Por Mariana Paris e Ilana Ambrogi

Os mais recentes dados sobre a Razão de Morte Materna (RMM) publicados pelo Ministério da Saúde, em maio deste ano, mostram um aumento assombroso desse índice: o Brasil atingiu níveis que não eram constatados no país há quase 30 anos. Embora uma série de pactos e ações transnacionais tenham sido celebrados para estimular que os Estados adotem medidas para reduzir esses índices,  o Brasil, governo, sociedade, estruturas e instituições seguem falhando na redução das mortes maternas. Essas taxas revelam omissões do Estado na garantia da saúde sexual e reprodutiva, sendo consideradas um indicador das desigualdades socioeconômicas, de discriminação baseada em gênero e de iniquidades. 

A falta de políticas preventivas e reparatórias para emergências de saúde pública que coloquem saúde sexual e reprodutiva e as mulheres, meninas e pessoas que podem gestar no centro teve por consequência a tragédia evitável do alarmante aumento de mortes maternas durante a pandemia de Covid-19. Esse descaso pode ser evidenciado ao compararmos a RMM de 57,9 de 2019, pré-pandemia, à RMM de 117,4 em 2021: em 2021, as taxas foram duas vezes mais altas,  já no início da pandemia o Brasil concentrava 77% das mortes maternas por Covid-19 no mundo. Esses dados são extremamente preocupantes, pois as causas das mortes maternas são evitáveis em mais de 90% dos casos, ou seja, 9 entre 10 mortes maternas não deveriam ter acontecido, mesmo durante uma pandemia. 

As taxas são ainda mais graves entre as mulheres negras e indígenas. Em 2018, no Brasil, 54,1% das mortes maternas ocorreram entre mulheres negras de 15 a 29 anos. A pandemia de Covid-19 agravou esse cenário, e as mulheres negras apresentaram um índice de mortalidade duas vezes maior do que as mulheres brancas. O que esses dados refletem são condições pré-existentes que negligenciam as mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar, em particular em contextos de maior vulnerabilidade e impactados por estruturas de opressão como racismo. Portanto, é necessário explorar esse fenômeno sob a perspectiva do racismo estrutural, que impacta profundamente o atendimento de saúde das mulheres brasileiras.

Esse aumento das taxas de mortalidade materna está também relacionado à problemática do acesso ao aborto legal no país e os impactos da criminalização da prática sobre as populações mais marginalizadas. O aborto inseguro aparece como a quarta causa de morte materna no Brasil, antecedido por hipertensão, hemorragia e infecção. Todas essas causas estão relacionadas a questões estruturantes em acesso à saúde e direitos sexuais e reprodutivos, impactados pela criminalização do aborto.

Isso porque, em alguns casos, o diagnóstico e conduta médica adequada podem incluir interrupção da gestação sem atrasos em casos de pré-eclâmpsia — uma doença hipertensiva específica da gravidez — ou o uso do misoprostol para tratamento oportuno de hemorragia pós-parto por atonia uterina, a causa mais comum de morte materna. O misoprostol é um medicamento salvador de vidas, previsto nos protocolos do Ministério da Saúde para manejo de hemorragia pós-parto e recomendado como componente de kits emergência para hemorragia pós-parto. Porém, muitas vezes está indisponível, dada a inadequada restrição a uso hospitalar por consequência da criminalização do aborto.  

Ainda que de 1996 a 2018 as causas obstétricas indiretas, derivadas de condições pré-existentes ou concomitantes agravadas pela gravidez, tenham sido responsáveis por quase 30% de todas as mortes maternas, somente 1% dos abortos legais foi justificado como sendo por risco de vida. Ou seja, quase 3 em 10 mulheres que morreram durante a gestação, parto ou puerpério, poderiam ter tido suas vidas salvas se tivessem exercido seu direto ao aborto legal em razão de risco de vida gerado pelo agravamento de doenças prévias. Essa possibilidade é respaldada pela legislação desde 1940, porém, é provável que essa escolha não tenha nem sido ponderada ou oferecida à mulher. 

Exemplo disso é que um estudo realizado com 25 famílias que perderam mulheres gestantes ou puérperas durante a pandemia de Covid-19 identificou que intervenções adequadas e medidas que poderiam aumentar as chances de salvar a vida das mulheres, como intubação e indução do parto prematuro, foram adiadas aguardando o desenvolvimento fetal. Essas decisões foram justificadas pela “necessidade de salvar as duas vidas”. 

Isso significa que o atraso ou a não realização da interrupção da gestação se deu, em muitos casos, com base em uma visão equivocadamente restritiva de risco à saúde. Esse fator, somado à indisponibilidade do misoprostol, são alguns dos decisivos obstáculos ao acesso ao aborto legal nos casos de risco à vida.

Em resposta a esse cenário, em 2021, a FEBRASGO publicou o protocolo “Interrupções da gravidez com fundamento e amparo legais”, explicitando a inadiável necessidade de compreender o permissivo de risco à saúde de forma mais ampla, não se limitando ao risco de vida iminente.

Assim, a criminalização do aborto impede que a prática seja vista como uma medida necessária à garantia da saúde da mulher gestante, inviabilizando inclusive que a ela seja oferecido o direito de tomar a decisão sobre quais riscos está disposta a correr ou se deseja ver garantido o seu direito à interrupção da gestação, como prevê o Código Penal desde 1940. 

Nos casos de gestação decorrente de violência sexual, especificamente em crianças, nos deparamos com um a dos mais perversos impactos da criminalização do aborto. Entre 2016 e 2021, foram em média 20 mil nascidos vivos por ano, em crianças de até 14 anos. Estas gestações, além de decorrentes estupro de vulnerável, também são gestações que levam a risco de vida dado a faixa etária. Como a campanha regional “Crianças não são mães” anuncia, gestações nessa idade são compreendidas como uma das mais graves violações de direitos humanos, indicando uma tragédia social, legal, política e de saúde pública.  Os casos recentes das meninas de Santa Catarina, Espírito Santo e Piauí são representativos dos obstáculos postos às meninas vítimas de violência sexual, que tiveram o direito ao aborto legal negado ainda que a lei fosse cristalina quanto ao seu direito.

Os entraves impostos em razão da criminalização do aborto contribuem para que um número significativo de mulheres não acesse o procedimento de saúde ainda que tenha direito, seja nos casos de risco à saúde, seja nos casos de gestação decorrente de violência sexual. Isso pode ser verificado pela alta ocorrência de violência sexual no país em contraste com as baixas taxas de realização de abortos legais — nos últimos anos 3 anos foram em volta de 2 mil internações ao ano por aborto sob razões médico-legais — e sua quase absoluta ausência de disponibilidade nos municípios brasileiros

A magnitude do aborto como um problema de saúde pública é confirmada pelos achados da Pesquisa Nacional do Aborto – PNA (2010, 2016, 2021). O que a realidade do Brasil segue demonstrado é que a criminalização não impede a realização de abortos. A criminalização apenas faz com que muitos abortos sejam realizados de forma insegura e condições precárias, levando a uma parcela significativa dos casos de mortalidade materna, e que afeta, de forma mais intensa, mulheres negras, indígenas, de periferias e que vivem no Norte e Nordeste. Por essa razão, para entender a questão do aborto no Brasil, é fundamental adotar uma abordagem de justiça reprodutiva e direitos humanos, sempre com uma perspectiva interseccional, a fim de que se possa construir políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva que efetivamente contribuam para a redução de mortes maternas.  

Nossa região registra mudanças exemplares: o Uruguai, ao realizar atualizações em políticas públicas enfatizando a redução de danos de abortos inseguros, chegou à compreensão sobre a necessidade de despenalizar o aborto e, com isso, obteve êxito em quase zerar as mortes por aborto inseguro no seu território. São também paradigmáticas as experiências mais recentes de Colômbia e Argentina que regulamentaram o aborto em seus países. Essas duas nações caminham em direção à ampliação de cuidados integrais de saúde sexual e reprodutiva, como aprimoramento das políticas públicas relacionadas aos cuidados pré-natais, materno-infantil, educação sexual e reprodutiva, contracepção etc. 

No caso brasileiro, a responsabilidade do Estado pela precariedade no atendimento de saúde de mulheres gestantes e puérperas já foi reconhecida internacionalmente, no caso de Alyne Pimentel, no qual o Comitê da Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) recomendou ao Brasil uma série de medidas para reduzir a mortalidade materna e melhorar os serviços de saúde sexual e reprodutiva.

O Estado Brasileiro também teve que responder à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em março deste ano sobre denúncias referentes às violações de direitos por falta de acesso a aborto legal e gestações forçadas.

A sociedade civil presente na audiência chamou atenção para a necessidade de medidas estatais na redução de mortalidade materna e para políticas públicas baseadas nos direitos humanos de maneira interseccional e fundamentadas na justiça reprodutiva. As demandas apresentadas reiteraram que a relação intrínseca entre a falta de acesso ao aborto legal e seguro e o aumento dessas trágicas estatísticas precisa ser reconhecida pelo Estado brasileiro.

Nesse mesmo sentido, em maio de 2023, a ONU recomendou ao Brasil que revise o Código Penal para descriminalizar totalmente a interrupção voluntária da gravidez, seguindo as normas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa recomendação faz parte de um conjunto de orientações para melhorar o acesso à saúde sexual e reprodutiva e reduzir efetivamente as taxas de mortalidade materna, especialmente entre meninas e mulheres negras, indígenas e quilombolas. Assim, a ONU conclui e deixa claro, com essa recomendação, as consequências torturantes, racistas, discriminatórias e letais da criminalização do aborto. 

A perpetuação da violação de diretos fundamentais tem como pilar estruturante da criminalização do aborto, que permite e desencadeia uma série de estigmas, obstáculos e institucionaliza ausências e inadequações. A criminalização do aborto torna o acesso ao aborto legal quase impossível e cria desinformação sobre os permissivos legais.

Como vemos, apenas garantindo o já previsto em lei poderíamos evitar ao menos 30% das mortes maternas por causas indiretas e essencialmente todas as mortes maternas em menores de 14 anos e de qualquer pessoa que continuou uma gravidez decorrente de violência sexual por falta de acesso e/ou imposições arbitrárias de limites de tempos gestacionais. Melhora no acesso ao aborto legal e estratégias de redução de danos também certamente reduziriam as mortes por aborto inseguro.

A descriminalização do aborto é uma medida fundamental para evitar todas as mortes maternas por aborto inseguro assim como provavelmente para diminuir mortes maternas por causas diretas por hemorragia, hipertensão e infecção. Além de efetivamente diminuir os números de abortos e de fato garantir os diretos à saúde sexual e reprodutiva integral. 

 Há 30 anos, mulheres negras brasileiras já denunciavam a necessidade de justiça reprodutiva na atenção à saúde e, na “Declaração de Itapecerica da Serra das Mulheres Negras Brasileiras”, reivindicaram o direito de exercer livremente sua sexualidade e direitos reprodutivos. As mulheres negras brasileiras já alertavam a respeito da inerente interseccionalidade desses direitos fundamentais e como seus corpos e vidas são o alvo das trágicas e evitáveis consequências quando esses direitos são violados. Seguir criminalizando o aborto é perpetuar racismo, discriminações e provocar, sabida e desproporcionalmente, a morte e agravos à saúde de mulheres, meninas e pessoas que podem gestar, em particular pretas, pardas e indígenas. 

*Mariana Paris é advogada e pesquisadora na Anis – Instituto de Bioética e no Projeto Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos da UNB.

*Ilana Ambrogi é médica e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.

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