Entre os anos de 1941 e 1983, as mulheres brasileiras foram proibidas de jogar futebol por um decreto-lei de Getúlio Vargas. A justificativa era de que a prática do esporte era incompatível com as condições biológicas das mulheres. Mas, antes da lei, já havia mulheres jogando futebol no país, como mostram investigações da historiadora Aira Bonfim. O trabalho de pesquisa foi reunido no livro “Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941)”, lançado neste mês.

“O livro nos ajuda a entender que o decreto não surge do nada, ele está em consonância com o desenvolvimento de mulheres que estão jogando muita bola nesse período. Elas não representavam apenas uma categoria de gênero, mas são mulheres que têm outras categorias e marcadores sobre elas, por exemplo, de raça e de classe, são mulheres negras oriundas de uma periferia carioca”, explica a historiadora.

Bonfim é bacharel e licenciada em Educação Artística pela Universidade Estadual de Campinas e Mestre em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Fez parte da equipe que implantou o Centro de Referência do Futebol Brasileiro, no Museu do Futebol (São Paulo), onde trabalhou por sete anos. Atualmente, é consultora sobre a história do esporte para entidades culturais e de preservação do patrimônio.

As investigações realizadas durante o período no Museu do Futebol e no mestrado se transformaram no livro lançado neste mês. “Ao analisar o protagonismo de futebolistas nas décadas inaugurais do século 20, remove das sombras corpos e subjetividades historicamente invisibilizadas, silenciados e destituídos de direitos. Sua narrativa sublinha a ousadia e coragem de muitas mulheres que, a despeito de tudo e de todos, lutaram para jogar bola”, escreveu a pesquisadora e ativista do futebol de mulheres, Silvana Goellner, na contracapa do livro. A produção é independente e pode ser adquirida online por R$65 mais o valor do frete.

No próximo 29 de julho, após o jogo do Brasil e França na Copa do Mundo de Futebol Feminino da Fifa, marcado para às 7h, um evento na Nossa Arena, em São Paulo, capital, marca o lançamento do livro. Segundo a organização, o objetivo é promover um momento cultural, por meio de um bate papo com a autora e um bingo especial de Copa do Mundo ao final do lançamento. A entrada no evento é gratuita e haverá buffet de café da manhã com o valor de R$39.

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Crédito: reprodução.

O Catarinas conversou com Aira sobre o livro, a história do futebol feminino no Brasil, motivações e efeitos da lei de Vargas e qual o cenário atual das mulheres no esporte. Confira a entrevista:

Para começarmos a nossa conversa, você pode se apresentar por favor? Quem é a Aira? Como iniciou seu interesse pelo futebol? E por pesquisar o esporte?

Hoje, eu me apresento como Aira Bonfim, historiadora do esporte. Recentemente, defendi um mestrado na área de História, mais especificamente, sobre a História do Esporte, trazendo as memórias do futebol feminino brasileiro nos anos que antecederam a proibição no nosso país, em 1941. Mas, eu já brinquei com futebol, já joguei, tenho relações afetivas com o esporte, um avô que sempre jogou bola no futebol amador ou varzeano, como chamamos aqui em São Paulo.

Em 2011, eu me tornei a pesquisadora do Museu do Futebol, uma instituição pública do estado de São Paulo, residida no estádio do Pacaembu, com a missão de trazer a memória esportiva a partir da modalidade de futebol, uma memória que está sempre em disputa, que não está restrita à seleção masculina, nem mesmo aos times de primeiras divisões. É nesse ambiente que eu, de alguma forma, vou interagir com essas ausências e identificar as necessidades de representações e reparações. O caso das mulheres vai ser um desses temas que eu vou me aproximar.

Eu trabalhei muito tempo com futebol amador, com outros personagens de futebol para fora do campo, sobre outras limitações que impedem as pessoas de vivenciar o esporte, como, por exemplo, um ambiente das arquibancadas e todas as siglas LGBTQIA+ que tem várias questões de estar presente no ambiente esportivo. Desde 2015, muito intensamente, trabalho com as histórias das mulheres do futebol, não só futebol feminino como modalidade, mas principalmente as mulheres que estão envolvidas nesse futebol há mais de 100 anos, sabendo que mulheres já narraram, já trabalharam como árbitras, já cobriram, já escreveram sobre futebol desde os inícios do século 20.

Por isso, me envolvi com uma pesquisa acadêmica para dar sentido à organização dessas fontes que foram escritas nos jornais e nas revistas ilustradas. Me concentrei no início do século 20. Hoje eu não trabalho mais no Museu do Futebol, eu presto serviço para eles, por meio de uma empresa de pesquisa e também faço curadorias de exposições sobre mulheres no esporte.

O que a leitora ou o leitor vai encontrar no livro “Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941)”?

Eu estou devolvendo para o público todos esses anos de pesquisa e, mais especificamente, com esse recorte de pensar o futebol feminino que antecedeu o ano de 1941. O livro já é revelador, porque mostra que esse futebol não é recente, que as mulheres foram igualmente mobilizadas a gostar desse esporte que se popularizou no nosso país nessa época, principalmente na década de 1930. Temos evidências de mulheres jogando bola desde 1915, por isso que essa data marcadora que está no título do livro, até a data de 1941.

O livro nos ajuda a entender que o decreto não surge do nada, ele está em consonância com o desenvolvimento de mulheres que estão jogando muita bola nesse período. Elas não representavam apenas uma categoria de gênero, mas são mulheres que têm outras categorias e marcadores sobre elas, por exemplo, de raça e de classe, são mulheres negras oriundas de uma periferia carioca.

Também são jovens, por isso talvez tenham tido a coragem de aparecer publicamente jogando bola. Nesse período, esse lugar público das mulheres ainda tá em negociação e disputa, assim como outros direitos e outras liberdades que até os dias de hoje lutamos. O livro é uma publicação que organizou essas fontes que reuni ao longo dos anos e oferece em primeira mão. Tem fotos que são pouquíssimas conhecidas desse futebol e vão revelar um pouco sobre essas mulheres desde a primeira década do século 20.

O primeiro capítulo mostra como são meninas que participam das festas esportivas dos principais clubes que estavam sendo formados no nosso país, para citar alguns, tem o Fluminense, o Flamengo e o Vasco da Gama. Elas são torcedoras que estão envolvidas nas atividades do clube e essas meninas formam equipes de futebol que vão levar o distintivo do clube, mas, obviamente, sem nenhum apoio dos clubes, revelando o interesse já nessa época.

O segundo capítulo é muito importante, porque mostra o sentido da cena circense que vai ser responsável por divulgar o futebol feminino, uma vez que ele não acontecia nos calendários oficiais desse esporte. Não eram os dirigentes que estavam fomentando esse futebol, mas eram as mulheres que também recebiam um preconceito gigantesco da sociedade nessa época por serem atrizes, por terem já uma profissão, autonomia financeira e uma vida itinerária, ou seja, terem um outro modo de vida.

Elas vão levar essa estratégia de um esporte que está sendo muito consumido nas décadas de 1920 e 1930 para os picadeiros. Se ninguém nunca tinha visto o futebol feminino, graças às companhias circenses que vão rodar o Brasil inteiro, muitas pessoas vão ver esse futebol acontecer no corpo de mulheres pela primeira vez.

Mais do que pensar “tava no circo porque era engraçado”, eu acho que é um tema muito mais complexo de pensarmos e reverenciarmos essas mulheres atrizes, porque elas foram realmente pioneiras no sentido de um combate público de exposição desse esporte.

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Crédito: divulgação.

E o terceiro e último capítulo é dedicado a suburbanas, que é o futebol que vai se desenvolver nas regiões norte e oeste do Rio de Janeiro. São regiões precárias em condições sociais, que já nessa época estavam formando os jogadores homens que também foram negociar a presença e participação nos principais clubes da cidade. Um pouco à margem dessa experiência, muitas garotas, que são as irmãs, as primas e as filhas desses jogadores, também aprenderam a jogar bola.

Havia um circuito na década de 1930 de mais de 15 equipes que aparecem nos principais festivais suburbanos de futebol, com notícias sobre essas mulheres nos principais jornais, com fotos, com entrevistas, com descrições técnicas sobre esses jogos. Muitas mulheres atuaram para que tivéssemos a oportunidade de viver uma copa do mundo, de pensar e sonhar o futebol feminino.

Essas mulheres recebem inúmeros convites para jogar, inclusive fora do Rio de Janeiro, a ponto de fazerem parte das primeiras exibições de futebol no estádio do Pacaembu em São Paulo. Elas ganhavam um dinheiro, já tinham patrocínio e uma imprensa cobrindo esse futebol. Isso desmistifica algumas questões que são levadas para o futebol até nos dias de hoje. E são esses eventos que vão gerar muita visibilidade para as mulheres brasileiras jogadoras que, por vezes, vão trazer uma discussão pública que vai envolver outros setores, principalmente homens debatendo entre eles, sem nós, e vai deslanchar no decreto na gestão de Getúlio Vargas, proibindo todo o desenvolvimento de algo que já existia entre as mulheres do nosso país.

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Crédito: divulgação.

Então, é um livro referencial, de história e acessível na linguagem para qualquer pessoa. Apesar dele ser oriundo de uma dissertação acadêmica, eu me dediquei a pensar uma adaptação da linguagem, trazer e oferecer essas imagens, muitas delas inéditas para a maioria das pessoas e discussões que ajudam a pensarmos sobre as nossas histórias.

Você comentou um pouco sobre isso, mas o livro está focado justamente nos momentos anteriores à proibição do esporte por Getúlio Vargas. Quais foram as motivações que levaram a esse decreto?

Nessa época, tem muita mulher jogando e aparecendo, ocupando um espaço que a princípio era um reduto masculino de uma elite. A ideia era essa: um esporte importado da Inglaterra que deveria ser organizado entre uma classe social pertencente a pessoas com dinheiro e com tempo livre. Já existia um debate sobre o amadorismo, entendido como aqueles que amam o esporte e não deveriam ganhar dinheiro a partir dele. Um país tão desigual com o Brasil, isso já exclui a grande maioria da sua população.

Se os homens já estavam sonhando uma ascensão social através do esporte, as mulheres também, há 100 anos atrás, se permitiram sonhar com uma ascensão e independência financeira. Lembrando que independência financeira no contexto das mulheres tem uma outra representação, que é a liberdade de existir.

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Crédito: Arquivo do Museu do Futebol.

Essa proibição tem uma justificativa de proteger os corpos das mulheres, isso é colocado no texto original. No entanto, a discussão que eu trago para o terceiro capítulo, observa as entrelinhas, os discursos das pessoas. Temos um país muito preconceituoso em relação à presença de mulheres como protagonistas dessa experiência, e racista, que também não gosta de pessoas pobres dentro desses lugares de destaque. Essas mulheres tinham sucesso jogando dentro e fora do Brasil. Um ponto de virada é quando a equipe do Primavera vai receber convites para itinerar pela América do Sul.

Percebemos um desconforto desses dirigentes e autoridades em revelar que essas mulheres pobres, pretas e adolescentes poderiam chegar nesse lugar de destaque. A proibição é uma estrutura machista.

No caso do nosso país, a proibição foi estruturada em forma de uma lei. Outros países proibiram o futebol, mas isso ficou restrito às legislações das federações esportivas ou de futebol, como aconteceu na Inglaterra. Aqui, tínhamos um Estado Novo, com um ministério da saúde e de educação que regulamentavam o esporte. Esse limite vai afetar a cultura esportiva em todos os 40 anos que se seguem. Todos os lugares que recebiam o futebol feminino foram proibidos de fazê-lo. Se as mulheres estavam aprendendo a jogar futebol, essa estrutura de ensino também vai ser interditada a partir desse momento, ou seja, as meninas não aprendem a jogar futebol nos anos seguintes. O calendário, a oficialidade, tudo isso não vai ser estruturado.

Obviamente, há um retrocesso em relação ao desenvolvimento desse futebol, até na cultura dele, um afastamento simbólico entre mulheres e futebol no Brasil, curiosamente, o país do futebol. Hoje, todas as reivindicações e as lutas que temos, elas precisavam desse aparato do nosso passado para entendermos e ganharmos mais forças, para continuarmos caminhando, para continuarmos torcendo e reivindicando lugares que são nossos por direito.

Como você indicou, o Brasil é conhecido como “o país do futebol”, mas quando estamos pensando em futebol feminino, essa lógica se mantém?

Infelizmente, quando falamos “país do futebol”, estamos pensando no futebol que é masculino e que pertence às divisões mais importantes ou a seleção brasileira. Não é plural. Hoje, nas pesquisas da academia, temos usado a palavra “futebóis”, que é uma palavra esquisita e justamente por isso nos tira de um lugar comum e nos leva a refletir como o futebol, na verdade, é uma identificação muito mais polarizada.

O futebol pertence aos jogadores, aos torcedores, às jogadoras, aos trabalhadores, a qualquer pessoa que tem uma relação identificada com essa modalidade esportiva. O futebol tem regras que podem ser desmontadas a qualquer momento. Temos, por exemplo, o futlama, e o futebol callejero, que é praticado na rua com outras regras. Isso se aplica mesmo em relação ao futebol feminino, que tem as mesmas regras, mas com outra forma de performance dentro de campo. Tem um contingente de muitas outras identificações para além da ponta da pirâmide do masculino. Estamos nesse lugar de debater sobre isso e tentar superar um pouco a experiência do que aconteceu com o feminino de uma proibição que interdita mais da metade da população brasileira.

Mas, mesmo quase 100 anos depois, temos interdições que continuam excluindo grupos sociais da sociedade. Há algumas legislações que estão sendo votadas nos âmbitos municipais, estaduais e federal, que impedem pessoas trans de participar de torneios amadores de futebol, mesmo sendo a minoria da minoria dessas experiências esportivas. Ainda aprendemos muito pouco com o que as mulheres vivenciaram e se o esporte é de todas, de todes, de todos, deveríamos estar abrindo portas e não fechando.

Estamos em um momento de bastante visibilidade para o futebol feminino por conta da Copa do Mundo. Qual mensagem você, que acompanha o esporte em outros momentos, gostaria de deixar para quem está lendo esta entrevista?

A Copa, obviamente, é o maior evento de exposição das modalidades no nível mundial. É muito importante, inclusive, dentro de um contexto atual onde podemos assistir essas partidas e criamos uma referência para garotas e para nós adultas, que não tivemos essa oportunidade quando éramos jovens. No entanto, eu chamo atenção para o fato de que esse futebol exibido ocupa uma ponta de uma pirâmide de estrutura da modalidade de alto rendimento, ou seja, são as melhores das melhores.

Mas ele também é um grande funil. Precisamos olhar para o futebol feminino e pensar como se estruturam essa base? Será que as meninas estão tendo de fato oportunidades para aprender o esporte? Tão ganhando uma bola? Tem um espaço seguro para aprender? Tem oportunidades dentro de escolinhas? As mulheres adultas nesse país tão grande como é o Brasil, têm espaço e oportunidades? Todas essas questões ainda são muito mal resolvidas no nosso país e uma copa que vai destacar mulheres como protagonistas do esporte, tem oportunidade de viabilizarmos essa base da pirâmide e oferecer mais oportunidades para as mulheres que simplesmente querem jogar futebol no cotidiano.

Serviço

O que: Lançamento do livro “Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941)”, da autora Aira Bonfim. 

Quando: 29 de julho, sábado, após a partida entre Brasil e França na Copa do Mundo de Futebol Feminino, que inicia às 7h.

Onde: Nossa Arena, Rua sem saída, 200 Acesso pela, Av. Nicolas Boer, 100 – Parque Industrial Tomas Edson, São Paulo.

Mais informações: https://www.instagram.com/nossaarenasp/

Compra online: https://sacola.pagseguro.uol.com.br/245cb6f2-216f-42dc-b7e5-c231391fcacb

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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