Serviços cadastrados e o número de procedimentos realizados escancaram realidade brasileira
Camila*, branca, 26 anos, chegou ao serviço de saúde, no dia 11 de setembro de 2020, exatamente duas semanas após a publicação da Portaria 2.282 pelo Ministério da Saúde, que alterava as regras para o atendimento de vítimas de violência sexual nos serviços de interrupção da gestação prevista em lei. Ao chegar, passou pelo atendimento multidisciplinar, contou o ocorrido e enunciou, de forma explícita, após ser perguntada, que desejava interromper a gravidez resultado do estupro que havia sofrido.
Camila descobriu que estava grávida de oito semanas e foi ao hospital munida de todas as informações necessárias para reivindicar seu direito à interrupção da gestação, sabendo que não era necessário apresentar boletim de ocorrência e que sua palavra bastaria. No entanto, não foi o que aconteceu. Ao ser encaminhada pela médica para uma assistente social, a jovem foi informada de que a equipe teria que comunicar o fato à polícia e que, possivelmente, ela seria procurada para dar prosseguimento à investigação. Também foi avisada que o produto do aborto seria guardado pelo hospital para ser usado como prova na comparação com o DNA do estuprador.
O desespero da jovem ficou evidente para a profissional pois, segundo Camila, a assistente social se mostrou constrangida e disse que, antes da portaria, somente era necessário assinar alguns termos, mas que após a publicação do documento as coisas estavam mais difíceis. “Senti que queriam me ajudar, mas com a nova regra ficou complicado”, relata ela.
Ela não sabia o que fazer. Denunciar o primo seria um escândalo. Embora os familiares soubessem que ele era bastante violento com as mulheres, revelar um fato ocorrido dentro da própria família seria o fim pra ela. Com certeza não acreditariam e ninguém a ajudaria. Era muita vergonha e muita dor. Ela estava sozinha, grávida de um familiar que a estuprou e sem a possibilidade de ser acolhida pelas únicas pessoas que ela havia contado o ocorrido: os profissionais de saúde.
Sem conseguir interromper a gestação pelo sistema de saúde, Camila buscou o mercado ilegal. Depois de encontrar em sites ofertas de venda do misoprostol e ter passado por dois golpes, ela decidiu contar essa história.
Mesmo antes da publicação da Portaria 2.282, ou de sua revogação pela Portaria 2.561, publicada em 23 de setembro de 2020 —que retirou alguns trechos da 2.282, mas manteve a exigência de os profissionais denunciarem à autoridade policial os casos de estupro envolvendo pessoas que procuram o serviço de aborto previsto em lei — o caso de Camila não é incomum.
O número de abortos previstos em lei realizados no período de 2015 a 2020 (9.796), comparado com o número de procedimentos que visam o esvaziamento uterino, como a Aspiração Manual Intra-Uterina (Amiu) e a curetagem (que somam mais de 1 milhão), demonstra a alta taxa de procedimentos relacionados a situações de abortamento espontâneo, provocado ou legal que necessitam internação para sua finalização. Esse dado também pode ajudar a refletir que a dificuldade de acesso de vítimas de estupro, como Camila, ao serviço de aborto previsto em lei, as leva a procurar o mercado ilegal de medicamentos que, por não terem garantia de procedência, podem resultar ineficazes ou, até mesmo, em procedimentos inseguros que acabam em internação hospitalar.
No Brasil, meninas, mulheres e pessoas vítimas de violência sexual raramente conseguem interromper a gestação resultado de estupro. Da mesma forma, o número de casos de estupro que acabam em gravidez e que são levadas até o fim é tão difícil de mensurar quanto é difícil para essas mulheres buscarem o serviço e serem devidamente atendidas.
Um terço das Unidades da Federação possui um ou nenhum serviço de aborto legal cadastrado pelo Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes): Amapá, Alagoas, Rondônia, Goiás, Piauí, Paraná, Roraima, Sergipe e Tocantins. Com exceção do Paraná e Goiás, estes são, também, os Estados com o menor índice de abortos registrados pelo Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS) e com as maiores taxas de estupros por 100 mil mulheres, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019.
Por trás desses índices e histórias de sofrimento, está uma política misógina que violenta e fragiliza mulheres, crianças e pessoas que engravidam no Brasil – intersexuais, homens trans e pessoas não binárias (que não se identificam com o gênero feminino nem com o masculino). Fundamentada em discursos moralistas e supostamente cristãos, o Estado brasileiro age para impedir o acesso de vítimas de violência sexual ao aborto previsto em lei, como ocorreu no recente caso da menina de dez anos de São Mateus.
Nesta reportagem, trazemos alguns resultados da pesquisa sobre o acesso ao aborto previsto em lei no Brasil nos últimos cinco anos, realizada a partir da coleta e análise dos dados publicados pelo Ministério da Saúde, por meio do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes) e do Sistema de Informações Hospitalares (SIH). Por meio dela, é possível analisar em quais Unidades da Federação a negação de direitos é mais evidente e em quais delas o acesso tem sido mais garantido.
Esta pesquisa difere do trabalho realizado pela Artigo 19 que, por meio de outra metodologia, mapeia e acompanha os serviços que afirmam realizar o aborto previsto em lei no País, apresentando esses dados de forma sistematizada no Mapa do Aborto Legal.
Juntamente com esta reportagem, lançamos o Mapa Dados sobre Aborto no Brasil, que apresenta, especialmente, os dados de aborto previsto em lei e de procedimentos relacionados ao abortamento realizados por cada Unidade da Federação, nos últimos cinco anos.
Abortos previstos em lei no Brasil
No Brasil, de 2015 a 2020, foram realizados 9.796 abortos por causas médicas e legais, o que inclui risco de morte materna, estupro e anencefalia fetal. Isso significa, em média 1.630 abortos por ano, de acordo com registro do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS).
Quanto ao perfil das pessoas que acessaram o direito ao aborto nos últimos cinco anos, das quase dez mil, 2% eram crianças até treze anos de idade, 7,2% adolescentes de 14 a 17 anos e mais de 90% eram pessoas acima de 18 anos. Com relação ao perfil étnico racial, 30,34% eram pardas, 3,15 pretas, 26,41% brancas, 1,81% amarelas e 0,09% (nove pessoas) se declararam indígenas. Entre as pardas, podem estar tanto indígenas quanto pessoas pretas que, devido a um processo de apagamento histórico, comumente não se autoclassificam ou não são identificadas pelos profissionais de saúde como pretas ou indígenas. Chama a atenção, com relação a esse índice, que 38,1% dos procedimentos foram registrados sem o dado de raça/cor.
De acordo com Emanuelle Góes, doutora em Saúde Pública com concentração em Epidemiologia (ISC/UFBA), os dados apresentados mostram que há uma lacuna no preenchimento da raça/cor, tornando impossível a análise das desigualdades raciais, visto que a incompletude chega a 38,1%, representando mais que um terço o total. “Essa ausência de preenchimento do quesito cor é mais uma das facetas do racismo institucional. Somado a isso tem a forma de coleta, que não segue o que é recomendado, que é o sistema de autoclassificação. Ao invés disso, utilizam a heteroclassificação sendo, desta forma, definido pelo/a profissional de saúde”, explica.
O índice de procedimentos de aborto previsto em lei registrados no SIH/SUS é extremamente baixo se comparado com os números de procedimentos relacionados ao aborto realizados pelos hospitais brasileiros. De 2015 a 2010, foram feitas 76.580 aspirações manuais intra-uterinas (Amiu) e 937.305 curetagens para a finalização de abortos espontâneos ou provocados no País, isto é 103 vezes o número de abortos previstos em lei realizados no período.
Para se ter uma ideia, somente de janeiro a julho de 2020, foram 1.225 procedimentos de aborto previsto em lei, enquanto 10.846 Amiu e 76.983 curetagens.
Abortos em decorrência de estupro
Em agosto deste ano, o caso da menina de dez anos de São Mateus (ES) chamou a atenção da sociedade brasileira para a questão da violência sexual contra crianças e para dificuldades no acesso ao direito ao aborto previsto em lei no Brasil. Algo evidente em muitos casos é que a violência sexual perpetrada por familiares, muitas vezes, só se torna visível, conhecida e denunciada quando resulta em gravidez. Outro aspecto é a complexidade envolvida no acesso ao direito, que impõe obstáculos quase intransponíveis quando a gestação é constatada tardiamente.
O caso de São Mateus foi seguido por outros casos noticiados pela imprensa de crianças grávidas em decorrência de estupro de familiares. No norte do Espírito Santo, uma menina de onze anos grávida de oito semanas viajou para duas cidades e, mesmo assim, quase não conseguiu interromper a gestação devido ao repasse de informações equivocadas à família e à burocracia imposta por quem a atendeu durante o processo.
No final de setembro, mais um caso de abuso sexual foi noticiado, desta vez em Santarém (PA). Uma menina de treze anos, estuprada pelo próprio pai desde os dez, precisou recorrer à justiça para solicitar a interrupção da gestação resultado dos estupros. Embora o Código Penal, de 1940, a Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes (MS, 2012) e a Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento orientem que não é necessário autorização judicial para realizar o aborto em casos de estupro, o Estado brasileiro, por meio dos serviços de saúde e de segurança despreparados, mais uma vez impôs barreiras para o direito da menina de interromper a gestação.
Os números de aborto por causas médicas e legais, coletados a partir do SIH/SUS, demonstram o acesso limitado ao direito ao aborto previsto em lei no País.
De acordo com o estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) em 2014, com dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) de 2011, estima-se que, a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas no Brasil. Desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia, em média 52,7 mil estupros são denunciados anualmente. O estudo também mostra que mais de 70% dos estupros vitimizam crianças e adolescentes e 70% do total de casos são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima.
Os dados analisados demonstram que 7% a 15% dos estupros resultam em gravidez. O maior índice é relacionado aos crimes em que há penetração vaginal em adolescentes entre 14 e 17 anos. Este indicador de gravidez está acima do encontrado em outras pesquisas, segundo os autores, devido ao fato de que estes estupros podem ser eventos repetidos, tendo em vista o histórico de violência sexual intrafamiliar na faixa etária analisada.
Dessa forma, se considerado que 7% a 15% das pessoas estupradas acabam grávidas em decorrência da violência, 36 mil a 79 mil pessoas teriam direito ao aborto legal anualmente no Brasil. A média de abortos registrados pelo SUS, por ano, é de 1.630. O que ocorre, portanto, com as demais vítimas de violência sexual engravidadas por seus estupradores?
O estudo do Ipea mostrou que dentre as mulheres adultas que engravidaram, 19,3% realizam o aborto previsto em lei. Essa proporção cai para 5% entre adolescentes e 5,6% entre crianças. O procedimento para menores só deve ser feito quando a jovem e a pessoa responsável concordam. “Tendo em vista a alta prevalência de casos de estupro envolvendo crianças e adolescentes onde os próprios familiares são os autores, é possível que a diferença na taxa de aborto entre menores de idade e adultos reflita esses fatos”, diz o estudo.
Assim, uma adolescente tem a probabilidade de interromper a gravidez 66% menor do que uma mulher adulta. Também afetam negativamente a probabilidade da interrupção da gravidez se o agressor for cônjuge ou namorado da vítima e se a agressão já ocorreu outras vezes. Quando a vítima já sofreu outros estupros anteriormente, a chance de abortar é 58,5% menor do que quando ela é vítima pela primeira vez.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2019 com dados de 2017 e 2018, mostra que mais de 50 mil mulheres denunciaram estupro à polícia em cada ano. Se, em média, 10% destes crimes resultassem em gravidez, deveríamos ter ao menos 5 mil procedimentos de aborto por ano no Brasil, 68% a mais da média de procedimentos registrados por ano (que envolvem as outras duas causas, risco de morte e anencefalia).
De acordo com Helena Paro, médica obstetra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, a subnotificação dos casos de violência sexual e o baixo índice de mulheres que procuram o serviço de aborto previsto em lei é um grande problema no País.
“A subnotificação é muito grande, principalmente porque a mulher não se sente segura para fazer uma denúncia, prestar queixa, ir a uma delegacia. Também não se sente segura para procurar os serviços de saúde, porque muitos profissionais de saúde atuam de maneira antiética, talvez por não terem vivenciado esse tema durante a formação, pois o aborto é propositalmente negligenciado nos cursos da área da saúde, não só na medicina, mas também na psicologia ou no serviço social. Um livro muito famoso de obstetrícia aqui no Brasil, no capítulo de abortamento, só menciona o abortamento espontâneo, não faz nenhuma menção ao aborto induzido e, muito menos, ao aborto previsto em lei”, observa.
Serviços de referência para aborto legal
O baixo índice de abortos previstos em lei no Brasil é um indicativo da falta de políticas e de estrutura para atendimento às mulheres vítimas de violência sexual no País. Consulta feita pelo Portal Catarinas em setembro de 2020 mostra que há 98 hospitais que informaram, no sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes) serem Serviços de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual (código 165) que possuem o Serviço de Referência para Atenção à Interrupção da Gravidez nos Casos Previstos em Lei (classificação 006).
O cadastro do serviço é feito pelo próprio gestor local e não precisa que o Ministério da Saúde o habilite. Dessa forma, o número de serviços muda ao longo do ano.
Em julho de 2020, havia 101 serviços cadastrados, três a mais que o número atual (um no Rio de Janeiro, um no Acre e outro no Distrito Federal).
De acordo com Maria Esther Vilela, médica obstetra integrante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, para realizar uma interrupção de gestação prevista em lei, isto é, nos casos em que a gravidez é resultado de estupro, incorre em risco de morte para a gestante ou o feto é anencéfalo, o serviço de saúde não precisa ser cadastrado para realizar o procedimento. “O Sistema Único de Saúde tem obrigação de oferecer um serviço de aborto legal dentro do território, minimamente dentro do seu Estado. Esse procedimento não é de alta complexidade. Você precisa ter um ginecologista obstetra, uma psicóloga e uma assistente social que vão cuidar do caso. Isso está na norma técnica, e você precisa segui-la”, explica.
A Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, assim como a Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento, orienta os profissionais de saúde sobre como realizar o acolhimento de pessoas grávidas em decorrência de violência sexual, os deveres dos profissionais, os direitos da pessoa acolhida, o amparo legal, os métodos de interrupção utilizados, além de orientações para o planejamento reprodutivo.
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Embora Vilela recorde que qualquer serviço de saúde com equipe multidisciplinar possa acolher pessoas em situação de violência sexual e realizar o aborto previsto em lei, a médica pondera que a imensa dificuldade para essas pessoas é saber onde encontrar esses serviços, pois, na prática, há poucos serviços de saúde que efetivamente oferecem o atendimento humanizado ao abortamento.
Por isso, durante sua gestão como coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas do Ministério da Saúde, de 2011 a 2017, foi feito um esforço para incentivar os hospitais a registrarem esses atendimentos e se cadastrarem no Cnes como serviços especializados.
“Antes de 2011, 2012, para saber quais eram os hospitais referência pra aborto legal, a Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde enviava ofício para as coordenações estaduais de saúde das mulheres e pedia pra elas quais eram os serviços ativos de referência pra aborto legal. Então, era uma informação. Não existia o código da classificação, então as coordenações estaduais ligavam para os hospitais e perguntavam ‘vocês atendem aborto legal?’, e podiam responder ‘atendemos’, mas não terem atendido nenhum. Então era através de posicionamentos dos serviços junto ao gestor estadual. Quando a gente criou uma classificação no Cnes (Código 165) e uma subclassificação, dentro da violência sexual, que é o aborto previsto em lei (código 006), tornou-se mais oficial, digamos assim. Foi feito uma capacitação com todos os Estados e hospitais para que eles entrassem no Cnes e se classificassem. Quando você tem que colocar um nome lá dentro, você pensa melhor se você é mesmo, se você não é, qual é o seu compromisso com essa prática”.
Assim, Vilela explica que o compromisso, a partir de sua gestão, com o mapeamento dos serviços e dos procedimentos de maneira fidedigna, com o incentivo para que os hospitais se cadastrassem e registrassem cada procedimento no SIH, era facilitar que as pessoas soubessem onde encontrar o atendimento quando precisassem.
O cruzamento dos dados de procedimentos registrados no SIH com a classificação CID 10 O04 (Abortos por causas médicas e legais) e os estabelecimentos cadastrados no Cnes evidencia que nem todos os serviços cadastrados efetivamente realizam o procedimento e, ao mesmo tempo, nem todos os procedimentos são realizados por serviços cadastrados.
Dos 9.796 procedimentos cadastrados no SIH/SUS, somente 2.910 foram realizados em hospitais cadastrados no Cnes, ou seja, menos de 30%.
Dos 98 serviços cadastrados atualmente no País, 18 não realizaram nenhum procedimento entre 2015 a 2020. Estes serviços estão localizados em Santa Catarina, Ceará, Espírito Santo, Mato Grosso, Distrito Federal, entre outros. Em Tocantins, por exemplo, o único serviço cadastrado no Cnes não realizou nenhum procedimento nos últimos cinco anos, o que demonstra que os 185 procedimentos de aborto por causas médicas e legais feitos no Estado foram realizados por hospitais que não estão cadastrados no Cnes.
Subnotificação ou negação do serviço?
A dificuldade em mapear os serviços que efetivamente realizam o acolhimento humanizado a vítimas de violência sexual que têm direito à interrupção da gestação foi sentido da pele, também, por Helena Paro, uma das fundadoras e coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (NUAVIDAS), do Hospital de Clínicas de Uberlândia. Segundo ela, em 2019, dois anos após a criação do serviço no Hospital, ela tentou entrar em contato com os profissionais de outras partes do País para propor uma reunião nacional sobre os serviços.
“Eu senti na pele o que é a dificuldade das mulheres em acessar esses serviços. Meus alunos me ajudaram com uma planilha com os nomes dos serviços e as cidades, buscando no google os telefones e eu ligava nos hospitais, falava de aborto, falava de serviço de violência sexual, e era mal tratada, não achava, ninguém me encaminhava para o setor responsável, foi muito difícil”, conta.
Essa dificuldade é resultado, especialmente, da criminalização legal e social do aborto no Brasil. De acordo com Maria Esther Vilela, os serviços que nunca realizaram uma interrupção tanto podem ter profissionais que, por medo de serem criminalizados, ficam inseguros, especialmente em cidades do interior, quanto por não registrarem os procedimentos, resultado de uma falsa moral que persegue profissionais e serviços que são reconhecidos por realizarem o aborto.
“A gente também fica na dúvida se os médicos estão fazendo e não estão registrando, até para não serem perseguidos. Porque dentro de uma instituição, a equipe de aborto legal muitas vezes é discriminada pelos colegas. Então, existe um olhar dos próprios profissionais de saúde dentro das instituições, devido a essa falsa moral brasileira. A gente sabe que é falsa, porque o comportamento de profissionais quando são pessoas de sua família, do seu círculo afetivo, eles agem de uma maneira, e agem de outra quando se trata de desconhecidos”, reflete a médica.
O registro de procedimentos de aborto é feito na Autorização de Internação Hospitalar (AIH) com o código do CID 10 O04. No entanto, segundo Vilela, este registro, mesmo sendo obrigatório, pode não estar sendo feito. “Os serviços são obrigados a notificar, e essa notificação pode ser acessada pelo Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). Mas na AIH podem colocar outra coisa, como “aborto incompleto”, por exemplo. Então pode ser que um hospital não tenha lançado a AIH com o CID de aborto por causas médicas e legais, e isso é um problema. Mas tem, também, o problema que as equipes mudam muito. As equipes têm nome e CPF: é a fulana de tal, que é ferrenha defensora dos direitos das mulheres, e ela aposenta, adoece, sai do hospital, desiste. São equipes que não se mantêm com muita frequência devido a toda a pressão da sociedade e, também, por questões pessoais”, analisa Vilela.
Estados sem qualquer serviço cadastrado
Além de considerar os serviços cadastrados que não realizaram nenhum procedimento nos últimos anos, é preciso avaliar os Estados que sequer possuem serviços cadastrados. É o caso do Amapá, Alagoas e Rondônia. Além destes, outros seis Estados contêm somente um serviço (Goiás, Piauí, Paraná, Roraima, Sergipe e Tocantins).
Os Estados onde não há serviços cadastrados estão entre os cinco com menor número de registros de aborto por causas médicas e legais (CID 10 O04) do País. No entanto, se considerado que o principal motivo de interrupções legais de gestações é o estupro, percebe-se que a ausência do serviço e o número de procedimentos realizados não refletem a segurança desses estados para as mulheres e meninas.
“O aborto previsto em lei é uma das ações de um conjunto de ações pra respeitar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Então, se você não tem serviços cadastrados, significa também que você não tem uma política de atenção às mulheres em situação de violência sexual implantada, que envolve desde o planejamento reprodutivo até a disponibilização ampla e irrestrita da pílula de emergência a toda uma atenção especial da rede de serviços pra essas mulheres pra detecção, acompanhamento e proteção dessas mulheres”, avalia Maria Esther Vilela.
A existência de serviços de atenção integral de pessoas em situação de violência sexual é outro indicador que permite compreender a estrutura de cada Estado para atender a vítimas de estupro. Essa assistência tem como característica as portas abertas para o acolhimento de vítimas e atua especialmente na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de gravidezes.
No Amapá, há três Serviços de Atenção Integral à Pessoas em Situação de Violência Sexual cadastrados e nenhum serviço de referência para aborto previsto em lei. Em 2020, foi realizado somente um aborto de janeiro a julho de 2020, e três na série histórica (de 2015 a 2020). Em comparação, o Estado registrou 351 estupros em 2017 e 275 em 2018, de acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019).
Outro Estado que não possui serviço especializado para a realização de aborto legal é Alagoas, que realizou, em 2020, dois procedimentos de aborto previsto em lei e 31 na série histórica. O Estado também possui somente três Serviços de Atenção à Pessoas em Situação de Violência Sexual cadastrados. Com relação ao número de estupros, houve 830 denúncias de estupro em 2017 e 587 em 2018.
Já em Rondônia, que também não conta com serviço para aborto previsto em lei, existe nove Serviços de Atenção à Pessoas em Situação de Violência Sexual. Em 2020, o Estado registrou 3 abortos por causas médicas e legais e 31 na série histórica. Com relação ao estupro, 844 mulheres denunciaram terem sido estupradas em 2017 e 951 em 2018.
Quando analisado o índice de denúncias de estupro dos oito Estados com o menor número de procedimentos de aborto realizados na série histórica, chama a atenção que estes Estados estão entre os mais violentos para as mulheres do país.
Os estados com menos procedimentos de aborto por causas médicas e legais registrados de 2015 a 2020 são, respectivamente, Amapá (3), Sergipe (17), Acre (20), Rondônia (31), Alagoas (31), Roraima (35), Mato Grosso (42) e Mato Grosso do Sul (52).
Se analisado o índice de estupros registrados por esses estados no período, verifica-se que todos eles possuem taxas de estupro por 100 mil mulheres maiores do que a média nacional, que é de 50,7 em 2017 e 53,5 em 2018.
O Mato Grosso do Sul, por exemplo, foi o Estado com maior taxa de estupros para cada 100 mil mulheres em 2017, com taxa de 135,8 e 119,8 em 2018. Roraima vem em segundo lugar, com uma taxa de 115,7 em 2017 e 88,0 em 2018. Rondônia registrou uma taxa de 95,3 em 2017 e 106,2 em 2018. Já o Amapá, que registrou somente três abortos em toda a série histórica, teve, em 2017, uma taxa de 88,7 estupros por 100 mil mulheres e, em 2018, 68,2.
Todos esses estados possuem poucos Serviços de Atenção à Pessoas em Situação de Violência Sexual cadastrados (código 165 do Cnes). Estes serviços são aqueles que realizam o acolhimento inicial, fazem a profilaxia e não têm relação com o fato de realizarem procedimentos de aborto previsto em lei ou não. O Mato Grosso do Sul, Estado com maior índice de estupros do país, possui somente dez destes serviços, isso significa, em uma população estimada de 2 milhões e 800 mil, que é um serviço para cada 280 mil pessoas.
A comparação entre esses dados mostra que há uma relação. Mesmo considerando a subnotificação dos casos de estupro, especialmente envolvendo crianças e adolescentes, quando o abusador geralmente é alguém da família ou conhecido da vítima, os números demonstram que os Estados com maior número de denúncias de estupro são, também, Estados com pouca ou nenhuma estrutura para atendimento de vítimas de violência sexual e onde os direitos das mulheres de realizarem a interrupção de gestações resultantes dessa violência têm menor chance de serem respeitados.
Resistência e articulação dos serviços de referência
A difícil realidade do não acesso ao aborto previsto em lei no País é confrontada por equipes de profissionais cujo dever ético é colocado acima das pressões sociais e institucionais que tentam impedir que as vítimas de violência sexual acessem seus direitos.
Este é o caso da equipe do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (NUAVIDAS), do Hospital de Clínicas de Uberlândia (MG), do qual a médica e obstetra Helera Paro é coordenadora. O serviço, primeiro da cidade, que possui cerca de 700 mil habitantes, foi fundado em março de 2017 a partir de esforços para garantir o direito a uma mulher vítima de violência sexual que acessou a justiça. Com o caso, o Núcleo tomou forma e foi se fortalecendo, chegando, em 2019, a realizar 19 dos 139 procedimentos de aborto previsto em lei do Estado.
Dos sete serviços cadastrados no Cnes em Minas Gerais, o serviço de Uberlândia é o terceiro em número de procedimentos realizados entre 2015 e 2020, mesmo tendo sido criado somente em 2017. Além disso, é o único serviço cadastrado no Cnes fora da capital, Belo Horizonte, a efetivamente acolher estes casos. Os outros dois, localizados em Itabira e em São João Del Rei, realizaram, juntos, somente três procedimentos na série histórica.
De acordo com Helena Paro, a preocupação dos serviços que acolhem vitimas de violência sexual que procuram o aborto previsto em lei é em tornar esse direito mais acessível. Segundo ela, foi essencial ao NUAVIDAS realizar parcerias com a Universidade Federal de Uberlândia, com o Ministério Público e com profissionais da saúde e do direito para ampliar a divulgação do serviço.
Apesar do contexto de criminalização social do aborto, que atinge também os profissionais de saúde que acolhem vítimas de violência sexual, Maria Esther Vilela considera que serviços como o NUAVIDAS, que abrem as portas e divulgam seu funcionamento, acabam mais fortalecidos com o tempo.
“Nesses serviços que se autodeclaram referência, há uma equipe que é aguerrida, que tem militância nesse sentido e, quanto mais eles são referência, mais eles se protegem e ficam fortalecidos. Então, é desejável que todo serviço de ginecologia e obstetrícia possa oferecer esse serviço, até para que deixem de achar que isso é uma coisa de outro mundo, que é um pecado ou um crime, pra isso ficar mais corriqueiro dentro das instituições”, sugere a médica.
O fortalecimento de um serviço pode passar, também, pela articulação com profissionais que atuam em outras cidades e Estados. De acordo com Helena Paro, a criação de um grupo em um aplicativo de mensagens composto por representantes de cerca de trinta serviços de aborto previsto em lei tem auxiliado, inclusive, a compreender a dinâmica deste acesso no período da pandemia.
“Uma questão que temos visto neste grupo é que as mulheres têm chegado mais tardiamente aos serviços de aborto previsto em lei durante a pandemia. Isso tem várias razões, uma pode ser que, devido aos planos de contingenciamento por causa da Covid-19, as mulheres talvez não saibam quais serviços estão funcionando e têm uma demora maior para poder conseguir atendimento. Mas todos esses serviços que fazem parte do grupo não mudaram a conduta nem diminuíram o atendimento durante a pandemia, pois este tipo de serviço é considerado um serviço essencial. Na verdade, a gente deveria lutar para aumentar os serviços durante a pandemia, porque se a violência sexual tem aumentado, precisamos de mais braços, pra alcançar as regiões que não existem serviços”, analisa.
Conforme Paro, de janeiro a setembro de 2020, o serviço de NUAVIDAS já atendeu 24 casos de violência sexual para a interrupção da gestação prevista em lei, isto é, cinco casos a mais do que o total do ano passado. Na perspectiva do serviço, esse aumento decorre do aumento da violência sexual durante a pandemia.
“Temos visto com muita preocupação esse aumento da violência sexual, tanto conjugal, quanto por agressor desconhecido. Também preocupa muito as crianças e adolescentes que são vítimas de violência sexual, principalmente por parte dos pais ou parentes com quem vivem, e elas não têm mais a escola pra conseguir fazer a denúncia ou ser esse espaço de alívio, onde podem confiar em um adulto, algum professor da escola, pra poder denunciar mesmo que indiretamente essa violência sofrida”.
A percepção do aumento da violência é confirmada por pesquisas como a do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que constatou aumento de 40% no índice de violência contra as mulheres nos meses de pandemia, comparado ao mesmo período de 2019. Este número inclui a violência sexual, cujo reflexo pode ser o aumento de gravidezes resultados destas violências.
Em algumas Unidades da Federação, o número de abortos por razões médicas e legais registrados de janeiro a julho de 2020 ultrapassou o número registrado em todo o ano de 2019, como é o caso do Paraná, Goiás, Bahia, Acre e do Distrito Federal.
Além do aumento da violência e da dificuldade de acesso aos serviços de saúde devido à pandemia da Covid-19, as brasileiras vítimas de violência sexual ainda esbarram em obstáculos impostos pelo próprio Poder Executivo. O posicionamento do Ministério da Saúde, a partir da publicação de Portarias como a 2.561/2020, e do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que interferiu diretamente no caso da menina de dez anos de São Mateus para impedir o seu acesso ao aborto previsto em lei demonstram a o desafio para os profissionais da saúde em manterem abertos os serviços no País.
No entanto, para Helena Paro, os serviços de aborto previsto em lei e de atenção às mulheres vítimas de violência sexual atuam de acordo com direito garantido no Código Penal brasileiro e na Constituição Federal, que vê a violência sexual como um crime contra a dignidade humana. Por isso, esse é um direito fundamental que não pode ser lesado.
“Claro que esse ideário de um governo obscurantista, que não valoriza as evidências científicas e que tem como premissa aspectos preconceituosos e religiosos discriminatórios, pode passar pela ideia de que os serviços de saúde vão reproduzir esse ideário, reproduzir essas condutas, mas eu gostaria muito que isso não acontece. Os profissionais de saúde que cuidam das mulheres em situação de violência sexual e em situação de aborto previsto em lei devem se pautar pelos princípios éticos de suas profissões e a não podemos deixar nenhuma ideologia, questão religiosa ou política interferir em nossas condutas. Temos que passar a ideia de que estamos aqui, não podemos deixar que pensem que esses serviços não existem. Porque não ter método contraceptivo, não ter aborto seguro previsto em lei vai trazer muito mais prejuízos do ponto de vista econômico e do ponto de vista de vidas, de mortalidade materna. E isso sim vai custar muito caro para o nosso país”, finaliza.
*Camila é um nome fictício.
Edição de Paula Guimarães.