Sob chuva intensa, a marcha do 8M Florianópolis mostrou a disposição de quem faz a luta acontecer na capital de Santa Catarina. A benção da ala do axé abriu os caminhos para a marcha, lembrando que a chuva tem lugar de importância nas religiões de matriz africana e por isso não deveria impedir que a manifestação ocorresse. O que se viu a partir dali foi determinação colorida pelas faixas e estandartes, mas também pelos guarda-chuvas e capas protetoras, ao som dos tambores, palavras de ordem e do cancioneiro feminista. Foi a primeira vez desde 2017, quando começaram as mobilizações do 8M pelo mundo, que Florianópolis marchou embaixo de chuva. 

Na linha de frente do protesto, carregando a faixa, tiveram lugar integrantes da Marcha Trans Florianópolis, além do movimento indígena e LGBTQIAPN+. Enquanto ocupava as ruas, o grupo entoava o grito de ordem “debaixo de chuva, debaixo de trovão, todas organizadas para fazer revolução”. 

O mote de 2024, “TRANSformando luto em lutas: nos queremos vivas/vives em todos os lugares”, ocupou lugar central. Uma das novidades da edição foi a divisão do protesto por alas. 

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Imagens: Kin Silveira.

A ala do movimento trans homenageou Drica D’arc Meirelles, estudante de Serviço Social e diretora da Associação em Defesa dos Direitos Humanos com enfoque na população TLGB (Adeh). Drica foi encontrada morta após se afogar na Beira-Mar Norte de Florianópolis, em 1º de janeiro deste ano.

As outras alas homenagearam mulheres como Carol Campêlo, vítima de lesbocídio, Julieta Hernández, a palhaça Jujuba, vítima de feminicídio, e a liderança indígena Nega Pataxó, assassinada por defender seu território na Bahia. Também teve destaque em ala a Mãe Gracinha, quilombola que perdeu a guarda de suas filhas há dez anos. Além disso, o protesto contou com as alas “Crionças”, destinada a crianças, PcDs e intérpretes de LIBRAS, Palestina Livre e Aborto Legal.

A respeito do tema da marcha, Joanna Leoni, mestranda em artes visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), sentiu-se representada. “Quando eu soube do mote deste ano, ‘TRANSformando luto em lutas’, eu senti necessidade de participar na construção desse movimento por entender a importância de um feminismo transinclusivo”.

Leoni também é integrante da coletiva Trama Udesc,  que reúne pessoas Trans, Travestis e Não-bináries na promoção de ações para a melhoria de acesso e permanência dos estudantes. Natural de Brusque, no Vale do Itajaí, passou por diversas violências e sentia-se desamparada na escola e no trabalho. “Quando eu chego em Floripa, busco esse local de acolhimento, não encontro e entendo então que é necessário criar esse espaço dentro da universidade. Criamos então a Trama”.       

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Da esquerda para a direita: Jeanne Martins, Joanna Leoni e Cae Beck, integrantes da TRAMA | Crédito: Iraci Falavina.

Ainda no escopo da população LGBTQIAPN+, a coletiva de visibilidade lésbica Mudiá também participou das atividades. A tenda e a ala da marcha prestaram homenagens à Carol Campêlo, jovem de 21 anos assassinada no Maranhão em 2023, e a Luana Barbosa, morta por três policiais em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. 

Os dados de 2022 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 mostram que os grupos LGBTQI+ sofreram 163 homicídios dolosos, além de 2.324 lesões corporais e 199 casos de estupro. Diversos estados, entretanto, não ofereceram dados completos, o que pode influenciar no resultado final.

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Guilhermina da Cunha | Crédito: Iraci Falavina.

A tenda Carol Campêlo foi construída em parceria com o Núcleo de Gênero e Raça do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde e Previdência do Serviço Público Federal em Santa Catarina (Sindprevs/SC). “Nós acreditamos nessa utopia de que algum dia nós tenhamos um Dia Internacional das Mulheres como comemoração e não para voltar novamente a lutar”, comentou Guilhermina da Cunha, coordenadora da coletiva Mudiá.

Tendas oferecem orientação e conscientização no 8 de março

As atividades do dia se iniciaram a partir das 14h, no Largo da Alfândega, centro de Florianópolis. A programação na capital do estado incluiu diversas ações de conscientização.

A tenda da dignidade menstrual e prevenção, por exemplo, distribuiu kits com absorventes e itens de prevenção de ISTs, além de apresentar itens de higiene menstrual. O espaço foi uma iniciativa da Frente Feminista 8M Brasil SC, em parceria com a marca Crua, a ONG Gapa SC, o coletivo Voz das Manas e a vereadora Carla Ayres (PT).

Outro ambiente direcionado a orientações foi da van do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina. Fernanda Foes Bianchini, analista jurídica do órgão, explicou que o objetivo era oferecer todo tipo de orientação jurídica, mas direcionada principalmente às vítimas de violência.

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Da esquerda para a direita: Dabine Capitaneo (residente jurídica da DPE) e Fernanda Foes Bianchini | Crédito: Iraci Falavina.

“Infelizmente hoje, com o dia de chuva, não teve tanta adesão. Curiosamente nós atendemos mais homens, passando orientações jurídicas mais amplas, mas sempre enfatizando que hoje é o Dia Internacional das Mulheres”, afirmou Bianchini.

Ainda segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os homicídios de mulheres e feminicídios em 2022 somaram 5.471 casos — o equivalente a quase 15 por dia. Em Santa Catarina, foram 157 casos.

O atendimento do Nudem está disponível pelo e-mail [email protected]. Vale lembrar que a Central de Atendimento à Mulher está disponível 24h por dia, todos os dias da semana, no telefone 180, chat online da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos ou aplicativo de celular (Direitos Humanos Brasil).

Para entrar em contato com a Defensoria Pública do Estado, basta ligar para um dos telefones a seguir, de segunda a sexta, das 12h às 19h: (48) 3665-6370,  (48) 3665-6589, (48) 3665-6654. 

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Imagens: Kin Silveira.

Ato homenageia Palestina, religiões de matriz africana e “Miss Jujuba”

A psicoterapeuta Shahla Othman, Presidente do Comitê Catarinense de Solidariedade ao Povo Palestino Khader Mahmud Ahmad Othman, reafirmou a pauta das mulheres palestinas.

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Shahla Othman | Crédito: Iraci Falavina.

“Mulheres que estão tendo filhos sem anestesia, um parto totalmente desumano, estão vendo os seus filhos serem assassinados na frente dos olhos delas, elas são os pilares da Palestina”, afirmou.

A tenda principal, organizada pela Frente feminista 8M Brasil – SC, recebeu representantes dos diversos grupos que se manifestavam na data. As expressões eram acompanhadas de uma intérprete de Libras.

Durante o discurso de Mirê Chagas, co-vereadora da Mandata Bem Viver do PSOL e representante da Marcha Trans Floripa, o microfone — até então utilizado em todas as falas — falhou. “Estão tentando nos calar”, proferiu, em tom de brincadeira, Chagas. 

Pouco antes da saída da marcha, representantes do Fórum das Religiões de Matriz Africana de Florianópolis e Região (FRMA) denunciaram a perseguição religiosa que alguns centros da cidade têm enfrentado. Em 2023, foram 2.124 violações de direitos humanos relacionadas à intolerância religiosa no país, de acordo com o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC). Esse número representa um aumento de 80% em relação ao ano anterior.

A primeira vereadora negra de Florianópolis, Tânia Ramos, protestou contra o congresso antifeminista realizado pela deputada Ana Campagnolo (PL) na mesma data, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. “Esta mulher que está ali na Assembleia Legislativa deveria ter vergonha na cara. Se ela está ali hoje, foi porque ela usou da luta das mulheres”.

Vanda Pinedo, professora e integrante do Movimento Negro Unificado (MNU/SC), também se posicionou contra a manifestação de Campagnolo. Ela definiu como controverso o fato de protestar contra direitos das mulheres e ocupar um cargo relevante na política.

“Nós somos de resistência, as feministas, quilombolas, indígenas, mulheres de axé, mulheres da população de rua, mulheres LGBTQIA+, nós resistiremos! E as que não acreditam: entreguem seus postos e cargos políticos. Porque se não acreditam neste segmento, neste espaço de luta, também não deveriam estar nesses postos que foram construídos por lutadoras (…)”, afirmou Pinedo. 

Para Neuzemery Silveira Marino, assessora da vereadora Tânia Ramos, o 8M é um movimento de luta importante. “É o momento em que a gente pode vir para rua e escolher o que a gente tem vontade de mostrar para o povo”.

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Fórum das Religiões de Matriz Africana de Florianópolis e Região | Crédito: Kin Silveira.

A Mãe Betina, ialorixá de um terreiro no bairro Rio Vermelho, pediu fim aos ataques à sua crença. “Tudo o que queremos é rezar pelos nossos e agradecer. Se a minha reza te incomoda, eu te peço desculpa, mas eu preciso rezar por você também”, falou emocionada.

A última apresentação antes da saída da marcha foi da Rede Catarina de Palhaças, que homenageou Julieta Hernández, a “Miss Jujuba”. A artista venezuelana de 38 anos foi estuprada e morta enquanto viajava pelo Amazonas.

O ato, que circundou o Largo da Alfândega e a Praça XV de Novembro, se encerrou sem registro de incidentes por volta das 20h. Em seguida, deu-se início às apresentações do grupo de agitação cultural. O momento de shows, inédito após a marcha 8M em Florianópolis, foi composto pela banda Apocalypse Cuier, pela MC Mana Moa, pela Cia. Abelha e a cantora Jehnny Glow. Após os ataques pela inclusão da pauta trans no ato de 2024, a Frente feminista 8M Brasil – SC lançou uma carta-compromisso assinada por mais de 200 organizações — incluindo a Associação Portal Catarinas.

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  • Iraci Falavina

    Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina, Iraci já atuou como colaboradora dos veículos Folha de S...

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