Ministério da Saúde obriga quebra de sigilo médico no atendimento às vítimas de violência sexual e expõe mulheres a tratamento cruel

 

A manhã dessa sexta-feira (28) começou tumultuada devido à publicação, no Diário Oficial da União (DOU), da Portaria nº 2.282 do Ministério da Saúde, que “Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”. O documento, que reproduz a maior parte do texto da Portaria nº 1.508 GM/MS/2005, apresentou algumas mudanças preocupantes para a saúde de meninas, mulheres e pessoas vítimas de violência sexual e que procuram atendimento médico para interrupção legal da gestação.

O Portal Catarinas conversou com profissionais da área da saúde e do direito para entender as mudanças.

A Portaria nº 2.282 começa citando legislações brasileiras para impor, já no artigo 1º, a obrigatoriedade da “notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro”.

Esse artigo faz acender, imediatamente, um sinal vermelho quando consideramos que o direito ao sigilo do prontuário médico decorre da proteção constitucional à intimidade e à vida privada e, também, ao sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional, conforme tratam o Código Penal, em seu artigo 154, o Código de Processo Penal, no artigo 207 e o Código de Processo Civil, nos artigos 388, II e 448, II.

Assim, nenhum profissional é obrigada/o a quebrar esse sigilo. Isto é, qualquer pessoa que seja atendida pelos serviços de saúde está protegida constitucionalmente e deverá ter respeitada a sua privacidade. Da mesma forma, profissionais de saúde estão protegidos constitucionalmente e não têm obrigação de repassar informações de pacientes a nenhum órgão, pessoa ou instituição. Nem mesmo a policial.

Então, o que esse artigo impõe e no que está baseado?

A justificativa do Ministério da Saúde se baseia na Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, que altera a natureza da ação penal de crimes de estupro, tornando-a pública incondicionada, isto é, que permite ao poder público instaurar inquérito sem autorização da vítima. 

No entanto, essa legislação, por si só, não obriga profissionais de saúde a realizarem a denúncia à autoridade policial, somente torna obrigatória a abertura de inquérito quando o crime chega ao conhecimento do sistema de justiça. É o mesmo que já acontecia em casos de estupro de menores de 18 anos e contra vulneráveis, que já era Ação Penal Pública Incondicionada. 

Portanto, a justificativa do Ministério da Saúde não se aplica. De acordo com Mariana Prandini Assis, pesquisadora e advogada popular do Coletivo Margarida Alves, a ação penal pública incondicionada é um direito de cidadania de convocar o poder judiciário para promover a solução de problemas na seara criminal, e representa um dever do Ministério Público de agir independentemente da representação da vítima. Mas isso é ônus do Ministério Público e nem a vítima nem o profissional de saúde têm obrigação de contribuir com o trabalho do Ministério Público. 

“O fato de ação penal pública ser agora incondicionada não impõe qualquer obrigação para os profissionais de saúde informarem à polícia, enviarem notificação à autoridade policial. Isso não é papel do serviço de saúde. Esse ônus também não pode impor barreiras ao exercício de outros direitos da vítima. Então, é preciso fazer uma interpretação adequada dessa lei de 2018 pra dizer que essa portaria é inconstitucional, inconvencional e viola os direitos das mulheres e pessoas gestantes. O que a comunicação obrigatória faz é criar barreiras e violar os direitos das vítimas”, explica. 

Há também uma questão controversa sobre a decisão da mulher diante da incondicionalidade da ação penal, como aponta Vanessa Fogaça Prateano, pesquisadora da área de Criminologia Feminista no Núcleo de Criminologia e Política Criminal (NCPC/UFPR). “Antes dela, para que a polícia pudesse instaurar um inquérito para apurar o crime de estupro, a mulher deveria dar o seu consentimento por meio de um instituto jurídico chamado representação. Se ela quisesse só fazer o BO (boletim de ocorrência), mas não representasse, não haveria inquérito, o BO contaria apenas como estatística. A lei mudou isso. Agora o crime se investiga e se processa sem o consentimento da vítima. Então, toda vez que o crime chega ao conhecimento de uma autoridade policial ou do Ministério Público, eles podem instaurar inquérito sem autorização da mulher”.

Além desta, a justificativa do Ministério da Saúde cita a Lei das Contravenções Penais (Decreto Lei nº 3.688/1941), que prevê punição para funcionário ou médico que deixa de comunicar à autoridade competente sobre crimes de Ação Penal Pública que não depende de representação (que é o caso, a partir da Lei 13.718/2018, do estupro). De acordo com Prateano, essa lei funciona para pressionar todos os envolvidos a agir, mas não é crime.

“Isso que querem imputar ao profissional sequer é crime, é uma contravenção penal e, no caso do sigilo, que é uma garantia constitucional, os médicos não podem ser obrigados a cometer o crime previsto no artigo 154 do Código Penal e ignorar o mandamento constitucional para seguir uma lei de contravenção. A lei de contravenções, que é de 1941, precisa ser revogada no que for incompatível com a Constituição Federal, não a Constituição Federal deve se adaptar à lei de contravenções. Além disso, há a interpretação de que nem a lei de contravenções penais se aplicaria, já que ela determina que o profissional deve comunicar o crime quando o ato não expuser a paciente a procedimento criminal e, neste caso, ele pode vir a expô-la. De um procedimento para investigar um crime contra ela, o que já é questionável pela revitimização, o ato pode se tornar um procedimento para investigar um crime imputado a ela.”

 

Obrigar médicos a denunciar é inconstitucional

A Lei que alterou um ponto crucial relacionado ao direito ao sigilo médico é a Lei 13.931, de 10 de dezembro de 2019 (ainda não regulamentada), que altera o artigo 1º da Lei 10.778/2003, constituindo como compulsória a “notificação dos casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados”. Também inclui, no parágrafo 4º, a obrigação de os profissionais de saúde fazerem a comunicação dos fatos à autoridade policial, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.

De acordo com Prateano, antes dessa lei, o médico poderia ter o conhecimento de um caso de estupro e simplesmente cuidar da mulher. Com a obrigatoriedade da comunicação, ele passa a ter que reportar o caso à polícia, que por sua vez, não pode mais deixar de instaurar inquérito ao tomar conhecimento do fato. “É o cerco se fechando”.

No entanto, segundo a advogada Sandra Lia Bazzo Barwinski, coordenadora do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem Brasil), essa lei foi mal feita e tem sérias contradições internas.

“Primeiro, o que seriam os ‘indícios’? Como você expõe uma pessoa diante de ‘indícios de uma violência’? E aqui está se falando de qualquer tipo de violência. Então, fica complicado o serviço de saúde denunciar”. 

Além disso, Bazzo aponta para a contradição entre o caput do artigo 1º da lei, que fala da “notificação compulsória”, algo que já é prática dentro dos serviços de saúde, para fins epidemiológicos, e a “comunicação à autoridade policial” cuja forma não é definida nos termos da lei.

“O caput fala em ‘notificação compulsória’, tratada pela Lei 10.778/2003, que se caracteriza como uma comunicação interna dentro do serviço de saúde. Já o parágrafo 4º muda, já não é mais ‘notificação compulsória’, é ‘comunicar’, e o Estado não está dizendo como vai ser essa comunicação. Uma redação pouco técnica, porque se contradiz com a própria Lei 10.778, no seu artigo 3º”. 

O artigo 3º tem a seguinte redação: “A notificação compulsória dos casos de violência de que trata esta Lei tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido. Parágrafo único. A identificação da vítima de violência referida nesta Lei, fora do âmbito dos serviços de saúde, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável”.

Assim, segundo Bazzo, há uma contradição dentro da própria lei, porque ela diz que só pode comunicar com autorização e conhecimento prévio da pessoa que procurou o serviço de saúde, então a informação não pode sair de lá. 

“Em tese, pra mim, dentro do direito, haveria uma contradição interna na Lei. Eu não consigo compreender aqui a possibilidade dessa comunicação externa. Assim, eu vejo que há um excesso, uma ilegalidade na Portaria, ela excede os limites da Lei, porque ela regula além do que está na lei, e uma portaria não pode criar ou restringir direitos e obrigações não previstos em lei. Sem contar que o sigilo dessas informações é constitucional, está nas convenções, tanto que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já tem esse posicionamento de que a confidencialidade é um direito e um dever do médico. Então, se isso for à frente é possível recorrer à esfera internacional”, analisa.

 

Leis punitivistas e inconstitucionais

Esse conjunto de mudanças parece muito bem arquitetado para que mulheres vítimas de violência e, especificamente, violência sexual, percam sua autonomia e a segurança de serem atendidas por serviços de saúde sem precisar se expor à polícia. 

De acordo com Cristião Fernando Rosas, médico ginecologista e obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir/Doctors for Choice – Brasil, essa portaria pode expor as mulheres a uma situação ainda maior de vulnerabilidade, inclusive de risco à sua vida. “Por exemplo, a mulher que sofre violência do chefe do tráfico da comunidade onde ela mora, e o agressor fala ‘eu sei onde você mora, eu sei onde moram suas filhas’. Evidentemente é uma coisa horrorosa o que estou falando, mas se, porventura, ventilar que a polícia ficou sabendo, ela sabe que ela morre, ela e a família dela, ela sabe que não vai ter proteção do Estado. Então, é muito complexo esse tema, não é pra ser tratado como esse desgoverno está fazendo”, argumenta.

Além disso, conforme explica a pesquisadora Vanessa Fogaça Prateano, a Portaria entra em conflito com a Constituição Federal.

“Eu não posso simplesmente pegar e passar essas informações para a polícia sem que a mulher permita. É a mulher que tem que decidir se ela quer que essas informações sejam utilizadas para uma eventual investigação, uma persecução penal, porque inclusive muitas conhecem o agressor. Então, a exigência dessa portaria, sem qualquer tipo de discussão, serve para criminalizar as mulheres, na prática é pra isso”.

Para a pesquisadora, tanto a Lei 13.718/2018 quanto a Lei 13.931/2019 possuem um caráter majoritariamente punitivista, pois buscam, antes de tudo, punir o agressor e não proteger a vítima. Assim, por não serem pensadas do ponto de vista da vítima, acabam por se voltar contra ela, sendo usadas para criminalizá-la, mesmo que a intenção não tenha sido essa pelas congressistas que as propuseram.

“Pra mim, a lei da notificação é inconstitucional no que se refere à obrigação de notificar sem o consentimento da vítima. O médico e demais profissionais não podem notificar, porque o sigilo do prontuário é uma decorrência da proteção que a constituição dá ao sigilo profissional, que pertence não ao profissional, mas à pessoa que ele atende. O problema é que as mudanças não foram pensadas para fazerem sentido, e sim pra criminalizar mulheres, então elas acabam, sim, entrando em conflito com a Constituição”.

 

Exposição e maus tratos ao invés de acolhimento e cuidado

Outro ponto que viola os direitos das mulheres está presente no artigo 8º da Portaria, que faz menção à segunda fase do procedimento: “a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a gestante deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada”.

Para o coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir, esse trecho demonstra o desprezo e a falta de compaixão desse governo com mulheres em pleno sofrimento. Ainda, ao dar como exemplo que, em caso de aborto por risco de morte materna, os médicos mostram o ultrassom à gestante, a portaria faz uma relação que não existe.

“Uma mulher que vai fazer a interrupção por risco materno está fazendo um pré-natal de uma gestação desejada, está na construção do vínculo amoroso com aquele feto. Ela deseja a gestação e está sendo cuidada pelo binômio materno fetal. Agora, uma vítima que chega grávida de um estuprador, ela lembra da cena do estupro, ela lembra da imagem, da cor do carro. O movimento do feto é desesperador pra ela. Ela chega ao médico e diz ‘doutor me salva, tire essa coisa de dentro de mim’, e eu vou falar, ‘olha, a senhora não quer ver no ultrassom o feto e ouvir o coração dele?’ Será que essas pessoas não têm compaixão? O Código de Ética Médica nos princípios fundamentais estabelece como infração gravíssima o tratamento cruel, degradante, desumano e a tortura. E fazer isso com uma mulher que está em intenso sofrimento psíquico é acentuar o desespero dela, é tratamento cruel. Eu não sei como tiveram coragem de colocar isso”.

Além disso, Prateano lembra que alguns serviços de saúde já operam no sentido de pressionar as pessoas grávidas por estupro, fazendo comentários impróprios ou pedindo para que olhem o ultrassom.

Segundo ela, tornar essa prática institucionalizada, a partir de sua redação explícita na Portaria, demonstra que o Ministério da Saúde quer criar um contexto em que as pessoas sintam mais legitimidade para darem esse tipo de tratamento.

“Sabemos que a maior parte dos municípios brasileiros não tem serviço de aborto legal, então, quando a mulher procura, ela enfrenta muita resistência, muito julgamento e, muitas vezes, quando consegue, ela precisa ser encaminhada para um serviço em outra cidade. Mas quando você pensa nos próprios serviços de aborto legal, que são muito poucos no Brasil, continuamos vendo problemas, de equipes que são destacadas para atuar no serviço e, na prática, tentam dificultar o exercício desse direito pela mulher. Tanto é que vimos, recentemente, no Espírito Santo, que existia um serviço especializado dentro do hospital e que, ainda assim, se recusou, impôs uma série de restrições, exigiu autorização judicial. Então, sabemos o que está por trás de uma portaria como essa”, avalia a pesquisadora. 

De acordo com Bazzo, a Portaria acirra ainda mais algo que já existe nos serviços de saúde, que é a seletividade que quem atua nos serviços consegue verificar.

“Primeiro, um serviço de saúde que deveria cuidar, proteger, zelar pela integridade física, pela saúde entendida como um bem-estar geral dessa paciente, acaba sendo um obstáculo à mulher para ter atendimento de saúde. E estamos falando de serviços públicos, porque no caso da notificação compulsória, são muito raros os serviços privados de saúde que notificam os casos de violência. O que isso quer dizer? Que mais uma vez recai sobre a mulher mais vulnerabilizada, a negra, empobrecida,  afirmando a opressão do Estado sobre essas mulheres”.

Confundir para dificultar o acesso

Uma evidência explícita do que “está por trás” desta portaria, no sentido de dificultar o acesso das vítimas de estupro ao aborto legal e convencê-las a desistirem da interrupção está no texto do Anexo V, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Diferente da Portaria anterior, esta versão do documento inclui o “detalhamento dos riscos da realização da intervenção por abortamento previsto em lei”.

Ao apresentar os possíveis riscos de diferentes procedimentos (medicamentoso e  cirúrgico, até 14 semanas e depois de 14 semanas), o texto dá um caráter “perigoso” ao procedimento, explicitado no trecho “Declaro estar esclarecida acerca do risco de morte conforme a idade gestacional em que me encontro”. 

Apontado com asterisco, o documento referencia os protocolos da Organização Mundial de Saúde – OMS e do National Health Service – NHS.

No entanto, diferente do tom apresentado pela Portaria, ambos os documentos demonstram o alto índice de segurança de procedimentos de aborto com medicamentos realizados por equipes médicas qualificadas. O abortamento medicamentoso é considerado mais seguro, inclusive, que o parto.

“Quando o abortamento é realizado por pessoal devidamente treinado, em condições médicas modernas, é extremamente raro surgirem complicações e o risco de morte é insignificante”, declara o documento da OMS. “Realizado por profissionais capacitados que aplicam técnicas médicas e fármacos adequados e em condições higiênicas, o abortamento torna-se um procedimento médico de elevada segurança.”

De acordo com Cristião Fernando Rosas, evidentemente os profissionais informam os riscos e complicações de todo tipo de procedimento médico, então esse trecho não precisava estar descrito no termo. Mas já que consta, deveria constar a comparação dos riscos de morte e complicações em relação a todos os eventos reprodutivos.

“Os estudos mostram frequentemente que o aborto legal e seguro é o evento reprodutivo mais seguro que existe. Tem 14 vezes menos risco de morte que um parto natural com feto vivo. O próprio aborto espontâneo, natural, tem mais do dobro do risco de morte do que um aborto legal e seguro, induzido, controlado, com a técnica adequada, com controle e monitoramento”, afirma o médico. 

Para a advogada Sandra Bazzo, colocar os riscos da interrupção e suprimir os riscos da não interrupção representa uma tentativa de impor um viés ideológico para a mulher. “Se você não dá a informação completa, você está induzindo a decisão daquela mulher”.

Segundo Vanessa Prateano, é perversa essa estratégia de citar um documento que não diz nada daquilo para colocar medo nas pessoas. “Mas eles são muito ardilosos, porque eles pegam documentos a que a mulher provavelmente não vai ter acesso, não vai saber como buscar, e aí ela vai ler aquilo e vai dizer ‘ó, a própria OMS tá dizendo que tem risco’. Então, isso acaba inibindo, porque ela pensa ‘ah, eu posso morrer nesse procedimento, então é melhor eu levar essa gestação a termo’. É bem perverso mesmo”.

Manutenção do caráter inquisitório do atendimento médico

Antes da publicação da Portaria 2.282/2020, estava em vigor a Portaria 1.508/2005 que já exigia da equipe médica documentos em que a vítima relatasse o ocorrido, para fins de estatística e para elaboração de políticas de saúde. Segundo Prateano, a portaria precisava de alterações pois tinha um olhar inquisitório para a mulher, o que resultava em revitimização.

“A obrigação de apresentar um relato circunstanciado expõe a mulher a uma série de indagações dos profissionais da equipe multidisciplinar, fazendo com que ela precise repetir o relato pra várias pessoas; também os questionamentos sobre a data da última menstruação e o dia em que ocorreu a violência, pra saber se bate com a idade gestacional, entre outras exigências, faziam com que essa portaria precisasse ser aprimorada para que o que valesse mesmo fosse só a palavra da mulher”, explica a pesquisadora.

No entanto, a Portaria publicada ontem não só manteve as exigências que davam o caráter inquisitório para o atendimento de vítimas de violência sexual, mas transforma os próprios profissionais de saúde em inquisidores. 

Entre o artigo 2º e o 7º, o texto da Portaria nº 2.282 repete a regulamentação já existente na Portaria 1.508/2005, que trata das quatro fases do procedimento no momento do atendimento de saúde, sendo elas:

  1. relato circunstanciado do evento, realizado pela própria gestante, perante 2 (dois) profissionais de saúde do serviço;
  2. intervenção do médico responsável que emitirá parecer técnico após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares que porventura houver; e assinatura do Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez por, no mínimo, três integrantes da equipe de saúde multiprofissional, não podendo haver desconformidade com a conclusão do parecer técnico.
  3. assinatura da gestante no Termo de Responsabilidade ou, se for incapaz, também de seu representante legal, e esse Termo conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima de violência sexual.
  4. assinatura, pela gestante, do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido;

Embora mantenha a exigência dessas quatro fases, o artigo 6º, parágrafo I, d traz uma alteração sutil no texto que, segundo Prateano, abre uma brecha para que o prontuário da paciente seja disponibilizado sem a sua devida autorização. 

Enquanto na Portaria 1.508 havia “a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, exceto quanto aos documentos subscritos por ela em caso de requisição judicial”, o texto da Portaria 2.282 menciona “a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de compartilhamento em caso de requisição judicial”, retirando a vinculação do acesso ao prontuário à subscrição da paciente.

“Como assim ‘passíveis de compartilhamento em caso de requisição judicial’? A lei garante que, mesmo com requisição judicial ou em juízo, o profissional de saúde não tem obrigação de compartilhar essas informações sem consentimento da mulher. Não é só pra fase policial, é pra qualquer fase, não tem obrigação de compartilhar com o Ministério Público, com terceiros, com ninguém. Porque o sigilo é protegido constitucionalmente, ele é importante para que a pessoa possa trabalhar bem, com segurança e, também, para que as pessoas que procuram esse serviço de saúde não se sintam inseguras sobre a possibilidade de que seja instaurado um inquérito policial, por exemplo, sem o consentimento delas. Então, essa linha é um desdobramento do artigo 1º, que é muito ruim”, avalia Prateano. 

 

Aborto legal já é inacessível à maior parte das vítimas de violência sexual no Brasil

No Brasil, o acesso ao aborto legal é uma dificuldade real e pode ser traduzida em números. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), com base em dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do SUS de 2011, cerca de 7% do total de estupros registrados resultam em gravidez. Em 2018, 66 mil pessoas registraram boletins de ocorrência por estupro, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Esse número, segundo pesquisas, representa somente 10% do total desses crimes devido ao alto índice de subnotificação existente.

Assim, apesar de todas essas pessoas que engravidassem em decorrência de estupros tenham direito ao aborto legal, em 2018, foram registrados somente 1.679 abortos por causas médicas e legais no Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/DataSUS), que envolve todos os tipos aborto legal realizados (anencefalia fetal, risco de morte para a gestante e estupro). 

Embora esse dado não seja fácil de analisar, se todos os abortos legais registrados em 2018 fossem de gravidezes decorrentes de estupros, ainda assim, o número representaria somente 2,5% do total de estupros denunciados naquele ano, muito longe dos 4.630 prováveis casos de gravidez resultantes dessas violências. Se essa fosse a média anual, significaria dizer que, a cada ano, quase 3 mil mulheres estupradas são obrigadas a parir por não terem garantido o seu direito ao aborto legal. Soma-se a isso, as mais de 21 mil meninas de 10 a 14 anos, vítimas de violência sexual, que pariram no país em 2018, conforme o DataSUS, banco de dados do Sistema Único de Saúde.  

Com a publicação da Portaria nº 2.282, podemos esperar tanto o aumento no número de abortos inseguros, quanto de mortalidade materna, especialmente devido ao receio que essa portaria gera para quem necessita de atendimento de saúde por ter sido vítima de estupro ou por ter recorrido a um aborto inseguro por medo da criminalização.

“A preocupação não é com as consequências para a mulher. São regras que, ao final, vão impedir que as mulheres busquem atendimento médico e o direito ao aborto legal. Por isso devemos ir além do aspecto punitivo. O principal é proteger a mulher, dar a ela condições para que ela decida. Claro que responsabilizar o agressor é importante, mas se o preço disso for a morte, for a criminalização das mulheres, não faz sentido”, finaliza Prateano.

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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