Em meio à maior pandemia e crise médico-sanitária dos últimos cem anos, a saúde não é prioridade do governo de Jair Bolsonaro. Após a demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta, por discordâncias diretas com as posturas anti científicas do presidente, e da renúncia de Nelson Teich, também por diferenças com Bolsonaro, o Ministério da Saúde está sem titular na pasta há 40 dias. Nesta quarta (24), o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou a emissão de um alerta ao governo federal em relação à falta de diretrizes estratégicas para combater a pandemia do novo coronavírus. No Brasil, já são mais de 1 milhão de infectados e mais de 53 mil mortes em decorrência da Covid-19. 

Não bastasse o total descaso com o número de casos e de mortes pelo novo coronavírus, no início de junho, o ministro interino, general Eduardo Pazuello, exonerou servidores da área da Saúde das Mulheres e da Saúde do Homem após a emissão de uma nota técnica que orientava para a manutenção dos serviços de atendimento a gestantes, vítimas de violência sexual e a disponibilização de exames preventivos e de métodos contraceptivos durante a pandemia. Além disso, na última terça (23), nomeou o  médico ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente para a Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS), demonstrando completo desprezo pela saúde e pela vida de brasileiros e brasileiras.

A nomeação de Câmara tem movimentado as organizações que atuam em defesa dos dos direitos das mulheres no país. O médico, que é conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), tem posições que contrariam dados consolidados na área técnica de saúde e as políticas em saúde que visam garantir os direitos à dignidade e à vida das mulheres brasileiras.

“Nós recebemos essa notícia com uma preocupação muito concreta com relação às políticas de saúde para as mulheres que vêm sendo implantadas, aprimoradas e vêm avançando, desde a década de 1990, na tentativa de preservar os direitos humanos das mulheres. Porque esse senhor tem um comportamento claramente misógino e demonstra isso em todas as audiências públicas em que nós, do Curumim, assistimos, tanto nas defensorias públicas quanto na própria audiência no Supremo Tribunal Federal, onde ele participou representando um instituto liberal do Rio de Janeiro que eu nem sei se existe efetivamente com práticas ou com ações de saúde”, declara Paula Viana, enfermeira-obstetra e coordenadora do Grupo Curumim, uma organização não governamental feminista que desenvolve projetos de fortalecimento da cidadania das mulheres.

 

A negação dos dados sobre as mortes por aborto 

A Audiência Pública a que Viana se refere aconteceu em torno da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que discutiu, em agosto de 2018, a possibilidade de descriminalização do aborto até a 12ª semana da gestação. Nesta audiência, Câmara manifestou-se contrário às políticas de saúde para as mulheres, negando, para isso, a existência de mortes de mulheres em decorrência de abortos inseguros.

“Eu, com 41 anos, já trabalhei nas maiores maternidades do Rio de Janeiro, só vi uma morte por aborto. E se perguntar para todos aqui, não vai sair de um ou dois. Isso não existe. As mulheres morrem no parto, morrem por sangramento, não morrem por aborto. É óbvio que você vai encontrar, como tudo na vida você encontra, se você for procurar”, afirmou em sua participação na audiência pública.

Sua posição, no entanto, não está fundamentada em dados científicos. De acordo com Viana, em várias exposições do médico, ele demonstra que ignora a ciência.

“Ele ignora a informação, as estatísticas que o Brasil têm reunido em torno da mortalidade materna, em torno do aborto, do número de abortamentos que são número de internamentos de mulheres por internamentos complicados, ele ignora que o Brasil seja um dos campeões no índices de mortalidade materna no mundo, ele diz que são falácias”.

A negação dessa realidade, no entanto, não a faz desaparecer. No início deste mês (3 de junho), mais um caso de morte em decorrência de aborto inseguro chegou à imprensa. Dessa vez, uma mulher 31 anos faleceu em Bom Jesus do Norte, no Espírito Santo, após supostamente realizar um procedimento com seringa, sonda e permanganato de potássio. A pessoa suspeita de ajudá-la no procedimento, uma mulher de 48 anos, foi presa.

Maria de Fátima Marinho, que foi coordenadora geral de informações e análise do Ministério da Saúde (2005-2008), em sua participação na audiência da ADPF 442, informou que a estimativa do Ministério é de que ocorram cerca de 1 milhão de abortos induzidos no Brasil por ano. Segundo ela, as complicações por aborto inseguro representam uma sobrecarga imensa e totalmente evitável ao Sistema Único de Saúde.

“O procedimento inseguro do aborto leva a mais de 250 mil hospitalizações no Sistema Único de Saúde por ano. Isso gera 15 mil complicações, 5 mil complicações extremamente graves e 203 mortes, quase uma morte a cada dois dias”.

Conforme estudo realizado por Bruno Baptista Cardoso, Fernanda Morena dos Santos Barbeiro Vieira e Valeria Saraceni e publicado em 2020, os óbitos por aborto no Brasil eram 5,7% dos óbitos maternos em 2006 e passaram a 4,1% em 2015. O estudo constatou que entre 2006 e 2015 foram identificados 770 óbitos maternos com causa básica o aborto e 220 óbitos que têm o aborto como uma das causas mencionadas, como é o caso dos óbitos por infecção puerperal. 

Esses 220 casos representam acréscimo de aproximadamente 29% no total de óbitos associados ao aborto no período no Brasil, mas ainda são dados subnotificados. De acordo com o estudo, há uma grande dificuldade na identificação do óbito materno por aborto, situação agravada ainda mais pela ilegalidade da prática. “Os mesmos determinantes que condicionam a subnotificação de óbitos maternos em geral se aplicam aos óbitos por aborto registrados no SIM [Sistema de Informações sobre Mortalidade], especialmente aqueles relacionados ao aborto induzido. Outros fatores poderiam se somar, como fatores legais, religiosos, éticos, familiares etc. Esses fatores poderiam interferir na determinação e identificação da causa do óbito por aborto”.

A confiabilidade dos dados divulgados pelos sistemas de informação do Ministério da Saúde é essencial para a criação de políticas públicas e para a manutenção dos serviços. Assim, essa é outra das questões que preocupa os grupos relacionados às direitos das mulheres, como alerta Viana:

“Com ele agora na gestão federal, nos preocupa muito a manipulação de dados ou de retenção de informações cruciais para o planejamento das ações de saúde. O Sistema Único de Saúde vem aprimorando esse sistema de informação e o Sistema de Informação da Saúde é a base que alimenta as estratégias para a redução, para a prevenção, para tratamento e acompanhamento e segmento dos eventos e de procedimentos necessários para que a gente possa ter uma mortalidade materna e uma mortalidade feminina menor. Então nós temos uma preocupação muito grande com isso e creio que vamos enfrentar um momento de muito retrocessos”.

 

Quem mais sofre com o desmonte das políticas de saúde 

A preocupação em torno da nomeação de Câmara também se relaciona a outro aspecto das necessidades de políticas de saúde: a compreensão de que a falta de acesso ao Sistema de Saúde não afeta a toda a população da mesma maneira. Este é outro dos aspectos negados pelo médico.

“Porque agora sempre que quer se convencer alguma coisa, você fala ‘preta’, ‘pobre’, não sei o que, virou um chavão. Sabe quem menos morreu? As pretas, nesse mesmo estudo. Não, não estou inventando, pega o estudo da prefeitura, quem mais morreu foram as brancas e pardas, é importante falar isso”.

Esse trecho da fala de Câmara durante a Audiência Pública da ADPF 442, aponta para um equívoco ou desconhecimento relacionado aos dados sobre a mortalidade materna no Brasil. De acordo com o estudo de Cardoso, Vieira e Saraceni (2020), o perfil das mulheres que morreram por aborto de 2006 a 2015 é coincidente com outros vários estudos sobre o tema realizados no Brasil: “o óbito por aborto caracteriza uma situação de iniquidade em saúde devido ao maior número de óbitos nos grupos de maior vulnerabilidade (baixa escolaridade e raça/cor negra)”.

Pesquisa realizada em Minas Gerais por Eunice Francisca Martins e outras autoras, publicada em 2017, apresentou as características das pessoas que foram a óbito relacionado ao aborto: mulheres de 20-34 anos, solteiras (68%) e negras (70,5%), em sua maioria com menos de 7 anos de estudos. 

De acordo com Emanuelle Freitas Góes, doutora em Saúde Pública com concentração em Epidemiologia (ISC/UFBA) e membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva/Abrasco, a mortalidade materna no Brasil tem cor. “Os estudos que trabalham com a temática revelam isso. São as mulheres negras as mais atingidas, sendo as maiores vítimas de mortes maternas consideradas evitáveis, como hipertensão, hemorragia, infecções e abortos inseguros”, analisa. 

Embora o aborto seja um evento que ocorre durante a vida reprodutiva das mulheres, independente de classe social, grupo racial, nível educacional ou religião, como demonstrou a Pesquisa Nacional sobre Aborto (2016), a realização do procedimento de forma insegura é evidenciada, especialmente, entre mulheres negras, menos escolarizadas e residentes das regiões Norte e Nordeste, segundo Góes. 

“A minha pesquisa sobre Racismo, Aborto e Atenção a Saúde, um estudo realizado em três capitais do Nordeste Brasileiro (Salvador, Recife e São Luís), revela que as mulheres negras são as que mais declaram aborto provocado e que têm mais chances de ter um aborto inseguro e, na busca pelo serviço de saúde, são as que têm mais medo de serem maltratadas. Isso se confirma quando elas chegam no hospital para finalizar o aborto (provocado ou espontâneo), pois são elas que esperam mais para serem atendidas, aguardam vagas pro leito e as parturientes são atendidas primeiro. O estudo revelou com isso a discriminação interseccional do racismo e do estigma do aborto”, explica. 

As pesquisas mencionadas, assim como a análise de Góes, demonstram que Câmara ignora não só os dados consolidados sobre a mortalidade materna no país, mas também o perfil social das pessoas mais vulnerabilizadas pela legislação que criminaliza as mulheres que abortam. Enquanto mulheres ricas viajam para fora do país ou pagam caro pelas interrupções das gestações em clínicas particulares, as mulheres pobres, muitas vezes negras, estão sujeitas à criminalização e à insegurança que essa criminalização impõe até mesmo para aquelas que têm abortos espontâneos. 

“Então ele tem sido uma figura que demonstra a misoginia, o preconceito, que nega o racismo institucional, confunde as diretrizes relacionadas à prevenção da mortalidade materna em relação à indicação de cesarianas. É bom lembrar que esse senhor se apresentou como assessor da deputada Janaína Pascoal (PSL/SP) naquele famigerado projeto de lei de São Paulo onde claramente tende a colocar a cesárea como uma opção, baseada no desejo do médico ou no desejo da mulher, colocando ao lado as evidências científicas que relacionam o aumento da cesárea com o aumento da morte materna e o aumento a morte de bebês”, recorda Viana. 

Embora Câmara seja considerado uma ameaça aos direitos e às políticas de saúde da mulher já existentes no Brasil, Helena Borges Martins da Silva Paro, médica, ginecologista e obstetra, que coordena o Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (NUAVIDAS HC/UFU), a esperança é que o trabalho feito por ele não seja guiado por suas crenças ideológicas ou religiosas.  

“Nós desejamos muito que Raphael Câmara faça uma boa gestão à frente da Secretaria, por ser um médico, não ser um militar. E a gente espera que pela formação técnica, científica e ética que ele recebeu durante a graduação e a pós-graduação, ele consiga separar as suas crenças pessoais e ideológicas e consiga ter uma gestão técnica e científica em uma secretaria que exige isso: atitudes e ações baseadas em evidências científicas sólidas”, afirmou a médica, que também é membra da Comissão Nacional Especializada (CNE) de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo (Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia), da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice Brazil).

“A gente espera ele que siga as recomendações e evidências científicas que embasam recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), das Nações Unidas (ONU), da Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras e que suas ações sejam voltadas para o melhor para a população brasileira, inclusive para as mulheres, já que ele é um ginecologista e obstetra e foi formado para cuidar do bem estar e da vida das mulheres”, acrescenta a entrevistada. 

A expectativa em torno dessa nomeação é grande, especialmente, como lembra Emanuelle Góes, por o Brasil ter sido condenado, em 2000, na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (Cedaw), pela morte materna de Alyne Pimentel (negra jovem da periferia do Rio de Janeiro), considerando as questões das discriminações e violências de gênero e raça.

“O país não atingiu a meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) sobre morte materna, que tinha como limite o ano de 2015. Vale destacar que o não alcance da meta tem relação com a falta de estratégia de enfrentamento ao racismo institucional nos serviços de saúde, pois quando olhamos os dados a época, em 2013, as mulheres negras apresentavam a taxa de quase o dobro quando comparadas às mulheres brancas”, avalia. 

Ainda segundo Paula Viana, existe um receio de que, além da manipulação dos dados e de informações relacionadas a isso, ocorra uma diminuição de insumos com relação ao planejamento familiar. “Porque ele é um médico que é alinhado com os pensamentos mais obscuros com relação à abstinência sexual. Ele defendeu, junto à [Ministra] Damares [Alves], uma política baseada na orientação para abstinência sexual. Então não é um profissional que vai valorizar os métodos contraceptivos, não vai valorizar a ciência em si. Mas reafirmo o papel importante do movimento feminista no monitoramento e na denúncia sistemática nas ações que possam proceder e que possam violar os direitos humanos das mulheres”, finaliza. 

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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