Por unanimidade, na última terça-feira (1), o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional o uso da tese da “legítima defesa da honra” durante julgamentos de casos de feminicídio. Isso significa que o argumento não poderá ser usado por advogados, policiais ou juízes, de forma direta ou indireta, durante a fase de investigação e em tribunais do júri. Também foi determinado que poderão ser apresentados recursos a tribunais de segunda instância para anulação de absolvições em casos que tenham se baseado nesse argumento.

A tese da “legítima defesa da honra” era usada em casos de feminicídio ou agressão para justificar comportamentos dos acusados, usando como argumento que as violências ocorreram, por exemplo, motivadas por traição ou ciúme. “Basicamente ela se baseia na concepção machista e patriarcal de que o valor da vida das mulheres é inferior à honra dos homens”, resumiu o advogado Eric Diniz Casimiro, da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ), que atuou como amicus curiae da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 779) apresentada à corte, durante a sessão de 30 de junho.

“Aqueles que defendem essa tese, veem a mulher como um mero objeto, algo que precisa ser subjetivo aos desejos e vontades dos homens. Ao invés de reconhecer o valor da vida e da dignidade das mulheres como uma pessoa, essa tese atribui à vítima uma culpa pela sua própria morte ou lesão”, completou Casimiro.

Tese machista

De acordo com a advogada Melina Fachin, professora da Universidade Federal do Paraná e pós-doutora em democracia e direitos humanos, a queda da tese reflete os anos de luta do movimento feminista brasileiro. “Nos dias de hoje, a tese da legítima defesa da honra tem sido cada vez mais questionada e rejeitada – todavia, ainda reflete uma sociedade machista e patriarcal. A conscientização crescente sobre a violência de gênero e a luta por igualdade têm contribuído para a redução do uso dessa tese como justificativa para atos de violência”, diz.

De maneira prática, isso significa que “agressores não poderão se valer dessa tese para tentar se isentar de responsabilidade pelos crimes cometidos contra as mulheres. Isso fortalece a mensagem de que a violência não pode ser tolerada em nome da suposta defesa da honra”.

De maneira simbólica, “a proibição da tese da legítima defesa da honra envia uma mensagem clara de que o sistema judiciário está comprometido em combater a violência de gênero e que não aceitará mais argumentos que culpabilizem a vítima. Essa decisão representa um avanço na promoção da igualdade de gênero, ao rejeitar concepções arcaicas que perpetuam estereótipos de gênero e promovem a impunidade de agressores”, acrescenta a especialista.

Segundo Fachin, a legítima defesa da honra não é a única tese utilizada nos tribunais que busca justificar a violência contra mulheres. Outros exemplos contemporâneos são a “legítima defesa da família”, a “paixão” ou o “ciúme doentio”, que também devem ser combatidas na prática da profissão. “Essas teses são frequentemente utilizadas para minimizar a responsabilidade do agressor e culpar a vítima, perpetuando a cultura do machismo”, aponta.

Em sua visão, o judiciário tem a missão de continuar questionando e combatendo todas as formas de violência de gênero, bem como as teses que buscam justificar tais atos.

“A defesa dos direitos das mulheres requer a desconstrução de conceitos e práticas que legitimam a violência, bem como a implementação de políticas e leis que assegurem a proteção e a igualdade de gênero na sociedade”, finaliza. 

Histórico

A ADPF 779, que resultou na decisão do STF, foi apresentada em janeiro de 2021 pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Durante a sustentação oral da ADPF em 30 de junho, a advogada Alessandra Lopes da Silva Pereira destacou que a proteção ao direito da vida e integridade da mulher exclui qualquer impacto à honra de outra pessoa. “Trata-se do emprego de lógica completamente descabida, que inverte os pólos do processo penal e de forma simbólica inclui a vítima reduzida à condição de objeto no rol dos culpados”, disse.

As ministras e ministros do STF acompanharam o voto do relator do caso, ministro Dias Toffoli. “Legítima defesa da honra não é tecnicamente legítima defesa”, apontou durante a audiência do final de junho. “Não é dada à defesa do acusado de feminicídio ou a qualquer autor do processo do judiciário, em especial, no tribunal de júri, lançar mão de recurso argumentativo que vise reduzir a vítima em dignidade e valor, sob o pretexto ilícito de lhe atribuir a causa da própria morte”, ressaltou.

A votação foi retomada em 1º de agosto, com a volta das atividades do STF após o recesso. A corte entendeu que o uso da tese contraria os princípios constitucionais da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. A ministra Rosa Weber definiu a decisão de invalidar o uso da tese como um rompimento com valores arcaicos da sociedade.

“Não há espaço para a restauração dos costumes medievais e desumanos do passado pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso em defesa da ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina pela qual se legitima a eliminação da vida de mulheres”, argumentou.

A ministra Cármen Lúcia destacou que mais do que uma questão jurídica, invalidar o uso da tese da legítima defesa é uma questão de humanidade. “A sociedade ainda hoje é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas vidas”, afirmou.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, 1437 mulheres foram mortas em 2022 por serem mulheres, um aumento de 6,1% em comparação com 2021. Além do feminicídio, outras formas de violência contra mulheres também cresceram no último ano. As agressões em contexto de violência doméstica aumentaram 2,9%, totalizando 245713 casos, e as ameaças cresceram 7,2%, resultando em 613529 casos.

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    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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