Atendendo à solicitação enviada em dezembro do ano passado por organizações que atuam na defesa dos direitos de meninas e mulheres brasileiras e latino-americanas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem uma audiência marcada, no dia 8 de março, para tratar do agravo de violações de direitos sexuais e reprodutivos e outras formas de discriminação contra mulheres e meninas no Brasil, em seu acesso à assistência médica e aborto previsto em lei. A audiência será transmitida a partir das 15h30, horário de Brasília, via YouTube: assista clicando aqui.

“Esta é uma audiência que foi tentada diversas vezes, todas durante o governo Bolsonaro, para gerar visibilidade internacional pro desmonte de políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva em diversas frentes, desde a negligência continuada com as vítimas da epidemia de Zika, passando pela crise do Covid, com o aumento da mortalidade materna, ao ataque ideológico do governo Bolsonaro à saúde sexual e reprodutiva, especialmente ao aborto”, comenta Gabriela Rondon, pesquisadora e advogada da Anis – Instituto de Bioética. 

Somente o último pedido, enviado no fim de 2022, foi aceito. O documento assinado pelo Center for Reproductive Rights em parceria com Anis, Ipas, Ciola, Cladem e Dhesca Brasil, menciona casos de meninas que tiveram o direito ao aborto legal violado e/ou obstaculizado para falar da precariedade do atendimento a vítimas de estupro de vulnerável no Brasil.

“É claro que o cenário político já é outro, considerando a mudança de governo, mas entendemos que é importante manter a audiência e fazer essa interpelação ao novo governo, especialmente sobre que medidas serão adotadas pra de fato reestruturar as políticas de saúde sexual e reprodutiva, em particular do aborto legal e com foco naquelas mais vulneráveis, que são as meninas e mulheres habitantes do interior do país, de regiões onde os atuais serviços de saúde não chegam, além de pleitear a capacitação dos profissionais para que não realizem violência institucional, como a gente tem visto”, completa Rondon.

De acordo com o Center for Reproductive Rights, o Brasil não está cumprindo os padrões de acesso ao aborto desenvolvidos pela Organização Mundial da Saúde. “A OMS estabelece o respeito no acesso aos serviços de aborto, a descriminalização e a assistência médica abrangente. Nosso papel [na audiência] será fornecer uma visão regional da situação do aborto no Brasil e pedir à Comissão Interamericana que convide o Brasil a seguir o exemplo de outros países, como o México, a Colômbia e a Argentina, que fizeram progressos na queda de leis criminais que punem o acesso ao procedimento”, fala Fernanda Venegas, Diretora Associada de Defesa e Relações Externas do Center for Reproductive Rights. 

“Essas audiências são importantes porque permitem que os comissários tenham um maior contexto sobre a situação dos direitos reprodutivos no continente e, sobretudo, porque dão às organizações de direitos das mulheres a oportunidade de fornecer informações relevantes”, explica. Segundo ela, das denúncias pode resultar algum tipo de ação por parte do Sistema Interamericano, como é de praxe. Ainda não há um prazo limite para o desfecho. 

Estarão presentes membros do Ministério da Saúde, representantes das organizações denunciantes e da sociedade civil, incluindo Paula Guimarães, diretora executiva do Portal Catarinas e repórter que investigou o caso da menina de Santa Catarina. O Ministério das Mulheres não confirmou sua presença à reportagem.

8M

A audiência será realizada no Dia Internacional da Mulher, emitindo uma importante mensagem a favor dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres brasileiras. 

“É realmente emblemático que a Comissão tenha escolhido realizar esta audiência no 8M”, destaca Venegas. “A situação das mulheres e meninas no Brasil é complexa e é importante que este tipo de espaço seja utilizado para torná-la visível. Nossa principal mensagem nesta audiência, juntamente com as organizações regionais, é que o aborto é um procedimento de saúde que qualquer pessoa em idade reprodutiva pode precisar. Uma abordagem criminosa do aborto não protege ninguém, mas coloca as mulheres em risco de criminalização, de emergências obstétricas e outras situações que afetam seus direitos humanos.”

A expectativa da professora Rosemary Farias, advogada popular e pesquisadora de direitos humanos e gênero, que também integra a Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio, é de que, a partir da denúncia, o Estado brasileiro implemente políticas públicas eficientes e eficazes para garantir o acesso aos direitos reprodutivos e sexuais de mulheres e meninas. 

“Que a saúde integral das mulheres e meninas seja preservada sem julgamentos e sem desinformação. Esperamos que as leis brasileiras sejam respeitadas e que todo o sistema de saúde brasileiro possa ter informações claras e unificadas para amparar as vítimas de violência sexual e que necessitam realizar procedimento de interrupção de gravidez. Desejamos que mulheres e meninas possam ser assistidas com segurança e acompanhamento multiprofissional que as ajudem a reconstruir suas vidas”, diz ela, que acompanhará a comissão representando a sociedade civil organizada do Piauí, estado onde vive. 

“A gente percebe que não basta só ter políticas relacionadas à garantia dos direitos sexuais reprodutivos, é necessário ampliar todas as condições de vida das mulheres para que elas possam, então, ter justiça reprodutiva. Para que elas possam organizar os seus relacionamentos, as suas gravidezes, os seus partos, a recusa dessa gravidez e até mesmo a criação e o acompanhamento do desenvolvimento dos filhos. Queremos um conjunto de políticas que nos permitam ter saúde, vida e felicidade”, fala Lúcia Xavier, assistente social e coordenadora da Criola. 

Acesso ao aborto legal

Na audiência, os casos das meninas de Santa Catarina e do Piauí, ambos cobertos pelo Portal Catarinas, serão discutidos. Em comum, eles têm o fato de que meninas vítimas de estupro de vulnerável receberam um atendimento precário quando buscaram os serviços de saúde, e enfrentaram uma série de obstáculos no acesso ao aborto legal. 

“Esses casos representam uma quantidade enorme de meninas que não conseguem acessar o aborto legal, principalmente quando chegam ao hospital depois de 22 semanas de gestação”, observa Beatriz Galli, advogada do Ipas e integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem Brasil). 

“A gente tem visto que os serviços de saúde têm negado acesso ou dado informação errada, dizendo que abortar é mais arriscado do que levar adiante uma gravidez infantil. O caso do Piauí foi muito trágico, porque por conta da falta de informação sobre os riscos de manter a gravidez, a mãe da menina e a menina mudaram de ideia sobre o aborto, e agora a menina está na segunda gestação sofrendo graves riscos para a sua saúde física e mental”, acrescenta.

Nesse sentido, Paula Guimarães reitera o papel fundamental do jornalismo no enfrentamento das violações dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres brasileiras. “Nossa reportagem sobre o caso da menina de 11 anos, de Santa Catarina, por exemplo, garantiu uma pronta resposta das autoridades para a realização do aborto legal em dois dias após a publicação.”

Segundo ela, tanto o caso de Santa Catarina quanto o do Piauí mostraram que o jornalismo cumpre o importante dever de garantir informação pública sobre direitos humanos, especialmente sobre o direito ao aborto legal, ainda tão envolto em desinformação.

“Mesmo que esses casos estejam resguardados pelo instrumento jurídico do segredo de justiça, essa não pode ser a justificativa para impedir o trabalho jornalístico e garantir a impunidade para as omissões e violações por parte das instituições que deveriam garantir o acesso à saúde. O sigilo existe para proteger a vítima, e não juízes e demais servidores públicos, especialmente quando agem em violação dos direitos das pessoas que deveriam proteger.”

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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