Postura ultraconservadora do Governo Bolsonaro e ineficiência diante da pandemia do novo coronavírus impuseram retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos no País.

2021 começou com duas boas notícias relacionadas ao direito ao aborto no âmbito internacional: em  01 de janeiro, a Coreia do Sul descriminalizou o aborto no país – em abril de 2019, o Tribunal Constitucional já havia decidido que a lei que criminaliza o aborto era inconstitucional. Ainda em 2020, às vésperas da virada de ano, o Senado Argentino aprovou a legalização do aborto até a 14ª semana. 

A vitória das argentinas e das sul coreanas fortalece as esperanças de quem luta contra a criminalização de mulheres e pela legalização da interrupção voluntária da gestação no Brasil. No entanto, se considerarmos os acontecimentos no âmbito nacional relacionados ao tema durante 2020, veremos que houve um ataque direto aos direitos sexuais e reprodutivos no país – fato que demonstra que a luta pela descriminalização do aborto por aqui ainda será árdua.

Confira a retrospectiva dos principais acontecimentos envolvendo o direito ao aborto em 2020.

MARÇO

Começa a ser identificado casos de contaminação do novo coronavírus no Brasil. Serviços são fechados ou restritos, sendo um deles o maior serviço de aborto legal do país, no Hospital Pérola Byington, por não ser considerado um serviço essencial. Dias depois, após uma petição ser mandada para juízes estaduais, o serviço voltou a funcionar.

ABRIL

04 de abril: Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou um comunicado classificando os serviços de saúde reprodutiva como “essenciais”. “Os serviços relacionados à saúde reprodutiva são considerados parte dos serviços essenciais durante o surto de COVID-19. Isso inclui métodos contraceptivos, cuidados de saúde de qualidade durante e após a gravidez e o parto e aborto seguro em toda a extensão da lei”, afirma um trecho do comunicado.

08 de abril: Ministério da Saúde inclui gestantes e puérperas no grupo de risco para Covid-19. 

16 de abril: Após inúmeros desgastes e discordâncias com o presidente Jair Bolsonaro sobre como agir para evitar a propagação da Covid-19, Luiz Henrique Mandetta deixa o cargo de Ministro da Saúde. Diante disso, sites conservadores e religiosos criticam o ex-ministro por não mudar as leis sobre aborto – algo que um ministro não pode fazer. A única exigência do presidente Bolsonaro para um novo ministro era que fosse uma pessoa contra o aborto. O escolhido, Nelson Teich, deixou o cargo após 28 dias. Desde meados de maio, o Ministério da Saúde é comandado por um militar.

20 de abril: reportagem do site Gênero e Número mostra que o acesso a contraceptivos tornou-se mais difícil devido à pandemia. 

30 de abril: O Supremo Tribunal Federal rejeitou a ADI 5581 (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5581), ajuizada pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), que pedia que o STF protegesse as necessidades de saúde e direitos de mulheres e crianças afetadas ou em risco de serem afetadas pelo vírus zika, entre eles a garantia de cuidados médicos para as crianças com microcefalia, ajuda econômica vitalícia e a possibilidade de aborto legal para as mulheres diagnosticadas com zika. Logo que foi colocado em pauta, as redes sociais foram invadidas por fake news sobre a ação, declarando que seu objetivo era apenas legalizar o aborto. 

MAIO

A divulgação da gravação de uma reunião ministerial mostrou que o foco de atuação da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos – e pastora evangélica – Damares Alves continua sendo o direito ao aborto. Ela falou sobre o assunto duas vezes na reunião: primeiro perguntou se mulheres com coronavírus também iriam querer fazer aborto – numa alusão à ação que seria julgada pelo STF – e reclamou que o Ministério da Saúde estava cheio de feministas querendo legalizar a prática.

JUNHO

01 de junho: Publicação da Nota Técnica Nº 16/2020-COSMU/CGCIVI/DAPES/SAPS/MS pela equipe da Coordenação de Saúde das Mulheres do Ministério da Saúde, diante do aumento da violência doméstica na pandemia. A nota abordava a telemedicina, o acesso à contracepção de emergência (pílula do dia seguinte) e colocava o serviço de aborto legal como essencial. Ao tomar conhecimento, o presidente disse que a nota queria legalizar o aborto no Brasil – ignorando que uma nota técnica é incapaz de mudar uma lei. Dias após a reclamação do presidente, o ministério apagou a nota e exonerou os autores dela. 

02 de junho: Mapeamento da Artigo 19 em parceria com a Revista AzMina e a Gênero e Número mostra que 45% dos serviços de aborto legal do país fecharam com a pandemia, deixando metade dos estados sem um único serviço disponível.

23 de junho: Não bastasse o total descaso com o número de casos e de mortes pelo novo coronavírus e a exoneração dos servidores que publicaram a nota técnica 16/2020, o ministro interino do Ministério da Saúde, general Eduardo Pazuello, nomeou o médico ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente para a Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS), demonstrando completo desprezo pela saúde e pela vida de brasileiros e brasileiras.

24 de junho: O Brasil se recusou a apoiar uma resolução da ONU que falava da necessidade de garantir “saúde sexual e reprodutiva” a pessoas afetadas por crises humanitárias. O posicionamento brasileiro é contrário ao uso dos termos pois, de acordo com o governo, são sinônimos de aborto. A resolução tinha como objetivo garantir os direitos das mulheres durante a pandemia. O chanceler também criticou o uso dos termos “educação sexual” e “anticoncepcionais modernos” no documento.

Em agosto, reportagem do Catarinas mostra o caminho da menina de dez anos de São Mateus (ES) até conseguir acessar o direito ao aborto. Ilustração: Beatriz Lago.

JULHO

8 de Julho: Brasil apoiou emendas que retiram termos como “saúde sexual e reprodutiva” de resoluções do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Em uma das resoluções, contra o casamento infantil e forçado, o país votou a favor de uma emenda proposta por Egito e Iraque que pedia a exclusão da referência “ao direito à saúde sexual e reprodutiva”. Em votação sobre outra resolução, relacionada à educação sexual, o Brasil apoiou a mudança proposta pelo Paquistão de excluir a recomendação de “garantir o acesso universal à educação abrangente sobre sexualidade baseada em evidências”. Em outro texto, proposto por países africanos para banir a mutilação genital feminina, o Brasil se opôs a citar “saúde sexual e reprodutiva”.

17 de Julho: Brasil se abstém na votação de um relatório do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre discriminação contra mulheres e meninas. Apesar da abstenção, a representação brasileira se juntou a países ultraconservadores na proposição de emendas que pediam a retirada de trechos que afirmavam o “direito à saúde sexual e reprodutiva”, por exemplo.

AGOSTO

Torna-se público a luta travada pela família de uma menina de 10 anos, de São Mateus, Norte do Espírito Santo, grávida em decorrência de estupros recorrentes nos últimos 4 anos cometidos por um tio, para que ela conseguisse acessar o direito ao aborto. Graças à mobilização de feministas e de profissionais de saúde comprometidas/os, ela foi transferida para o Recife-PE, onde realizou o procedimento. 

18 de agosto: o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou definitiva a decisão de que o padre Luiz Carlos Lodi deve pagar R$ 398 mil de indenização por danos morais ao casal Tatielle Gomes e José Ricardo Dias por, 15 anos atrás, ter impedido que eles realizassem um aborto permitido pela lei brasileira. Tatielle, então com 19 anos, já tinha iniciado o procedimento e foi mandada para casa pela equipe médica. Após 11 dias com dores e sangramento, ela deu à luz uma menina que morreu pouco depois do parto por causa de múltiplas malformações. Apesar de o padre declarar não ter como pagar a indenização de R$ 398 mil reais, este foi o maior triunfo legal do direito ao aborto em 2020 no Brasil. Uma campanha de financiamento coletivo tenta garantir parte da indenização para Tatielle. 

27 de agosto: Dez dias depois que o direito ao aborto legal foi garantido para a menina de São Mateus – e depois de dados oficiais mostrarem que mais de mil abortos legais foram feitos no primeiro semestre de 2020, um novo recorde no Brasil -, o Ministério da Saúde publicou a portaria 2282/2020, alterando as regras para atendimento a vítimas de violência sexual que procuram hospitais para a realização do aborto previsto em lei. Entre as mudanças estava oferecer à vítima que veja o embrião via ultrassom antes de assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Além disso, impõe às/aos profissionais de saúde que comuniquem autoridade policial sobre o fato, contradizendo o Código de Ética dos profissionais e atentando contra o direito à privacidade de vítimas de violência sexual.

Na noite em que a portaria foi publicada, a ministra Damares declarou numa live com o presidente que o ministério dela não tentaria mudar as atuais leis sobre o aborto. No entanto, três dias depois desta declaração, Damares indicou, para o Departamento de Promoção da Dignidade das Mulheres no seu ministério, Teresinha de Almeida Ramos, que vem, há anos, comparando aborto ao infanticídio mesmo quando a gravidez é resultado de estupro. Esta indicação, assim como a de Raphael Câmara em junho, mostrou que o plano não é mudar as leis sobre aborto, mas desmontar as políticas  e os mecanismos de saúde que fazem com que essas leis possam ser cumpridas. 

30 de agosto: Reportagem do El País mostra que serviços de aborto legal no Brasil estão atendendo o dobro de pacientes se comparado a antes da pandemia, a maioria delas vítimas de estupros que ocorreram durante o confinamento e que já passaram do primeiro trimestre da gravidez, algo que pode fazer com que alguns serviços se recusem a atendê-las.

SETEMBRO

02 de setembro: O Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (Ibross) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6552) no Supremo Tribunal Federal para questionar a Portaria 2.282. A ADI foi distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski.

04 de setembro: Cinco partidos de oposição – PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT – ajuizaram a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 737, em que pedem liminar para suspender a eficácia da Portaria 2.282. 

10 de setembro: Portal Catarinas publica entrevista com Olímpio Moraes, médico obstetra responsável pelo atendimento à menina de 10 anos de São Mateus, onde ele fala sobre a situação do abortamento legal no Brasil e o papel do serviço de saúde na garantia do direito.

20 de setembro: reportagem da Folha de São Paulo revela que Damares Alves agiu para impedir aborto na menina de dez anos de São Mateus. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos enviou representantes para a cidade para persuadirem os responsáveis por conduzir o procedimento, oferecendo benfeitorias ao Conselho Tutelar local. O objetivo da operação era transferir a criança de São Mateus (ES) para um hospital ligado à igreja quadrangular em Jacareí (SP), onde aguardaria a evolução da gestação e faria uma cesariana, apesar dos riscos para a saúde da menina. O Portal Catarinas publica uma reportagem abordando as as violações sofridas pela menina de São Mateus desde que seu caso se tornou público.

Reportagem do Catarinas aborda as várias violações sofridas pela menina do Espírito Santo. Ilustração: Camila do Rosário.

23 de setembro: Ministério da Saúde publica a Portaria 2.561, que substitui a Portaria 2.282, após repercussão negativa na sociedade e um dia antes de ir à votação a ADPF 737, que questionava a constitucionalidade da Portaria 2.282. Novo texto mantém a orientação de denúncia do estupro à autoridade policial por profissionais de saúde.

28 de setembro: Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto. Mobilizações nacionais e em toda a América-Latina e Caribe. Devido à pandemia, manifestações de rua não foram possíveis. Os movimentos feministas fizeram, então, intervenções urbanas, com colagem de lambes, cartazes e faixas em pontos das cidades, e realizaram lives durante o dia. Destaque para a live da Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, que aconteceu das 9h às 13h, com participação de inúmeras ativistas e especialistas sobre o tema; e a live da Frente Nacional contra a Criminalização de Mulheres e Pela Legalização do Aborto, que aconteceu das 14 às 16h.

OUTUBRO

01 de outubro: Portal Catarinas lança reportagem que analisa os dados de aborto legal no Brasil e serviços cadastrados para atendimento de vítimas de violência sexual nos últimos 5 anos

02 de outubro: O jornal O Globlo revelou que a primeira-dama Michelle Bolsonaro desviou quase 15 mil reais do programa Patría Voluntária, que estavam destinados aos testes de coronavírus, e repassou o dinheiro a uma ONG antiaborto que tentou impedir o procedimento na menina de São Mateus. 

03 de outubro: Reportagem do O Globo revela que o Ministério da Saúde admitiu ter sido pressionado por entidades contrárias ao aborto previsto em lei para que editasse Portaria para dificultar a realização do procedimento por vítimas de violência sexual. O órgão divulgou ofícios e documentos que, segundo ele, embasaram a criação da Portaria 2.282, em agosto. O material mostra que a pressão foi feita por duas entidades: Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF) e Associação Virgem de Guadalupe. As duas são conhecidas como entidades antiaborto. 

22 de outubro: governo brasileiro assina aliança com os EUA, Egito, Hungria, Uganda, Indonésia e 26 outros países, em evento chamado Consenso de Genebra, que traduz em documento oficial a guinada ultraconservadora para a “defesa” da “família” e da “vida desde a concepção”. “Celebramos que o texto da declaração ora assinada consagre a inexistência de um direito à interrupção voluntária da gravidez, como às vezes se afirma em determinados fóruns internacionais”, disse Damares Alves no evento. 

27 de outubro: Um desembargador de São Paulo acatou um pedido de uma organização religiosa ultraconservadora e, citando passagens da Bíblia na decisão, proibiu a organização Católicas pelo Direito de Decidir, fundada em 1993, de usar o termo “católicas” no nome, afirmando que as causas defendidas pela organização são incompatíveis com a Igreja Católica. A organização recorreu da decisão. 

No mesmo dia, o governo brasileiro publicou no Diário Oficial da União o decreto Estratégia Federal de Desenvolvimento do Brasil no período de 2020 a 2031. Entre as diretrizes está “promover o direito à vida desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e proteção às gestantes”. 

Levantamento do Catarinas mostra dados sobre serviços e procedimento de aborto legal realizados no Brasil nos últimos 5 anos. Ilustração: Beatriz Lago.

NOVEMBRO 

17 de novembro: Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU envia documento para o governo brasileiro pedindo ao ministério liderado por Damares Alves o que tem sido feito no Brasil para garantir que, dentro da lei, mulheres tenham acesso ao aborto seguro. A entidade ainda cobra explicações sobre o que tem sido feito para assegurar a proteção às mulheres no Brasil e pede detalhes sobre o orçamento para esse fim.

DEZEMBRO 

05 de dezembro: Reportagem da Revista Época mostra que a secretária da Família do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Angela Gandra, teve viagem à Polônia paga pela entidade anti-direitos Ordo Iuris. A servidora esteve em Varsóvia de 12 a 15 de novembro e participou de reuniões com o governo polonês, de extrema-direita que, em outubro, considerou inconstitucional a interrupção de gestações em casos de malformação fetal. Essa era uma das três situações permitidas pela já restritiva legislação polonesa, e representou cerca de 97% dos 1.100 abortos praticados legalmente no país em 2019, segundo dados oficiais.

30 de dezembro: Após a aprovação do direito ao aborto até a 14ª semana de gestação na Argentina, a ala mais conservadora do governo Bolsonaro passou a discutir formas de impedir que o mesmo aconteça no Brasil, segundo coluna de Leonardo Sakamoto. Em seu perfil na rede social Twitter, o chanceler Ernesto Araújo escreveu que “o Brasil permanecerá na vanguarda do direito à vida e na defesa dos indefesos, não importa quantos países legalizem a barbárie do aborto indiscriminado, disfarçado de ‘saúde reprodutiva’ ou ‘direitos sociais’ ou como quer que seja”. Em sua conta no Twitter, o presidente Jair Bolsonaro também se posicionou contrário ao avanço argentino. Segundo ele, “No que depender de mim e do meu governo, o aborto jamais será aprovado em nosso solo”. Ao relacionar a proibição do aborto à “proteção da vida de inocentes”, Bolsonaro desconsidera que crianças até 13 anos são as principais vítimas de violência sexual que resultam em gravidezes no Brasil. A cada 4 horas uma criança é estuprada no país. Essas vidas inocentes seguem sem defesa dos negacionistas que compõem o governo de Jair Bolsonaro.

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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