“A liderança, a autoestima, a coragem e a resiliência são habilidades trabalhadas dentro do esporte, além disso, o próprio trabalho em equipe ajuda as meninas e mulheres a entenderem que elas fazem parte de uma rede”, cita Jane Moura, co-fundadora da Empodera, Organização da Sociedade Civil que promove a equidade de gênero através do esporte. Apesar dos benefícios, meninas ainda não se sentem tão incentivadas a praticarem esportes como meninos.

Uma pesquisa divulgada em julho deste ano, indica que 63,8% dos meninos brasileiros têm o sonho de se tornar atletas profissionais e apenas 34% das meninas compartilham desse desejo. E essa realidade não se limita à prática de esporte com aspirações profissionais. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019 indicam que 90% das meninas brasileiras entre 11 e 17 anos são sedentárias, ou seja, não fazem nem uma hora de atividade física por dia, padrão considerado mínimo pela OMS. Essa realidade é consequência de um processo histórico social.

Moura descreve que o esporte foi construído como um espaço de reserva masculina. “Pensando o futebol, por exemplo, desde quem consome o esporte até quem pratica, o esporte é voltado para os homens e isso cria desigualdades gigantescas no acesso e na participação”. Para ela, ao mesmo tempo que o futebol tem reproduzido desigualdades estruturais, como machismo e racismo, o esporte também é uma forma para combater esses preconceitos. “Só pelo fato das meninas e das mulheres ocuparem esses espaços, elas já estão transgredindo uma barreira e desconstruindo estereótipos”, diz.

Para a co-fundadora da Empodera, um ponto central para que mais meninas pratiquem esportes é a criação de espaços seguros. “Aliado ao incentivo dentro e fora de casa, é muito importante que os espaços em que essas meninas têm acesso ao esporte, sejam física e emocionalmente seguros para elas”, ressalta.

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Roda de conversa da Empodera | Crédito: Alexandre Pinheiro.

Além de conversar com Moura, o Catarinas buscou cartilhas, orientações e ferramentas que podem ajudar diferentes setores da sociedade a incentivarem meninas a praticarem esportes. Confira os materiais e dicas da co-fundadora da Empodera.

No cotidiano

Para Moura, o primeiro passo para que mais meninas se interessem pelos esportes é incentivar que elas pratiquem, como as desigualdades existentes são construídas e perpetuadas na socialização das crianças. “Eu crio interesse por aquilo que minimamente vivencio, conheço, experimento e sou incentivada a fazer”, resume. Esse incentivo pode partir do ato de presentear garotas com bolas ou encorajar para que conheçam diferentes esportes.

“Isso vai desenvolver tanto habilidades motoras importantes que essas meninas podem usar na atividade esportiva, como desenvolver o próprio interesse das meninas pelo esporte”, explica.

Outra forma de incentivar o esporte entre meninas e mulheres, segundo Moura, é consumir as modalidades femininas. “É assistir aos jogos, distribuir informações, dar o protagonismo para essas mulheres e trazer elas para os espaços para serem referências”, destaca.

Esse ponto também é ressaltado por um documento desenvolvido pela Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) pela equidade de gênero no esporte. A organização aponta que campanhas pela igualdade de gênero também podem ser promovidas entre os torcedores. “Uma força-tarefa poderia ser usada, por exemplo, para encorajar os torcedores a também tomarem medidas para promover a diversidade e antidiscriminação no estádio e em seus espaços cotidianos”, exemplifica o documento.

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Crédito: Alexandre Pinheiro.

Sala de aula

Para professoras e professores que desejam tratar sobre questões de gênero nas aulas de Educação Física, o Empodera, em parceria com o Impulsiona – Educação Esportiva, lançaram o projeto “Copa do Mundo Feminina na Sua Escola!”. Dividido em duas frentes, o projeto busca proporcionar espaços em que as meninas se sintam seguras para participarem das aulas de educação física. Como foram lançados em referência à Copa do Mundo, o futebol é o esporte mais tratado pelos materiais.

Uma das frentes é um curso online, gratuito e com certificado, sobre equidade de gênero na educação física. A formação tem carga horária de 20 horas e abrange os ensinos fundamental e médio. Além das aulas, são disponibilizados 10 planos de aula. A ideia é apresentar diversas atividades para trabalhar com meninas e meninos de forma inclusiva e lúdica.

“Esse curso trabalha desde o histórico do futebol feminino no Brasil, até estratégias para criação de espaços seguros para meninas nas aulas de educação física de maneira prática, como trabalhar a equidade de gênero, discussão de estereótipos e como trazer o protagonismo feminino nas aulas”, conta Moura.

A outra frente do projeto é um jogo de tabuleiro, sobre a Copa do Mundo de Futebol Feminino. O público-alvo são estudantes do Fundamental II e Ensino Médio. É possível imprimir o material, de acesso gratuito, em impressoras convencionais e também selecionar as cartas de acordo com a idade dos estudantes. “É um jogo bem completo para trabalhar de maneira interdisciplinar, porque traz temas da Geografia e História, por exemplo”, sugere Moura.

Programas esportivos

Uma forma de incentivar meninas a praticarem esportes é através da criação de programas esportivos focados nesse público. Nesse sentido, a ONU Mulheres em parceria com Comitê Olímpico Internacional, com a implementação da Empodera e da Women Win, lançaram o Guia Internacional para Elaboração de Programas Esportivos

“Para criar um programa de esporte efetivo e atrativo para as meninas, é preciso primeiro atentar-se aos desafios que elas enfrentam. Compreender quais são os obstáculos potenciais leva ao desenvolvimento de estratégias eficientes e sustentáveis”, traz o guia.

Nesse sentido, entre os pontos abordados pelo documento estão questões relacionadas ao vestuário, espaços seguros, tabus relacionados à menstruação e outras questões que afetam diretamente meninas que praticam esportes.

O guia traz orientações que abrangem a fase de desenvolvimento de programas, a escolha do esporte certo, como criar o currículo e uma rede de apoio, dicas para chamar meninas para as atividades e como trabalhar habilidades para a vida através do esporte, como autoestima, relações de poder e saúde reprodutiva.

Entre as dicas para motivar a participação de meninas, que também valem para outros espaços, estão: reconhecer e elogiar os esforços e progressos individuais e coletivos, promover atividades lúdicas, prazerosas e divertidas, promover papéis de liderança entre as meninas, fornecer materiais do programa, como camisetas e garrafinhas, nunca usar atividades físicas como punição, encorajar as meninas a superar os desafios de forma individual e coletiva e evitar a competição e situações em que as meninas se sintam constrangidas.

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Crédito: Alexandre Pinheiro.

Políticas públicas

Para além da sociedade civil, também é importante que haja um trabalho do governo e lideranças das confederações esportivas para que meninas se sintam encorajadas a praticarem esportes. Nesse ângulo, a ONU Mulheres e o Comitê Olímpico Brasileiro lançaram um documento, em 2022, no qual avaliam o cenário da equidade de gênero nos esportes no Brasil e trazem sugestões de práticas que devem ser adotadas para criar melhores oportunidades para as meninas e mulheres.

Entre os pontos abordados, está garantir, através do estatuto de cada confederação esportiva brasileira, a inclusão de pelo menos 30% dos cargos ou das vagas para mulheres, conforme estabelecido pelas normativas mais recentes do Comitê Olímpico Internacional.

Há um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que busca incentivar essa cota. De autoria de Aliel Machado (PSB/PR), o PL coloca que somente entidades que possuem 30% de mulheres em cargos de direção poderiam ser beneficiadas com o orçamento da Lei de Incentivo ao Esporte. O PL está parado na Comissão de Constituição e Justiça desde 2021.

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Crédito: Alexandre Pinheiro.

Outro ponto abordado no documento da ONU Mulheres e Comitê Olímpico, é a atualização do Código de Ética e/ou de Conduta do Comitê Olímpico do Brasil e das Confederações Brasileiras Olímpicas para atualizar os temos em torno dos direitos sexuais e reprodutivos, incluindo, por exemplo, a diferenciação entre sexo e gênero.

Além disso, que haja o estabelecimento de canais de ouvidoria para acolhimento e denúncias sobre assédio e abuso. O documento lembra ainda a importância do investimento em categorias de base e em projetos comunitários de inclusão e permanência de meninas e mulheres no esporte, como os desenvolvidos pela Empodera.

Trabalho da Empodera

A ideia de fundar a Empodera surgiu de uma inquietação e com o objetivo de incentivar a prática de esportes por mulheres. Moura conta que após se formar em Educação Física, começou a trabalhar em um projeto social no Rio de Janeiro que atua através do esporte. Ela foi designada para aulas de futebol misto com crianças de 6 a 8 anos.

“Eu cheguei lá em 2014, recém-formada, vindo de uma formação com estudos de gênero no nível acadêmico. Tinha planejado uma aula cheia de atividades participativas para conhecer as crianças e a primeira recepção foi de resistência, os meninos começaram a falar ‘caramba, como assim uma mulher vai dar futebol pra gente?’”, conta. Ela precisou recorrer a táticas não convencionais para conquistar a turma.

“Minha primeira reação foi fazer tudo o que aprendi a não fazer na faculdade, dividi as crianças em duas turmas, as meninas praticamente não quiserem jogar, eu entrei em um dos times e não deixei nenhum menino tocar na bola por uns cinco meninos, eles falaram ‘caramba, a tia joga como a Marta’”, recorda. Esse primeiro contato de Moura fora da sala de aula moldou a trajetória que ela desenvolveu.

“Eu pensei que precisávamos fazer alguma coisa para tornar o debate de gênero acessível, porque não vou citar Judith Butler numa aula com crianças, e aí eu comecei a fazer atividades lúdicas para falar sobre estereótipos de gênero e tudo mais”, explica.

Na mesma instituição ela conheceu Thaís Olivetti, formada em Relações Internacionais, que na infância vivenciou os preconceitos dentro do esporte. Em 2016, as duas tiveram a experiência no programa Uma Vitória Leva a Outra, que trata sobre o empoderamento de meninas através do esporte. Ao observarem que o problema dos estereótipos de gênero é uma questão geral, sentiram a necessidade de focar em uma instituição que trabalhasse a equidade de gênero no esporte. Assim, em 2017, fundaram a Empodera.

A organização é reconhecida pela ONU Mulheres e pelo Comitê Olímpico Internacional como um Centro de Excelência em programas esportivos para a equidade de gênero e o empoderamento de meninas e mulheres.

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Crédito: Alexandre Pinheiro.

O trabalho da Empodera é desenvolvido em três eixos: implementação direta de programas esportivos para meninas, desenvolvimento de metodologias esportivas para o empoderamento de meninas e mulheres de acesso gratuito, e suporte técnico a outras organizações e profissionais, a partir de treinamentos, workshops e formação continuada.

“A grande potência do nosso trabalho é combinar a prática esportiva com a discussão de temas chaves pro empoderamento de meninas, desde a liderança, a autoestima, até direitos sexuais e reprodutivos, enfrentamento às violências contra meninas e mulheres e ao racismo, são temáticas que passam toda a nossa prática e abordagem pedagógica”, destaca Moura.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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