Projeto de Lei apresentado em dezembro de 2020, que tramitou em regime de urgência e pode ser levado, nesta semana, ao Plenário do Senado, obriga a vítima de estupro, seja criança ou adulta, a manter a gravidez e determina que o Estado pague a ela um salário mínimo mensal, a chamada “bolsa estupro”.

O Projeto de Lei 5.435/2020, que cria o “Estatuto da Gestante”, de autoria do Senador Eduardo Girão (Podemos-CE), a pretexto de “assegurar a proteção e os direitos da mulher e da criança (sic)”, como se esta já fosse nascida, traz retrocessos e inconstitucionalidades que não podem ser ignorados. Se antes tínhamos a ameaça do “Estatuto do Nascituro” (PL 478/2007), que não avançou diante dos muitos problemas que trazia, vemos esse novo PL, que está atualmente na pauta do Senado, como mais uma ameaça aos direitos das mulheres previstos na Constituição e também em convenções e tratados internacionais de direitos humanos.

Em meio à maior crise humanitária e social que vivemos, em mais de um ano de pandemia, com quase 300 mil mortos e com recordes diários de perdas humanas sendo batidos, cujos efeitos impactaram sobremaneira as mulheres, pela sobrecarga das tarefas domésticas e pela violência doméstica de gênero, o PL com a justificativa de proteger a gestante, move as engrenagens legislativas para restringir direitos reprodutivos e violar a dignidade de mulheres e meninas gestantes, especialmente aquelas vítimas de crime, o que ainda agrava mais a situação.

Ao invés de tratar da urgência do enfrentamento às altas taxas de mortes maternas no Brasil, agravadas pela pandemia de Covid-19, o texto do PL tira o foco das maiores urgências envolvendo os riscos às mulheres grávidas em decorrência da desorganização dos serviços de saúde pelo foco no tratamento da Covid-19 e busca ressuscitar texto de antigo projeto de lei com propostas irresponsáveis que aumentarão inclusive o número de mortes maternas, ao proporem o retrocesso na oferta do serviço de aborto legal, até hoje ainda precário no Brasil.

O intuito é o de alterar indiretamente cláusula pétrea da CF/88 para tentar aprovar, via lei ordinária (vide artigos 8o. e 9o. do PL), concepção tradicional e conservadora e impor, de forma irresponsável, retrocesso no direito ao aborto nos casos já previstos em lei, em especial na hipótese de violência sexual, ignorando a necessidade de proteção da vida e da saúde física e mental da mulher.

Acima de tudo, o texto formula redação enganosa, pois se apresenta na forma de um “Estatuto” que, portanto, deveria tratar por completo de efetivação de direitos das mulheres gestantes, quando, na verdade, ignora demandas concretas nos poucos (em sua maioria inconstitucionais) artigos que apresenta.

Além disso, usa de forma equivocada a nomenclatura  “criança” para se referir ao feto ou embrião ainda não nascido, atribuindo a estes direitos superiores ao de uma mulher adulta, o que constitui ameaça a direitos fundamentais das mulheres e ignora a ciência médica.

Se o debate fosse realmente sobre como proteger mulheres gestantes, um projeto de lei que pudesse ser chamado de “estatuto” teria que abordar políticas públicas em temas essenciais como redução de mortes maternas, garantia do aborto legal nos casos de violência sexual (já previsto em lei), humanização do parto e combate à violência obstétrica, ampliação de investimentos no SUS na atenção básica, garantia da atuação de doulas no acompanhamento do parto, o direito à alimentação saudável e apoio psicológico à gestante e a efetivação do planejamento familiar como um direito, dentre outros.

Teria que ouvir as mulheres gestantes trabalhadoras que estão sendo demitidas em meio à crise econômica e entender suas necessidades e a demanda por maior proteção social na licença maternidade que lhes têm sido negadas. Teria ainda que ampliar o auxílio emergencial para gestantes e mães de filhos pequenos para apoia-las nesse momento crítico da pandemia, entendendo que as tradicionais demandas por proteção social estão ainda mais necessárias em meio à calamidade pública sanitária em nosso país.

Verifica-se, portanto, que o objetivo do projeto de lei não é o de proteger direitos, mas sim o de restringir direitos das mulheres, violando a Constituição e ignorando por completo o cenário desolador da pandemia em que nos encontramos.

Logo em seu primeiro artigo, o texto afirma querer proteger a vida e a saúde da gestante, “pondo a salvo a criança por nascer (sic) desde a concepção”, expressão essa inclusive inexistente, como se a proteção à mulher gestante se desse apenas por “colocar a salvo o embrião que traz em seu ventre”, desconsiderando a pessoa da gestante, sua dignidade e cidadania.

Em nenhum momento o texto pode ser sustentado com base na Constituição Federal, pois nega os princípios básicos da dignidade da pessoa humana e do direito à cidadania e à não discriminação (art. 3o., inc. IV), em especial das mulheres, adolescentes e meninas (que constituem fundamentos da República, art. 1o., inc. II e III). O Projeto de lei como um todo viola ainda o princípio da igualdade entre homens e mulheres perante a lei (art. 5o., caput e inc. I), desconsidera a proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante (art. 5o., inc. III), o direito à saúde (art. 6o. caput e art. 196) e o direito ao planejamento familiar (art. 226, § 7o).

Ao mencionar, no art. 3º., que “a gestante deve ser destinatária de políticas públicas”, as limita àquelas que “permitam o pleno desenvolvimento da sua gestação”, ou seja, apaga os direitos de mulheres (incluindo adolescentes e crianças) como pessoas, apenas a considerando como um corpo sem nome ou voz, no qual se desenvolve uma gestação, como se sua vida, seus direitos e suas escolhas fossem apagadas.

Tem seu foco em famílias “com mais de quatro filhos”, mas na realidade desconsidera a complexa questão social de tais mulheres, sujeitas a um maior impacto da desigualdade diante da miserabilidade e pretende impor justamente a elas um fardo ainda maior de gerar mais filhos.

Para “assegurar o nascimento da criança”, no parágrafo único do artigo 3º., indica que “associações da sociedade civil e entidades governamentais receberão apoio para a promoção da saúde e dignidade da gestante”, sem indicar a fonte desse financiamento e desde logo apontando a destinação de verba pública para “associações da sociedade civil”, portanto, privadas, ao invés de priorizar o fortalecimento dos serviços públicos que são justamente os que atendem no cotidiano tais mulheres e que demandam investimentos do orçamento público, em especial em relação à oferta de serviços de atenção básica, construção de casas de parto e o direito ao planejamento familiar, garantindo informação e acesso a contraceptivos e medidas como a laqueadura, como indica a lei, para prevenir gravidez indesejada.

Mas o ponto principal do PL em análise atinge justamente o direito de mulheres vítimas de estupro que engravidaram de seus estupradores. Ao invés de dispor sobre a proteção de sua dignidade e propor mecanismos que garantam o acesso ao aborto legal na hipótese já prevista em lei, quando a concepção foi fruto de violência, em especial quando tratamos de crianças menores de 14 anos, em relação às quais a violência é presumida, o texto pretende impor um tipo de maternidade compulsória, inclusive a crianças, que acarreta sérios danos psicológicos a vítimas que, a todo tempo, lembrarão de seu estuprador e da violência que sofreram.

Trata-se de uma política cruel e desumana com mulheres e crianças que implica em imposição de tortura física e psicológica. No artigo 5º, a redação indica “oportunizar a opção pela adoção, caso a gestante decida por não acolher a criança por nascer (sic)”, e ainda que indique em tese a imposição de sanções penais ao estuprador, ao mesmo tempo, no artigo 10º do PL, quer garantir o direito à informação e ao exercício da paternidade ao violador, sob ameaça de pena às mulheres.

Na realidade, de forma sub-reptícia, o projeto de lei em comento pretende tentar revogar o art. 128 do Código Penal e impedir o acesso a um direito previsto desde 1940 no Código Penal Brasileiro, no caso de risco de vida à gestante, na gravidez resultante de estupro e no aborto de feto anencéfalo, decidido pelo STF na ADPF 54.

O PL chega ao cúmulo de obrigar a mulher violentada a informar a seu estuprador sobre a gravidez para que ele possa exercer sua “paternidade”, o que constitui tortura e tratamento desumano a mulheres, absolutamente vedado pela Constituição e pelas leis civis. Imaginem só o trauma psicológico de uma mulher obrigada a manter uma relação familiar forçada com seu estuprador, situação essa inimaginável, tamanha a violência infringida a uma mulher vítima de crime de estupro.

Por fim, no art. 11º, o PL dispõe sobre a grotesca bolsa estupro, atribuindo inicialmente a prioridade dos gastos com a criança à própria mãe estuprada, até que se efetive o pagamento de pensão alimentícia por parte do estuprador (que estará ou preso ou foragido, ou seja, muito provavelmente não será encontrado, nem terá condições de pagar) e, em último caso, atribui ao Estado tal responsabilidade, por meio de previsão de “bolsa”, ou auxílio financeiro, sem a indicação de fonte de custeio de tal gasto inusitado.

Além de criar uma situação que fere a dignidade da mulher vítima, ao propor mecanismos que a incentivem, ou mesmo a obriguem, a ter um filho de um violador sexual, o que por si só já deveria levar à rejeição imediata de tal texto, cria-se um tipo de compensação “de um salário-mínimo até a idade de 18 anos da criança” a ser pago pelo Estado, para constrange-la a ser mãe, o que pode constituir por si só nova violência contra essa mulher.

Além disso, tal previsão não indica qual seria a fonte de custeio dessa “bolsa”, diante do aumento de despesa que certamente acarretarão pagamentos como esses a tantas mulheres que engravidam de seus estupradores (às quais o PL pretende que seja negada ou dificultada a possibilidade de acesso ao aborto legal já previsto em lei), por dezoito anos. Nesse caso, tem-se mais uma ilegalidade, pois se exige a indicação de fonte de custeio como elemento obrigatório, conforme dispõe o art. 16 da Lei Complementar n. 101/2000[1], o que não é mencionado na exposição de motivos ou no texto do PL.

De maneira geral, os artigos do PL também violam o artigo 4º da Convenção de Belém do Pará[2], que confere à mulher o “direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos humanos” e contraria a Convenção sobre os Direitos da Criança.[3]

Em resumo, além de sua redação bastante falha, o PL tem sérios problemas jurídicos e de técnica legislativa pois pretende alterar a Constituição por meio de lei ordinária, o que não é admissível, além de repetir elementos já previstos em leis, portanto absolutamente inócuos, e propor alterações inconstitucionais que implicam inclusive em violação de cláusulas pétreas já citadas.

Por todo o exposto, o PL nº 5.435/2020 deve ter interrompida sua tramitação, e ser arquivado de pronto, por absoluta inconstitucionalidade e inconvencionalidade frente à Constituição e às normativas internacionais de direitos humanos, além de ignorar por completo os dispositivos da LC 101/2000 que exige indicação de fonte de custeio, no caso da ignóbil proposta de “bolsa estupro” que não merece prosperar.

O Parlamento Brasileiro não pode ficar alheio a suas responsabilidades na preservação e defesa da Constituição Federal e também aos tratados internacionais de direitos humanos e de mulheres aos quais aderiu, devendo ser vedada e repudiada qualquer tentativa de retrocesso a direitos historicamente conquistados com a democratização na Constituição de 1988, em especial aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.


[1] Lei Complementar n. 101/2000: “Art. 16.A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:      

I – estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes;

II – declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

Art. 17.Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios
§ 1o Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio.”

[2] Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 01.09.1996.

[3] Promulgada pelo Decreto nº 99.710, de 21.11.1990, que define o direito das crianças a que se respeite sua vida, sua integridade física, mental e moral, o direito à liberdade, autonomia, dignidade, privacidade, igualdade, saúde, segurança pessoal e a de não serem submetidas a tortura.

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  • Luciana Boiteux

    Vereadora da cidade do Rio de Janeiro pelo PSOL, advogada, professora universitária, pesquisadora, feminista, militante...

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