“Esta lei dispõe sobre a proteção e direitos da Gestante, pondo a salvo a vida da criança por ‘nascer desde a concepção’”. O artigo 1º do Projeto de Lei n° 5435, de 2020, que cria o Estatuto da Gestante, deixa claro de antemão, que não se trata de garantir direitos das mulheres, pelo contrário, não passa de mais uma estratégia para obrigar as vítimas de estupro, meninas e mulheres adultas, a gerarem filhos do estuprador, e o pior conferindo direito de pai ao criminoso. De autoria do senador Eduardo Girão (Podemos/CE), a proposta, a mais nova versão da “Bolsa Estupro”, foi apresentada em 4 de dezembro de 2020 em regime de urgência no Senado Federal, ou seja sem passar pela análise das comissões, e pode ir a plenário para ser discutido e votado a qualquer momento.
A exemplo do Estatuto do Nascituro, o PL 478/2007, e da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181/2015, trata-se da conhecida manobra chamada de cavalo de troia, por ser uma proposta camuflada de garantia de assistência às gestantes, mas que não traz nenhum avanço nesse sentido, para extinguir o direito das vítimas de estupro ao abortamento legal. Na prática, se aprovado, as vítimas de estupro serão obrigadas a terem filhos do estuprador, e como compensação irão receber um salário-mínimo mensal a ser pago pelo estuprador ou Estado. O texto não explica, porém, como será provido o recurso para isso.
“A gente vem alertando há um bom tempo como a bancada fundamentalista se organiza no Congresso. Antes da pandemia tivemos o clássico cavalo de troia, a PEC 181, que era sobre extensão da licença no caso de bebê prematuro, e modificaram para colocar a proteção da vida desde a concepção. Agora, o estatuto da gestante, em que fantasiam com políticas públicas já existentes há muitas décadas, inclusive por conquistas dos movimentos de mulheres, feministas, para conseguir passar o estatuto do nascituro, conhecido como bolsa estupro. É uma maneira de ludibriar a sociedade, o debate público”, afirma Masra Abreu, assessora técnica do Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), ao Catarinas. A conversa com assessora será publicada na íntegra.
A mobilização social contra a proposta, considerada um ataque aos direitos das meninas e mulheres, já traz resultados como o rechaço massivo em uma enquete na página da Câmara Federal: são mais de 273 mil votos contrários ante 27 mil favoráveis. Outra resposta à mobilização é a notícia de que a senadora Simone Tebet (MDB-MS), relatora do PL, poderá apresentar um texto substituitivo, de forma a manter o direito ao abortamento em caso de estupro, excluindo a bolsa estupro. O novo texto ainda não foi apresentado oficialmente.
Na análise de Masra, pode ser mais uma manobra para abrir caminhos à retirada de direitos. “Tem que ver se naquela jogada, colocam tudo na mesa, ela tira um pouquinho para abafar, mas passa. De toda forma, o PL não pode passar, porque a alma dele cria campos e caminhos. Assim como o estatuto do nascituro, mesmo não tendo sido aprovado em sua completude, já tramitou abrindo caminhos dentro das comissões, e as aprovações que ele conseguiu foi por empenho na época do deputado Eduardo Cunha”, avalia.
Segundo apontou a advogada Luciana Boiteux, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em artigo no Portal Catarinas, o intuito do senador, que compõe a bancada fundamentalista, é alterar indiretamente a cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988 para incluir o direito à vida desde a concepção. “O objetivo do projeto de lei não é o de proteger direitos, mas sim o de restringir direitos das mulheres, violando a Constituição e ignorando por completo o cenário desolador da pandemia em que nos encontramos”, analisa a advogada.
Proposta inconstitucional e estelionatária de direitos
Pelo menos cinco organizações manifestaram-se contra o projeto, denunciando o seu caráter enganoso e inconstitucional. Para a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice/Brasil), o PL 5435/2020 não passa de um “estelionato dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas brasileiras” […] mais uma tentativa misógina do Poder Legislativo em impor o polêmico ‘Estatuto do Nascituro’ à sociedade brasileira”, afirmam.
De acordo com a Rede, o PL além de não trazer nada para garantir o bem-estar da mulher brasileira, apresenta teor negacionista por desconsiderar o conhecimento científico atual, com o qual não é possível estabelecer nenhum marco intrauterino para o início da vida humana. “O único marco reconhecido pela ciência é o nascimento”.
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Ao citar o artigo 10º, que trata do direito do genitor à informação e cuidado com vistas ao exercício da paternidade, a rede analisa que “o autor do PL revela sua concepção de que a mulher gestante é apenas um ‘receptáculo’ para o embrião/feto em desenvolvimento, sem direitos e autonomia sobre seu próprio corpo”.
“Forçar uma mulher vítima de estupro a manter uma gravidez decorrente da violência sofrida é considerado um tratamento degradante e torturante pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UN, 2013; arts. 45, 49 e 50) e, portanto, incompatível com nossa Constituição Federal (art. 5º)”, lembram as/os profissionais da saúde na nota.
Por fim, a rede questiona a ausência de medidas e políticas públicas que deveriam ser centrais em um “estatuto da gestante”, genuinamente preocupado com o bem-estar das mulheres, sugerindo medidas a serem adotadas, como por exemplo, a garantia de vale-transporte à mulher e parceiro para o comparecimento às consultas de pré-natal; e garantia da prioridade no atendimento dentro dos serviços de saúde para as mulheres gestantes, inclusive aquelas em processo de aborto.
Status de genitor ao estuprador
Já o parecer técnico elaborado pelo Cladem aponta seis violações de princípios e direitos de diferentes ordens, sejam pelas inconvencionalidades, inconstitucionalidades e ilegalidades, que são incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, como o direito fundamental à dignidade da pessoa humana.
“A redação imprecisa e insidiosa sugere a revogação tácita – e efetivamente afasta a aplicação – do artigo 128 do Código Penal, que permite o aborto terapêutico ou necessário, se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, e o aborto sentimental, ético ou humanitário, no caso de a gravidez resultante de estupro”.
Conforme o comitê, ao conferir ao estuprador o status de genitor, a proposta contraria a legislação vigente que destitui o poder familiar daquele pai ou da mãe que comete estupro ou outro crime contra a dignidade sexual contra quem igualmente seja titular do mesmo poder familiar. Para o Cladem, a redação é traiçoeira por criar “uma compensação pecuniária à criança que nascer de um estupro”.
Ainda segundo a análise, ao atribuir status jurídico privilegiado ao nascituro em detrimento da própria vida e dignidade da gestante, não reconhece as meninas e mulheres como sujeitos de direitos, pois sua proteção está condicionada à “vida da criança por nascer desde a concepção”.
O comitê questiona ainda o termo “criança” para nominar o nascituro. “Trata-se de uma conferência equivocada do status jurídico de criança, tendo em vista a importante distinção entre o embrião e o feto em desenvolvimento, cuja vida ainda se manifesta em sua potencialidade, e a criança já nascida […]”.
Lugar de estuprador não é na certidão
Para a Frente nacional contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto – FNPLA, não há dúvidas sobre o caráter de retirada do direito ao abortamento legal, garantido pelo Código Penal de 1940. “Sob a capa de um Estatuto que pretensamente visa proteger e amparar a gestante, na verdade seu intuito é impedir a mulher de interromper a gestação em qualquer circunstância já garantida na lei”, afirma a frente de organizações na nota “Abaixo ao PL 5435/2020 – “.
A FNPLA lembra que o país tem uma “situação catastrófica” a enfrentar em termos de garantias e proteção às gestantes, a tirar pelo estudo científico “A tragédia da COVID ‐ 19 no Brasil”, o qual identificou que 77% das mortes de gestantes por Covid-19 no mundo ocorreram no país. O levantamento identifica ainda que as gestantes negras têm o dobro de chance de morrer pelo vírus no país. “Os governos misóginos, fundamentalistas e genocidas tem-se dedicado a desmontar sistematicamente todas as políticas públicas tanto da área social como da saúde em particular. Criam novos projetos que propõem políticas já existentes, como esse PL, que na verdade tem o intuito de criminalizar nossas vidas”, afirma.
A Comissão Especial de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher do Condege (Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais) assinalou em Nota Técnica que a proposta de criação da “bolsa estupro” tende a constranger meninas e mulheres violentadas a não fazerem uso de um direito legalmente reconhecido. “Sob o argumento de tutelar os direitos das gestantes e dos nascituros, os dispositivos da proposição em referência são capazes de produzir resultados nefastos aos direitos de meninas, adolescentes e mulheres, representando verdadeiro retrocesso e violação aos direitos humanos das mulheres […]”.
Também em Nota Técnica, a Comissão dos Direitos da Mulher da Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (Anadep) manifestou, entre outros argumentos, que os danos psicológicos de uma gestação indevida são maiores do que o abortamento e que a proposta sujeita mulheres a violências. “Manter a mulher sob a dependência financeira do seu algoz ou do Estado é um mecanismo que em nada contribui para o fortalecimento da autonomia e liberdade das mulheres. Ao revés, sujeita-as a uma nova camada de subordinação econômica, o que fragiliza sua condição psicossocial e as expõe a novas possibilidades de violências”, apontam.