Todos os anos, as frentes feministas que compõem a construção dos atos do 8M pelo Brasil– escolhem um lema que resume as lutas que serão ecoadas no Dia Internacional das Mulheres, 8 de março. Em Florianópolis, após diversas reuniões de análise de conjuntura e discussões entre diferentes organizações, o grupo definiu o mote “TRANSformando luto em lutas: nós queremos vivas/vives em todos os lugares”. Tema que foi seguido pelas cidades de Joinville e Jaraguá do Sul. O destaque para o “trans” aponta o cruzamento da agenda política de mulheres cis, trans e travestis, assim como outras identidades sexo-gênero dissidentes – homens trans e pessoas não-binárias. 

Em Florianópolis, a programação deste 8 de março, começa às 14h, no Largo da Alfândega. A tradicional marcha terá início às 18h. Haverá espaços de conversa, alas temáticas e distribuição de materiais informativos, atendimentos do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) e da Central de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica e Familiar (Ceav), além de acolhimento jurídico da Defensoria Pública do Estado. 

A concentração para a marcha inicia às 17h, com a presença dos blocos Cores de Aidê, Africatarina, Filhas e Filhes de Eva no Jardim das Delícias, BloCU SapaTransViade e Unides dos Bloquinhos. A saída está prevista para às 18h, percorrendo as ruas do centro da capital, dividida em alas temáticas que vão representar as diversidades. Mais tarde, a partir das 20 horas, também no Largo da Alfândega, haverá apresentações musicais das Filhas e Filhes de Eva no Jardim das Delícias, além da Cia. Abelha, Mana Moa MC, Jehnny Glow e Banda Apocalypse Cuier.  

Em Joinville, a concentração para a marcha será na Praça das Bandeiras, a partir das 18h. Em Jaraguá do Sul, as atividades serão ao longo de todo o dia, desde às 8h, na Praça da Meia Lua, ao lado do Museu da Paz. Em Santa Catarina, também estão confirmadas atividades em Lages, Caçador, Chapecó e Blumenau.   

Luto em Lutas

Quatro mulheres serão lembradas, fazendo alusão à transformação do luto em luta. Serão elas: Carol Campêlo, vítima de lesbocídio; Drica D’arc, que morreu por afogamento e traz reflexões sobre a as violências sofridas pelas pessoas trans; Julieta Hernández, vítima de feminicídio; Nega Pataxó, assassinada por defender o seu território.

“Esse olhar é para trazer a singularidade da vida dessas pessoas. Se apurar os fatos, sempre há um contexto de ódio relacionado à morte de uma mulher”, explica Gabriela Sagaz, que integra a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), a Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto e o Mães pela Diversidade.

A entrevistada, que atua na organização do 8M desde a sua primeira edição, em 2017, explica que o destaque às mulheres trans, travestis, mas também pessoas transmaculinas e não binárias, é uma forma de afirmar a pluralidade dos feminismos.

“O luto atravessa todas e todes nós, estamos juntas e juntes lado a lado. Quanto mais diversas e interseccionais, mais feminista é a nossa vida. Diferente daquilo que o patriarcado tenta nos impor o tempo inteiro”, afirma Sagaz. 

As construções dos slogans são espaços de disputa dentro da construção do movimento. As perspectivas se sobrepõem às outras, a depender da análise de conjuntura e da realidade da região. Para Elaine Sallas, também histórica na construção do 8M, o lema atual mostra, em alguma medida, um avanço em ampliar o espectro de feminismo a ser disputado na sociedade.

“A questão trans no mote do 8M chegou tardiamente, porque somos um país que está no ranking de 15 anos entre os que mais mata essa população no mundo. Isso fala muito sobre nós e da urgência de movimentos sociais de tocarem nesse tema”, diz a professora e militante, Elaine Sallas. Mulher negra, lésbica e comunista, idealizadora da Mostra Dissidente de Teatro Político. 

Sallas se refere ao alarmante dado trazido pela Transgender Europe (TGEU), atualizados em novembro de 2023, que aponta um triste recorde: o Brasil é o país que mais assassina pessoas trans no mundo pelo 15ª ano consecutivo. Desde sua criação, em 2008, o Brasil lidera o ranking de país onde a transfobia faz mais vítimas fatais. 

Além disso, há uma vasta quantidade de projetos de lei transfóbicos país afora, principalmente proibindo o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero. A medida afeta principalmente mulheres trans, travestis, pessoas transmasculinas e não-binárias, mas também pessoas cis que são confundidas por não se adaptarem aos papéis de gênero. Os projetos, em sua maioria, estão focados na restrição do uso do banheiro de acordo com o sexo biológico em escolas públicas, como o aprovado no município de Chapecó, em 22 de fevereiro. 

“A gente vê um projeto genocida que assassina pessoas e corpos trans. Vemos claramente uma transfobia estruturante dessa sociedade que operacionaliza de maneira institucional em cima dos nossos corpos, mas também interpessoal, quando nos chamam de travecos e outros termos pejorativos e discriminatórios, apenas por sermos quem somos”, alerta Mirê Sánchez Chagas, mulher trans, co-vereadora na mandata Bem Viver (Psol), em Florianópolis.

A entrevistada é co-fundadora da Rede Trans da Universidade Federal de Santa Catarina e integrante do Coletivo Negro de Serviço Social Magali da Silva Almeida.  

Oito anos de 8M

Não é a primeira vez que o 8M reivindica a encruzilhada para pautar as suas lutas. As intersecções entre classe, raça, gênero, sexualidade e deficiência figuravam em slogans anteriores, como o combate ao racismo, homenageando Elza Soares, a luta contra a violência política e de gênero, que vitimou Marielle Franco. Além da questão da desigualdade de classe e da desvalorização do trabalho doméstico e de cuidado. 

Ao longo destes anos, foram denunciadas a fome, a exploração, o genocídio, a violência contra as mulheres e a necessidade de descriminalização do aborto. As lutas convergem de acordo com as camadas de opressão que afetam a vida cotidiana das pessoas, sem que isso implique o apagamento de uma pauta em detrimento de outra. 

Mesmo com as especificidades de cada identidade e vivência, há diversos pontos onde a luta de mulheres cis, pessoas trans e não-binárias convergem. Os principais temas em comum destacados na construção da mobilização são as violências e questões vinculadas à saúde.  

“Tem a violência física, psicológica, obstétrica, os estupros, estupros corretivos, a violência financeira, a falta de acesso ao trabalho, remunerações menores e indignas, moradias precárias. Outra pauta comum é o acesso à saúde. Todas as pessoas sejam mulheres cis, mulheres trans, homens trans, pessoas não binárias precisam de atendimento ginecológico”, afirma Lino Nascimento dos Santos, docente do Instituto Federal de Santa Catarina e organizador da Marcha Trans de Florianópolis e região. 

A partir dessas convergências, a frente 8M Brasil SC destacou alguns cruzamentos de pautas que abarcam as diferentes vivências dos diferentes grupos: a falta de atendimento 24h nas delegacias das mulheres; as violências ginecológicas, obstétrica e a saúde gestacional; o aborto legal; a falta de acesso à saúde; a violência sexual; a dignidade menstrual; os assassinatos e os genocídios, que abarcam os povos indígenas, negros e o palestino.

8M SC lança carta-compromisso por um feminismo transinclusivo 

Ainda que a essência do 8M tenha um caráter transinclusivo, contando desde o seu início com a participação de um amplo espectro de feminismos, o destaque ao transfeminismo gerou uma onda de ataques transfóbicos às redes sociais do movimento e às pessoas ativas na organização. Os ataques foram impulsionados por mulheres que se autodefinem fêmeas humanas ou feministas materialistas. Na prática, elas negam a existência das pessoas trans, bem como as teorias de gênero. 

Diante do contexto, a Frente Feminista 8M Brasil SC lançou uma carta-compromisso por um feminismo transinclusivo que coletou 200 assinaturas de organizações e 171 individuais. A Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC Brasil) e o Movimento Negro Unificado (MNU), entre outras organizações, comprometeram-se a fortalecer e promover um feminismo transinclusivo. 

“Em meio à construção deste ano de 2024, nos sentimos convocadas a enfrentar a realidade política marcada por uma série de ataques às existências trans”, diz um trecho da carta. A ataques, que segundo o documento, se manifestam na perseguição contínua a professoras que abordam o tema em sala de aula, na imposição de restrições ao uso dos banheiros de acordo com o gênero, na hostilidade direcionada a pessoas cis erroneamente identificadas como trans, e na censura ao debate de gênero. 

Ingrid Sateré Mawé, mulher indígena e pansexual, demonstra incômodo com a insistência no binarismo do sexo e gênero. “Seguem falando em somente dois gêneros: homem e mulher”. Para a ativista socioambiental e feminista comunitária, a atual construção do 8M é uma retomada. 

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Encontro de mobilização para o 8M SC | Crédito: reprodução.

“Muitas mulheres trans, indígenas, brancas, negras, etc, fizeram parte da organização ao longo dos anos, mas houve um afastamento também. Hoje, estamos vendo uma nova adesão que mostra a diversidade desse movimento. Com esse enfrentamento sério à transfobia, também estamos fazendo uma retomada do que sempre foi o 8M”, defende.

Com o posicionamento público, a organização do 8M ganhou novas colaborações. Foi o caso do Lino Santos, que se sentiu convidado a fazer parte como um homem trans. Ele trava a luta a partir da sua própria existência. 

“As pessoas trans existem e não adianta negar a existência delas. Não importa com qual genital as pessoas nasceram. O que importa é que existe a realidade e a materialidade que é a vida dessas pessoas. Não tem como negar uma coisa que existe. Não tem como apagar a existência do oceano”, afirma. 

Em outras regiões do país, atos incluem temática trans

Em São Paulo, o mote escolhido destaca a luta pela vida das mulheres, pela legalização do aborto, contra a privatização dos serviços públicos, contra o fascismo o genocídio no povo negro e do povo palestino. 

Micaela Rodrigues, integrante do Coletivo Juntas!, está no seu quinto ano de construção das atividades para a data. Ela conta que, entre outros temas, a organização também colocou o feminicídio de mulheres negras, trans, lésbicas e travestis entre suas principais demandas.  

A reabertura do serviço de aborto legal do Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo, é outro tema trazido com força na atual conjuntura da região.   

“Enfrentamos com força a extrema direita, contra a truculência policial e as privatizações do Tarcísio de Freitas [atual governador de São Paulo pelo PL] e a solidariedade ao povo argentino contra o governo do Milei. Exigimos que o Brasil pressione o cessar fogo em Gaza e rompa relações econômicas com Israel”, acrescenta Rodrigues. 

Ainda no Sudeste, o lema escolhido pelo Movimento de Mulheres Unificadas atuantes na Região Metropolitana de Belo Horizonte foi “Parem de nos matar: Diversidade, solidariedade e vida digna a todas as mulheres do mundo!”. 

Dirlene Marques, da Rede Feminista Nacional de Saúde, está desde o início da construção do 8M unificado, há cerca de 15 anos. Em entrevista ao Catarinas, ela conta que o mote abre espaço para a luta de todas as mulheres. 

“Tenho feito um amplo investimento na solidariedade ao povo da palestina, onde 70% das pessoas assassinadas por Israel são mulheres e crianças. Também denunciamos que estamos em um estado onde a violência e o assassinato das trans tem mostrado o cruel rosto da intensa opressão sobre a população LBTIA+. Chamamos a atenção para a diversidade que somos, a solidariedade é parte do comportamento das mulheres e a nossa luta por uma vida digna é todo dia”, conta Marques. 

A concentração do 8M unificado será a partir das 17h na Praça Raul Soares, uma das principais de Belo Horizonte, e seguirá até a dispersão no viaduto Santa Tereza. 

Ali pertinho, em Brasília, ficou difícil resumir as pautas em apenas uma frase. O mote ficou de alinhado com a construção de outros estados: “Nossos corpos, nossos lares: Pela paz contra o genocídio do povo Palestino! Pela vida de todas as Mulheres! Não ao feminicídio e ao transfeminicídio! Contra a privatização da vida, o racismo, o machismo, a LBTfobia e todas as formas de violência! Pelo bem viver e pelo aborto legal e seguro! Sem anistia aos golpistas!”. 

Segundo Lucci Laporta, militante transfeminista organizada no Coletivo Juntas! e no Psol, ficou decidido que os temas seriam sobre o combate às privatizações que prejudicam a efetivação dos direitos sociais, pela legalização do aborto e por mais investimento em políticas de combate à violência e ao feminicídio. 

No dia 8 de março, serão realizados dois atos em Brasília. O primeiro será na hora do almoço, na Praça do Buriti. O segundo será um ato, às 16h, com diversas apresentações culturais, na Praça Zumbi dos Palmares, no centro da cidade.

Palestina livre

Na Argentina, país onde os movimentos feministas impulsionaram o grande mote do 8M nos últimos anos – Ni Una Menos (Nenhuma a menos) – foram realizadas três assembleias gerais com convocatórias transfeministas, ao longo de fevereiro, para organizar a greve da próxima sexta-feira. A mobilização política suscitou a questão da fome, da violência e da luta feminista contra fascismo, assim como a necessidade de unidade, após o resultado da última eleição presidencial.

“Discutimos principalmente a conjuntura nacional, a situação dos restaurantes populares, a vigência do Decreto Nacional de Urgência (DNU), a situação do atual governo de Milei, que toma as feministas como suas principais inimigas, principalmente a partir do discurso feito no Fórum Econômico Mundial, em Davos”, relata Victoria Tesoriero.

A entrevistada representa o Proyecto Generar – programa que busca fortalecer as instituições de gênero e diversidades nos estados e municípios argentinos e integra a organização Mujeres de la Cámpora, além de ser uma ativista pela causa do aborto. 

No evento, que aconteceu em janeiro, Milei disse que a agenda feminista radical colaborou com burocratas, promovendo criação de mais pastas e cargos, citando a secretaria para as mulheres do governo anterior. As mobilizações também são contra o DNU, em vigência desde o início do ano, através do qual o governo faz uma ampla desregulamentação e retirada do Estado da economia. Ele elimina, por exemplo, leis que controlam preços de alimentação e aluguéis. 

Somado a isso, o partido governista apresentou uma lei para revogar o direito ao aborto, regulamentado em dezembro de 2021. “Nas assembleias estamos discutindo como a gente tem um papel político, que precisamos ir modelando e somando forças novamente frente ao declínio das políticas públicas e a ameaça de retrocesso na lei do aborto”, diz Tesoriero.

Assim como nas construções de mobilizações para a data no Brasil, no debate de conjuntura internacional em Buenos Aires, o genocídio do povo Palestino também se sobressaiu. Desde a Colômbia, a articulação Ação Global Feminista, surgida em 2021, fez um chamado para o 8M aos feminismos do Sul Global contra a guerra, a militarização, o extrativismo e o terricídio. 

“Hoje, honramo-nos defendendo o povo da Palestina, sua liberdade e autonomia”, diz um trecho do manifesto, que pode ser assinado aqui.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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