Realizada um ano após o fim da ditadura no Brasil, em 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saúde constitui um marco histórico – também porque seu relatório final serviu de subsídio para a elaboração do capítulo sobre saúde da Constituição Federal de 1988, resultando na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), mas não só.
Como fruto das proposições pactuadas no evento, a exemplo da não discriminação de sexo, o Ministério da Saúde chamou, no mesmo ano, a 1ª Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, que consolidou a discussão horizontal sobre aborto, com participação social, na agenda pública brasileira.
O evento recebeu 900 representantes de todos os estados e territórios da Federação, dos quais 549 foram credenciados como delegados, ou seja, tiveram direito ao voto, e a minuta da plenária apresenta a descriminalização do aborto como proposta.
Apesar do avanço, o tema só apareceu em um relatório final da Conferência Nacional de Saúde na 10ª edição do evento, em 1996, e com uma abordagem bem mais conservadora. “A maioria dos participantes da 10ª Conferência Nacional de Saúde se posiciona contra a legalização do aborto, por ser uma violência contra a vida”, diz o documento, que dá início a longos anos de disputa sociopolítica em torno do tema.
Em sua 11ª edição, realizada em 2000, a Conferência Nacional de Saúde aprovou, pela primeira vez, a descriminalização do aborto como proposta, visando garantir o direito da mulher à saúde.
Oito anos depois, em 2008, houve novo retrocesso. De acordo com um relatório publicado em 2009 pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), intitulado “As Conferências Nacionais de Saúde: Evolução e Perspectivas”, o aborto polarizou a plenária final da 13ª edição da Conferência, com maioria absoluta contra sua discussão.
“Entidades ligadas à igreja católica desempenharam papel decisivo para essa postura, agudizada pelo fato de o ministro ter se posicionado a respeito no momento em que o Papa Bento XVI visitava o país”, ressalta o documento.
A proposta de descriminalizar o aborto só voltou a ser pactuada em Conferência em 2019, durante o governo Bolsonaro, e mais uma vez foi alvo de censura. Pressionado por extremistas, o então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, revogou duas orientações da Resolução nº 617, resultante da 16ª Conferência Nacional de Saúde.
Sofreram cortes a diretriz 73, que tratava sobre o “direito ao aborto legal, assegurando a assistência integral e humanizada à mulher”, e a 17, que previa o fortalecimento, ampliação e obtenção de aporte financeiro público próprio para políticas e ações voltadas à população LGBTQIA+. Apesar da pressão, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu nota informando que não recuaria das resoluções.
Este ano, o assunto voltou a ser discutido na 17ª Conferência Nacional de Saúde, e a proposta de legalização do aborto foi aprovada pela terceira vez na história – se tornando, outra vez, alvo de ataques coordenados pela extrema direita, que atua espalhando fake news na internet e desinformando sobre o papel da plenária.
Participação social
Iniciadas há mais de 80 anos, em cumprimento à Lei n.º 378, de 13 de janeiro de 1937, as Conferências Nacionais de Saúde acontecem a cada quatro anos e reúnem representações do poder público e da sociedade civil para avaliar e propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis municipais, estaduais e nacional.
As plenárias são realizadas em etapas, primeiro municipais, depois estaduais e, finalmente, acontece o encontro nacional. Também existem as chamadas conferências livres, organizadas de forma autônoma para tratar de temáticas específicas. Este ano, foram 99. A cada um desses eventos são eleitos delegados, ou seja, pessoas responsáveis por representar aquele núcleo na etapa seguinte.
“Na etapa nacional, são aprovadas deliberações, no formato de diretrizes, propostas e moções, oriundas dos debates das etapas anteriores, para compor o relatório final, documento que busca subsidiar a gestão do SUS na tomada de decisões, definição de ações prioritárias e elaboração dos planos de saúde”, esclarece o Conselho Nacional de Saúde (CNS), ressaltando que “decisões de Conferência somente podem ser alteradas por outra Conferência.”
Em sua 17ª edição, a Conferência Nacional de Saúde mobilizou duas milhões de pessoas ao longo de todas as suas etapas. Em 2023, para a etapa nacional, foram credenciadas 5.815 pessoas, sendo 3.526 delegadas. Elas aprovaram 1.198 propostas e 245 diretrizes para compor o relatório final, que ainda não foi divulgado.
“Visando garantir que as proposições aprovadas a partir deste processo ascendente, democrático e constitucional da 17ª Conferência Nacional de Saúde pudessem ser avaliadas para incorporação em tempo hábil ao Plano Nacional de Saúde e ao Plano Plurianual de Saúde 2024-2027, o Conselho Nacional de Saúde sintetizou as deliberações em 59 pontos, que compõem a Resolução nº 715, com orientações ao Ministério da Saúde”, explica o órgão.
Tentativas de censura
A proposta de descriminalizar o aborto foi aprovada após amplo debate e consta na Resolução nº 715. Desde então, o presidente do CNS, Fernando Pigatto, recebe ameaças nas redes sociais, entre outros comentários mentirosos que têm por objetivo incitar pânico moral na população, estratégia amplamente adotada pelo bolsonarismo para travar o avanço de pautas de direitos humanos no Brasil.
A Associação Nacional de Juristas Evangélicos chegou a expedir uma nota de repúdio, onde acusa as resoluções de conterem “alta carga ideológica”, por usarem termos como “pessoas que podem gestar” e defenderem o direito ao aborto.
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Partindo das mesmas premissas, parlamentares têm se articulado para sustar as resoluções. Um levantamento d’O Globo mostra que oito Projetos de Decreto Legislativo foram protocolados buscando suspender os efeitos do texto, ainda que ele sirva de aconselhamento e não tenha efeitos práticos – ao menos não diretamente.
As fake news se estenderam até mesmo ao Senado Federal, onde o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), em pronunciamento no plenário, disse que é preciso “tomar cuidado” com o Conselho Nacional de Saúde, que não teria sido “votado” e, portanto, sequer teria “representação popular” – diferente do que o político disse, o CNS é composto por membros eleitos democraticamente a cada três anos.
Apesar da pressão, o CNS, mais uma vez, diz que vai manter o compromisso com a democracia. “O Conselho Nacional de Saúde repudia qualquer tipo de ataque aos princípios democráticos e reitera seu compromisso em defesa do SUS e da participação social. Reforça ainda a importância da promoção da saúde sem boato, do combate à desinformação e suas graves consequências na vida das pessoas.”
Em 9 de agosto, a atual ministra da saúde, Nísia Trindade, foi convocada à Câmara dos Deputados, após requerimento de parlamentares, para prestar esclarecimentos sobre a resolução nº 715. “Especificamente em relação ao aborto, seremos estritos em relação ao cumprimento da lei”, disse na ocasião, mencionando os casos em que o aborto é legalizado no Brasil: estupro, anencefalia fetal e risco à vida da gestante. Mas, diferente de Queiroga, ela não deu indícios de que vai derrubar as resoluções.
Ataques coordenados
Representantes do movimento feminista ouvidas pelo Catarinas afirmam que os grupos antidireitos atuaram de maneira coordenada em todas as etapas da 17ª Conferência Nacional de Saúde para tentar barrar propostas que visavam a garantia de direitos das populações minorizadas, sobretudo as mulheres.
Tatianny Araújo, assistente social e ativista da Rede de Assistentes Sociais Pelo Direito de Decidir e da Resistência Feminista, participou da última Conferência discutindo o eixo três, intitulado “Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia”, no grupo de trabalho número 29. Ela conta que, ao longo das discussões, era perceptível o quanto a agenda bolsonarista estava colocada.
“Tanto as diretrizes quanto as propostas que falavam em mulheres, aborto, DIU, quilombolas, comunidades tradicionais, cannabis, entre outros termos-chave, sofriam destaque. Eu convivi com um senhor, no meu grupo de trabalho, que destacou todas as propostas que tinham algum termo como esses”, relembra.
Seguindo a dinâmica do evento, cada destaque é votado e precisa ser defendido por quem o solicitou, porém, o senhor que pedia supressão total ou parcial das propostas de interesse de grupos minorizados não tinha condições de sustentar, a partir de argumentos qualificados, o que buscava censurar, conforme relata a assistente social.
“Ele argumentava dizendo ‘pela minha religião’ ou ‘por temer a Deus’, mostrando que, para ele, o debate que deveria ser central não girava em torno do direito à saúde, a partir de dados concretos, com base científica. Ele tentava suprimir as propostas pelo que pensava a partir de sua religião e de seus ideais morais”, conta.
Em diálogo com outras feministas, durante os intervalos, ela percebeu que aquele comportamento não se repetia apenas no grupo onde estava atuando. “A gente percebeu que isso se deu de forma organizada desde as pré-conferências”, afirma.
Lígia Cardieri, secretária executiva adjunta da Rede Feminista de Saúde, já esteve em outras cinco edições da Conferência Nacional de Saúde e concorda com a percepção da colega. Ela observa que o aborto sempre foi um tema polêmico, mas nunca foi combatido de maneira tão ativa e coordenada quanto no presente.
“Isso com certeza é fruto desses anos de crescimento de bancadas evangélicas e de todo o trabalho feito no sentido de desqualificar o feminismo, de desqualificar problemas reais de saúde das mulheres”, avalia, citando a agenda antidireitos defendida por Raphael Câmara no Ministério da Saúde, na gestão de Bolsonaro.
Cardieri também esteve presente na 2ª edição da Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, que depois de 1986, só foi realizada novamente em 2017, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro.“Era governo Temer, mas a bancada evangélica já tinha crescido e havia um grupo grande de gente organizada, distribuindo aqueles fetinhos de borracha, com bandeiras ‘a favor da vida’, tentando brigar e boicotar a proposta que falava em defesa do direito da mulher escolher pelo aborto”, resgata.
Mesmo coordenado, o grupo foi derrotado. A votação foi apertada, mas a Resolução nº 561, de 6 de outubro de 2017, propõe: “Promover a Educação Permanente em Saúde, sensibilizando os profissionais de saúde para o recebimento de mulheres que tenham sofrido violência (sexuais, psicológica, verbal e física) e diversos tipos de violação de direito, orientando quanto ao fluxo de atendimento (notificações, referência e contra referência), assim como garantir a descriminalização do aborto.”
A descriminalização do aborto é assunto de competência do Legislativo, conforme ressalta a feminista, porém, é inquestionável a força das deliberações aprovadas nas Conferências Nacionais de Saúde no sentido de “botar em relevo que esta é uma demanda de mulheres feministas e profissionais de saúde que fazem um trabalho sério”, afinal, para que uma proposta conste em um relatório final, ela precisa ter alcançado ao menos 50% de aprovação entre os delegados e delegadas presentes.
“Temos uma caminhada longa de debate, e cabe a nós continuar mostrando por que tantas mulheres buscam fazer o aborto e quem arrisca a vida buscando um aborto ilegal. São mulheres pobres, negras, meninas muito jovens que não contam para ninguém o que aconteceu e vão fazer qualquer tipo de aborto”, aponta a secetária executiva adjuntada Rede Feminista de Saúde, esperançando um amanhã onde meninas e mulheres sejam cuidadas pelo Estado brasileiro.