Em meio a uma série de questionamentos e ataques de parlamentares aos direitos reprodutivos, após o voto favorável de Rosa Weber à ADPF 442 no Supremo Tribunal Federal (STF), que pede a descriminalização da interrupção da gravidez até a 12ª semana, movimentos feministas organizaram um seminário para debater o tema no Congresso Nacional em 28 de setembro, dia que marca a Luta Pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe.

O seminário “Desafios da Frente Parlamentar Feminista Antirracista com participação popular” reuniu ativistas dos movimentos feministas e de organizações da sociedade civil de todo o Brasil para debater as principais questões relacionadas ao direito das mulheres e a relação com a atuação do Legislativo Nacional. Foram realizadas três mesas de debate: “A agenda democrática para as mulheres brasileiras”; “(In)justiças reprodutivas: quem tem o direito de gestar no Brasil?”; e “Violência política e de gênero: misoginia e racismo no Congresso Nacional”.

Movimentos_feministas_levam_maré_verde_para_dentro_do_Congresso_Nacional_
Crédito: Juliana Duarte.

Ingrid Farias, da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), destacou que a Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular é uma iniciativa inovadora, sem precedentes em qualquer parte do mundo. “É a primeira experiência na América Latina de uma frente que é composta por parlamentares e pela sociedade civil. Ela foi estabelecida há quatro anos como o instrumento desta casa que reconhece que as mulheres que estão aqui, eleitas, têm o papel de fortalecimento da democracia, da mesma forma que também é um papel dos movimentos sociais”, explicou Farias.

Além de levar a maré verde até o Congresso Nacional, simbolicamente por meio dos debates e de maneira física com a distribuição de lenços da campanha Nem Presa Nem Morta, os movimentos feministas também organizaram atos simbólicos no amanhecer e no anoitecer da capital federal.

O amanhecer feminista

A plataforma superior da rodoviária de Brasília amanheceu verde no dia 28. Integrantes de diferentes movimentos sociais estenderam um bandeirão de quatro metros da campanha Nem Presa Nem Morta. O ato marcou o início do primeiro 28 de setembro “fora do armário” depois dos últimos anos do governo de extremadireita de Jair Bolsonaro e da pandemia, como descrito por defensoras do direito ao aborto que estavam em Brasília. Manifestações pelo país também seguiram essa proposta de estender o símbolo da luta em prédios e monumentos públicos.

brasilia_28_setembro_aborto
Crédito: Andressa Anholete.

Em meio à votação da ADPF 442 no STF, a necessidade de vozes que se manifestem abertamente pela descriminalização do aborto se intensifica. Durante o ato simbólico de desfraldar o bandeirão verde no coração da capital do país, as ativistas, vestindo roupas e acessórios verdes e erguendo pulsos adornados com os lenços símbolos do movimento, não apenas expressaram, mas personificaram as defensoras do direito ao aborto no Brasil.

Durante o ato, diversos carros que passaram pela Avenida que leva até a Praça dos Três Poderes, buzinavam em apoio à campanha Nem Presa Nem Morta. “Surgimos no momento que o debate sobre o aborto entrou no STF, justamente com a proposta de popularizar a conversa sobre o direito ao aborto no Brasil”, relatou Laura Molinari, coordenadora executiva da campanha, durante uma fala no seminário.

A maré verde no Congresso Brasileiro

Logo após estender o bandeirão no centro de Brasília, os movimentos sociais começaram o processo de tornar verde o Plenário 14 do Eixo II da Câmara das Deputadas e dos Deputados. Além do lenço de quatro metros à frente da sala e outra bandeira da campanha Nem Presa Nem Morta, todas as cadeiras receberam lenços verdes. Conforme as pessoas chegavam e ocupavam a sala, pegavam para si os lenços, amarrando ao corpo, fotografando para postar nas redes sociais e guardando para presentear amigas.

Movimentos_feministas_levam_maré_verde_para_dentro_do_Congresso_Nacional__
Crédito: Juliana Duarte.

“É um ambiente completamente diferente do que vemos no dia a dia”, descreveu a deputada Talíria Petrone (PSOL/RS), ao abrir o Seminário. Além do histórico de censura e ataques ao direito ao aborto, como foi visto na votação do Estatuto do Nascituro na Comissão da Mulher, no final de 2022, as últimas semanas foram marcadas pelas tentativas de parlamentares reacionários de votar e aprovar na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, um projeto de lei que impediria casais homoafetivos de casarem, que teve a votação adiada.

Por isso, o fato dos movimentos sociais ocuparem um plenário da Câmara dos Deputados pelos direitos humanos, foi um contraponto ao que cotidianamente se observa no Congresso Nacional. A resistência foi feita com afeto. Em meio a reencontros e apresentações, o que mais se via na sala eram abraços, risadas e rodas de conversa. 

“Legaliza! É pela vida das mulheres! Legaliza! O corpo é nosso! É nossa escolha! É pela vida das mulheres!”, foi o recado deixado pelos movimentos sociais no Congresso Nacional.

Criança não é mãe

Ligia Cardieri, da Rede Feminista de Sexualidade e Saúde, organização que monitora os números de crianças que foram mães no Brasil, apresentou os dados mais recentes sobre o tema. Nos anos de 2020 e 2021, mais de 17 mil meninas menores de 13 anos deram à luz no Brasil. Meninas pardas e pretas, juntas, foram 75% dos casos.

“Muitas meninas estão sendo torturadas porque isso é uma tortura: levar uma gestação sem entender o que está acontecendo, por conta do poder coercitivo do Estado”, afirmou Mariane Marçal, da Criola.

Toda criança menor de 13 anos tem o direito ao aborto legal, por se tratar de violência sexual, mas, em muitos casos, esse acesso é dificultado ou negado, como vimos acontecer nos casos de Espírito Santo, Piauí e Santa Catarina.

“Essas meninas chegam no espaço de cuidado, que são os serviços de saúde, e as pessoas não perguntam nem como elas ficaram grávidas. O que fazem é mandar para o pré-natal, parabenizar, falar ‘ah, já tá transando’. Isso é um absurdo. Muitas vezes, essas crianças engravidam porque elas passam a infância inteira sendo violentadas e quando menstruam pela primeira vez, engravidam”, destacou a médica Mariana Pércia, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.

Movimentos_feministas_levam_maré_verde_para_dentro_do_Congresso_Nacional_criança_não_é_mãe
Crédito: Juliana Duarte.

Por uma Ministra Negra no STF

Apesar dos direitos reprodutivos terem sido o tema mais falando pelas participantes do seminário, são várias as violências e desigualdades que afetam as mulheres cis e trans e, por isso, os assuntos debatidos foram inúmeros.

Entre as questões trazidas, que foi um dos assuntos mais trabalhados pelos movimentos sociais nos últimos meses, está a importância da indicação de uma ministra negra para ocupar a vaga de Weber no STF. Na última segunda-feira (25), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que critérios de gênero e raça não serão critérios para a escolha – mesmo com a intensa mobilização da sociedade civil por uma ministra negra e as mulheres negras terem sido as grandes responsáveis pela sua eleição.

Movimentos_feministas_levam_maré_verde_para_dentro_do_Congresso_Nacional_ministra_negra
Crédito: Juliana Duarte.

“Ainda neste contexto de um governo que foi eleito, sobretudo pela perseverança de nós, mulheres, que lá em 2018 estávamos organizadas pautando o Ele Não, que culminou na resistência durante os últimos anos e que possibilitou a eleição do Governo Lula. A gente ainda tem que lutar, fazer campanha e brigar para que seja compreendido que devemos ter uma ministra negra no STF”, destacou Bruna Benevides, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

Resistência

Os movimentos sociais, que estão na linha de frente na luta pelos direitos humanos no Brasil, também trouxeram as experiências de intimidações, censuras e perseguições sofridas. “Sofremos ataques sejamos profissionais de direito, de saúde ou ativistas, vimos isso acontecer de forma muito contundente”, citou Letícia Ueda Vella, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. A advogada se refere ao caso da menina de 11 anos que foi persuadida a não abortar e conseguiu realizar o procedimento após denúncia de reportagem do Catarinas e The Intercept Brasil, mas foi reviolentada por perseguições institucionais a ela, a família, advogadas, equipe médica e jornalistas que atuaram no caso.

“A extrema direita mira no feminismo porque sabe a potência que temos no Brasil e no mundo e o nosso papel histórico na sua derrota”, afirmou a deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS).

A parlamentar e outras cinco deputadas sofreram perseguição política de gênero por se colocarem contrárias ao projeto do marco temporal.

“Nós não acordamos e dormimos bem. Nós acordamos ameaçadas e dormimos pensando nas ameaças e violências que sofremos, e passamos a reelaborar quais serão as estratégias construídas para que a gente possa no outro dia, mesmo acordando com a sensação da ameaça, como podemos agir diante desse contexto”, relatou Lúcia Xavier, da Criola.

Para a advogada do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, a Frente Parlamentar Feminista Antirracista é exemplo concreto da resistência, destacando-se pela realização do seminário no dia representativo da luta pelo direito aborto. “O voto da Rosa Weber não é fruto só da cabeça dela, mas da nossa resistência enquanto movimento, daquilo que exigimos por todos esses anos desde que a ação foi protocolada. Temos que nos manter firmes, porque esse caminho vai ser longo, mas estamos conseguindo avançar”, destacou.

O anoitecer pela vida das mulheres

À noite, grupos que participaram do Seminário se reuniram para um ato simbólico na rampa do Museu da República. “Foi um ato muito bonito. É uma retomada dessa mobilização de rua, após um governo extremamente conservador e após uma pandemia, conseguimos construir atos em vários estados para fazer resistência”, relatou Vella.

brasilia_28_setembro_aborto_
Crédito: Juliana Duarte.

Esta reportagem recebeu apoio da iniciativa Futuro do Cuidado.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

Últimas