi daí que eu montei o bloco com o Nicolas. Através desses estudos que eu comecei a trabalhar,  aprimorei mais sobre as danças africanas, principalmente as danças senegalesas. Que era o Sabar e fui enveredando. Foi meio que trazendo códigos de outras danças também dentro desse meu trabalho. Eu pesquisava muito sobre outras danças tradicionais. É uma dança afroartesanal.

O que seria uma dança afroartesanal?

No bloco, por exemplo, eu trazia toda a minha intuição e apresentava ao Nicolas, que era o francês que teve muito contato com africanos. Daí ele botava um ritmo e dentro daquele ritmo, eu jogava uma intuição, mas quando eu dava a minha aula para as minhas alunas não seguia exatamente aquele ritmo, já ia aprimorando. Eu fazia o que o meu corpo sentia, conduzia minhas alunas artesanalmente, daí o nome.

Como se estuda uma dança?

Eu tenho meus livros de danças, biografias de danças, textos de pesquisadores, cds. Esses são meus materiais de pesquisa. As músicas e os livros. Mas eu acho que é só dançando mesmo, acho que dançando e sendo guiada pelo corpo. 

Você comentou que foi levada para a costura graças a um problema de saúde em 2009…O que aconteceu?

Tive uma lesão no quadril e um desgaste de cartilagem. E isso me provocava sérias crises, em que eu parava de andar no meio da rua. Tive crises que fiquei três dias sem andar. E foi a partir de uma dessas crises que eu fui buscar um especialista e ele me diagnosticou com uma lesão que eu não tinha como fazer nem cirurgia. Perdi a cartilagem. Agora, tinha que conviver com isso, recebi atestado de invalidez. Na época, eu estava no auge, mas daí eu fui aprender a nadar, porque o médico me indicou a fazer coisas dentro da água, fui fazer outras coisas e continuava dando aula, mas só que de uma maneira mais reduzida.

Comecei a me dedicar mesmo às roupas, fui aprender naquele mesmo ano porque precisava pensar em um novo ganha-pão. Nesse exercício que eu estou fazendo de aprender uma nova profissão, me veio a memória ancestral. Eu me vi sentada do lado da minha mãe, costurando na minha infância. Ela fazia as minhas roupas e dos meus irmãos e me vi sentada também do lado dos meus tios que eram alfaiates, com quem a gente passava muito tempo também. 

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Foto: Tay Nascimento.

Quem são as pessoas que trabalham com a marca?

Quando eu comecei a marca eu tinha apenas uma costureira, que era a dona Bibi(in memorium). Foi dona Bibi uma mestra e também minha primeira costureira da equipe. A partir dela tive a dona Sueli, outra que também se tornou minha mestra. Aprendi crochê com a dona Aidê. Chegou uma época que eu também colocava crochê na minha roupa e fui aprendendo com essas mulheres mais velhas e introduzindo as orientações que elas me davam nas minhas roupas. Então, a minha roupa criou uma certa diferenciação por empregar mulheres mais velhas, experientes, da minha faixa etária ou até mesmo mais velhas, com as quais eu acabo criando um elo também que é geracional. 

Como um tecido se transforma em roupa na marca Aldelice Style?

O meu processo começa já na compra. Eu viajo durante todo o meu processo. Como eu te falei desde o início eu gosto muito de viajar. Eu invento que hoje estou sem tecido e vou lá no Rio de Janeiro comprar tecido. Aí eu aproveito e vou lá em São Paulo pegar tecido para poder criar um diferencial, então, você não encontra sempre os mesmos tecidos comigo. E durante também essa minha pesquisa para criar a marca, eu descobri que existiam algumas lojas aqui em Santa Catarina, algumas marcas conceituadas que meio que se desapegam dos tecidos e revendem para alguns fornecedores. Eu acabei descobrindo fornecedores que trazem tecidos de marcas grandes como Farm, Colcci, Osklen e consigo reaproveitá-los também para novas roupas. 

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Foto: Tay Nascimento.

Então é uma marca que podemos chamar de sustentável?

A minha marca é super sustentável, primeiro porque eu não tenho grana mesmo, né [risos].

Eu sou sustentável pela parte monetária, por ser proletária. Segundo pelo cuidado com a natureza. Eu morei em apartamento quase toda a minha infância e meu início de juventude, mas tive uma consciência ecológica muito forte. A minha mãe plantava mesmo embaixo do prédio. Ela era agricultora, veio da roça, então, tinha costume de plantar no prédio da gente, também sempre trouxe pra gente essa consciência das coisas, de criar uma relação com o meio ambiente. E eu trouxe isso na minha bagagem, tive sempre essa preocupação. Tipo, você chega aqui da minha casa, eu tenho três tipos de lixo, tenho uma composteira. 

Na verdade, eu não estou fazendo nenhum favor para a natureza, simplesmente estou tentando encurtar os danos que estamos fazendo pra ela. O lixo ou o meu resíduo têxtil vai sendo sempre reaproveitado. Antigamente eu comprava embalagens para os meus clientes, depois um dia eu olhei para o tanto de retalho que eu tinha e disse, “Não, isso aqui pode virar uma embalagem para os meus clientes”.

Então, resolvi eu mesma criar embalagens com os resíduos da minha produção, minha própria embalagem. Todo o cliente que passa por mim, que compra uma peça de roupa minha, leva uma embalagem feita a partir dos meus resíduos. 

E é você que faz o desenho de suas próprias peças?

A minha forma de desenhar é assim, por exemplo: ‘Ah, eu vi uma roupa’ (e eu gosto muito de ver o movimento das ruas, quando eu viajo, sento nas praças e fico olhando as pessoas se movimentando, e fico tirando fotos). Quando chego na minha caneta e na minha tesoura, aí eu jogo o tecido no chão, vou lá com aquela imagem na cabeça e desenho com a tesoura, fazendo os cortes. 

Ah, entendi, e as fotos? Você precisa imprimi-las para poder usá-las como molde ou você já as vê direto do celular ou de algum equipamento fotográfico?

Não, eu registro aqui [aponta para a cabeça]. Na memória. Com aquela memória, com as minhas inspirações das viagens que eu faço, muitas são inspiradas nas minhas viagens pela Europa, porque lá eu via muito estilo diferente das pessoas se vestir. Tipo  assimetrias, que é uma coisa que eu gosto muito.

Eu uso muito assimetrias na minha modelagem porque é algo que traz fluidez para a roupa, que não marca, que não diz que você está barrigudo, ou que você está peituda demais. Aqui na minha roupa eu estou solta, estou leve. Tenho um movimento fluído como se fosse na dança. E é isso, a minha questão com a dança faz com que a roupa também acabe dançando comigo, e é uma brincadeira que vou fazendo até hoje. 

Referências mencionadas por Aldelice durante a entrevista:

Antonio Cozido: Ator, coreógrafo, professor de dança, considerado o pioneiro do swing afro-baiano.

Mestre King: Professor de dança, coreógrafo e bailarino. Autor de mais de 100 coreografias, King fez história ao ser o primeiro homem a ingressar, em 1976, no curso de licenciatura em Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Edileusa Santos: Dançarina, educadora, pesquisadora e coreógrafa baiana. 

Banda Reflexu’s: banda brasileira de samba-reggae, formada em Salvador na Bahia em 1986. Uma das primeiras bandas de axé a conquistarem espaço no eixo Rio-São Paulo, a Banda Reflexu’s tem um trabalho musical voltado à valorização da história e cultura afro-brasileira.

Bloco Africatarina: Bloco de Carnaval e um projeto social que tem como objetivo introduzir a cultura afro na sociedade, por meio de aulas de Percussão, Dança Afro, Teatro e Capoeira.

Bloco Batukajé: Batukajé significa homens que tocam e mulheres que dançam. 

Cíntia Paula Lopes (Cíntia Abadá): dançarina e coreógrafa, uma das precursoras da Dança Afro em Santa Cantarina

Edinho Rouldan: percussionista, um dos fundadores do Bloco Africatarina

Fátima de Costa Lima: professora da Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), também uma das fundadoras do Bloco Africatarina.

Gerry: é um músico brasileiro. É o percussionista da banda Dazaranha.

Nicolas Malhomme: francês, professor de percussão.

Sabar: dança popular senegalesa, de tambores. Realizada, principalmente, em casamentos, celebrações da comunidade ou festas.

Sandra Mascarenhas: bailarina e coreógrafa. Em Florianópolis, criou o Espaço e Grupo Omalagô, pelo qual trabalhou durante quase uma década.

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  • Agnes Sofia Guimarães

    Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Apl...

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