“Desse modo, o problema deve ser posto, na arena jurídica, repito, a partir das seguintes perguntas: justifica o Estado criminalizar a decisão da mulher [e pessoa com útero] por abortamento no primeiro trimestre da gestação? Pode ser negado este direito de escolha?”

A pergunta faz parte do voto da ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, em 2016, ao decidir sobre a prisão de cinco pessoas que trabalhavam numa clínica clandestina, em uma operação policial em Duque de Caxias (RJ). Na época, a Primeira Turma do STF decidiu que, naquele caso específico, a interrupção da gravidez de até 12 semanas não seria crime.

A presidente do STF, ministra Rosa Weber, agendou para julgamento em plenário virtual a ADPF 442, que propõe a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, entre os dias 22 e 29 de setembro. Weber se aposenta em 2 de outubro, quando completa 75 anos e é obrigada a deixar a corte. A expectativa sobre o voto da ministra é grande, tendo em vista seus últimos posicionamentos mais progressistas. Recentemente, votou favorável à descriminalização do porte de maconha.

A saída de Weber é simbólica: coincidentemente, o último dia dela como ministra, marcado para o dia 28 de setembro, é também o Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe.

O tema do aborto está cada dia mais no foco dos debates públicos. Vivenciou-se recentemente a descriminalização do aborto no México (2023), e Colômbia (2022) e legalização na Argentina (2020). No Brasil, em julho, a proposta de legalização do aborto foi aprovada, pela terceira vez na história, durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde.

A possibilidade de julgamento da ADPF 442 tem mobilizado casas legislativas em todo o país. Em 4 de setembro, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais realizou uma audiência pública para debater o processo, articulada por Chiara Biondini (PP). Com quatro horas de audiência, ao som de música gospel e pregações, a atividade parlamentar mais parecia um culto religioso. Um dos deputados que participaram da audiência, Bruno Engler (PL) relacionou a interrupção da gestação ao crime de assassinato. “Estamos em uma guerra espiritual. É uma luta do bem contra o mal, uma luta da morte contra a vida”, alarmou ele. 

No estado mineiro, a agenda política contrária ao aborto, inclui perseguição, orquestrada por entidades públicas, incluindo o Conselho Regional de Medicina, contra Helena Paro, professora universitária e obstetra que atua em um serviço de aborto legal. O Nuavidas, projeto que coordena, é um ambulatório de atendimento às vítimas de violência sexual ligado à Universidade Federal de Uberlândia que passou a disponibilizar a interrupção legal da gestação por telemedicina durante a pandemia. 

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Crédito: Sarah Torres/ALMG.

É nesse contexto de intensa disputa ideológica, após quatro anos sob gestão do governo Bolsonaro, com o fortalecimento dos fundamentalismos, mas também com a ampliação da bancada progressista, que o tema do aborto pode ser julgado no STF.

A saga da perseguição do aborto legal em Minas

No Brasil, o aborto é legal somente em três situações: em caso de gravidez resultante de um estupro, de risco de vida para a pessoa gestante ou da gestação de fetos anencéfalos (ADPF 54). Entretanto, mesmo na legalidade, o acesso ao direito no país é escasso, por barreiras que não estão previstas na lei.

Faltam hospitais credenciados para realizar o procedimento, mesmo sendo de baixa complexidade, e ainda há serviços que exigem autorização judicial ou boletim de ocorrência às pessoas que recorrem ao aborto legal. A falta de informação a respeito da lei e dos direitos é também um entrave para o acesso, de acordo com a ginecologista, obstetra e pesquisadora Helena Paro, referência no debate de direitos sexuais e reprodutivos. 

“As mulheres [cis e outras pessoas com útero] nem sabem que têm direito ao aborto legal e buscam na internet, muitas vezes pelo aborto clandestino. Falta uma ação do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais de saúde e municipais, para que tenha uma formação dos profissionais das unidades básicas de saúde, que possam tanto saber acolher as demandas das mulheres [cis e outras pessoas com útero] pelo aborto legal, nas situações permitidas por lei, mas também como e para onde encaminhar”, conta Helena.

Uma das possibilidades de ampliação do acesso à interrupção legal da gestação é por meio da telemedicina. Na Universidade Federal de Uberlândia, o ambulatório de atendimento às vítimas de violência sexual Nuavidas funciona desde 2017. Durante a pandemia, o serviço passou a oferecer atendimentos adaptados, à distância, e, dentre eles, a interrupção legal da gestação pela telemedicina.

São oito serviços de aborto por telemedicina no Brasil atualmente, segundo Helena Paro, que também é coordenadora do Nuavidas. A médica tem sofrido perseguições no exercício da profissão, especialmente após ter lançado a cartilha “Aborto legal via telessaúde”, em 2021. “As principais retaliações vêm de políticos e de mídias sensacionalistas que tentam me amedrontar, como se estivéssemos fazendo algo ilegal ou perigoso”. 

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Crédito: arquivo pessoal.

Além disso, o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais abriu um processo ético-profissional contra ela, também em consequência da cartilha. Apesar das perseguições, a médica afirma estar tranquila. 

“A gente está muito embasado pela literatura científica internacional. Estamos utilizando o melhor do avanço tecnológico e das evidências científicas para ampliar o acesso das mulheres [cis e pessoas com útero] à saúde. Então, acho que são só tentativas de retaliações, porque em nenhum momento nosso serviço deixou de funcionar, ou de oferecer o tratamento medicamentoso por telessaúde desde agosto de 2020, quando tivemos nossa primeira paciente”, afirma. Helena tem recebido apoio de coletivos feministas e de organizações do país que encampam a luta por aborto legal.

Um dos argumentos da extrema direita para justificar o posicionamento contrário à legalização do aborto é de que isso supostamente “aumentaria” a prática. Lidando com casos de interrupção legal da gestação diariamente, Paro explica que o tratamento vem acompanhado de orientação contraceptiva e de planejamento reprodutivo, sobretudo com contraceptivos de longa duração. “Ela [a pessoa] recebe o medicamento para levar pra casa (misoprostol), e antes de ir embora já faz a inserção, por exemplo, de um implante e fica protegida contra a gravidez indesejada por cinco anos”. 

Para a professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Juliana Cesário, a criminalização do aborto potencializa a perseguição de profissionais que fazem a interrupção da gestação nos casos legais.

“Essa barreira da perseguição aos profissionais de saúde, mesmo nos casos de aborto legal, ela está ligada sem dúvida ao estigma que envolve o aborto que decorre, também, da sua criminalização. É um exemplo de como a criminalização, ainda que tenha exceções, afeta, inclusive, essas exceções e o acesso a direitos que estão previstos na lei há muitas décadas. Infelizmente essa é uma barreira real e essa perseguição vai se dar não só com relação a profissionais de saúde, mas também de direitos humanos que trabalham para viabilizar o acesso à interrupção legal da gestação”, finaliza. 

Helena Paro era uma das convidadas para compor o I Fórum Aborto Legal de MG, que aconteceria na Defensoria Pública de Minas Gerais, na próxima sexta-feira (22). Entretanto, foi informada do cancelamento da sua participação e, posteriormente, do cancelamento de todo o evento, que pretendia reunir e articular ativistas e profissionais da saúde para a qualificação dos serviços de aborto legal no estado. Para a ginecologista, a suspensão do evento é resultado de  uma articulação de deputados bolsonaristas que pressionaram a instituição para não realizar o debate. 

ADPF 442 no Supremo

A ação foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pela Anis – Instituto de Bioética em 2017. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental alega que a proibição do aborto até a 12ª semana de gestação está em desacordo com direitos fundamentais resguardados pela Constituição Federal, como acesso à saúde e redução de riscos de doenças e outros agravos.

Em agosto de 2018, o Supremo convocou uma audiência pública em dois dias para ouvir entidades que se posicionaram sobre o tema, com um número recorde de amici curiae (termo em latim que, em tradução livre, significa amigo da corte). Cinco anos depois, o STF irá iniciar o julgamento da ação, que não tem prazo para uma decisão final.

Há uma expectativa de setores progressistas em cima do voto da presidente da Suprema Corte, tendo em vista a posição de Rosa Weber sobre o tema em 2016. 

São muitos os questionamentos da ala anti-direitos sobre a legitimidade da Suprema Corte para descriminalizar o aborto, por exemplo, se não estaria exercendo uma função própria do Congresso Nacional. Em entrevista, Juliana Cesário, professora da Faculdade de Direito da UFMG e coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da mesma instituição, explicou que uma das principais funções de uma Corte Constitucional é de assegurar que medidas e normas não violem direitos fundamentais, mesmo que elaboradas pelos poderes eleitos. 

“No caso da criminalização do aborto, que está prevista no Código Penal, existem direitos fundamentais que são violados. E além de estarem envolvidos esses direitos fundamentais tão importantes, relacionados à dignidade humana, trata-se de direitos que afetam grupos sub-representados na política: mulheres [cis] e [outras] pessoas com [a possibilidade] de gestar, [como pessoas transmasculinas, não-bináries e intersexo]. Se elas não se podem representar na política, é fundamental que o STF aja para garantir os seus direitos”, argumenta a jurista.

Aborto no Brasil em números

“Há uma criminalização de todo o processo de acesso ao aborto, inclusive dos casos em que o aborto é legal. A lei existe desde 1940 para casos de violência sexual e risco de vida para a pessoa gestante, e ainda assim a gente não consegue ter um acesso pleno a esse procedimento. Até mesmo casos de aborto espontâneo são estigmatizados devido a esse contexto de criminalização do aborto”, afirma Raiz Policarpo, ativista transmasculine não-binárie, integrante da Frente Mineira Legaliza o Aborto, de Basuras Coletiva e do Coletivo Não-Bináries de Minas Gerais.

No país, 1 em cada 7 mulheres de até 40 anos já fez um aborto ao menos uma vez na vida, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021. A média é de que cerca de 500 mil brasileiras por ano façam aborto inseguro, e, dentre elas, quase a metade (43%) precisa ser internada para finalizar o procedimento.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o aborto inseguro é responsável por 13% das mortes maternas e, no Brasil, é a 4ª maior causa de morte materna.

O perfil de quem aborta no Brasil é em grande parte de mulheres que já têm filhos, casadas ou em uma união estável e que professam uma religião. Há, ainda, o impacto da criminalização no aumento do estigma da prática de aborto nos casos legais. “Existe uma pesquisa pela Rede Feminista de Saúde que fala que a cada 20 minutos uma criança é obrigada a parir. Dentre estas, aproximadamente 75% são crianças negras e que acabam não tendo mais acesso à escolaridade a partir do momento em que estão gestando”, lembra Raiz.

Segundo a PNA de 2021, 22% das mulheres que abortam no Brasil são negras (entre pretas e pardas) e 17% são indígenas, frente a 9% de mulheres brancas. As taxas de abortos inseguros são maiores entre mulheres de menor escolaridade, negras, indígenas e residentes em regiões mais pobres. Já um estudo realizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro indicou que as mulheres pretas têm maior chance de serem presas pela prática do aborto ilegal.

“O aborto é realizado por todos os tipos de pessoas. Porém, as pessoas que são pobres, periféricas, negras e de territórios marginalizados, muitas vezes, não conseguem acesso a esse procedimento de forma segura e ainda tem mais risco de serem presas e criminalizadas”, destaca a ativista transmasculine. 

Sobre o acesso ao aborto seguro das pessoas com útero, como homens trans, transmasculines, não-bináries e pessoas intersexo, esses números são desconhecidos, o que revela e agrava a invisibilidade e o estigma que recaem sobre essas populações.  “A gente vê muito dessa temática de gestação e aborto ligada a vivências de mulheres cis, porém pessoas transmasculinas e não-bináries também engravidam, e por isso também devem ter o direito de abortar nos casos em que é previsto em lei. Porém, ainda são pessoas marginalizadas e que têm o acesso ainda mais impedido no SUS quanto à saúde sexual e reprodutiva,” completa Raiz Policarpo. 

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Crédito: @junomundo.

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  • Maria Paula Monteiro

    Jornalista formada pela Universidade Federal de Minas Gerais, ativista no Coletivo Feminista Várias Marias e na Frente M...

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