Desde a década de 1990, o Estado brasileiro é reconhecido como ativamente preocupado com direitos humanos, com destaque aos direitos relacionados a gênero, sexualidade e saúde sexual e reprodutiva em arenas internacionais. Esse posicionamento encontra amparo em manifestações no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e teve destaque com as diretrizes incorporadas à Política Externa.
Nesse sentido, em 18 de dezembro de 2008 o Brasil assinou a Declaração nº A/63/635, “Direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero”, na Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, em referência aos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O texto diz:
“Todas as pessoas têm direito ao gozo de seus direitos humanos sem qualquer distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de qualquer outra índole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição, tal como estabelece o artigo 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 2 dos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assim como o artigo 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.”
No item 3, reafirma-se, ainda, o “principio de não discriminação, que exige que os direitos humanos se apliquem por igual a todos os seres humanos, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.”
A Declaração nº A/63/635, destacando Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assim como o artigo 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promove uma interpretação ampliativa dos direitos humanos, abarcando, na questão de “condição social”, a referência à orientação sexual e à identidade de gênero.
No contexto americano, destaca-se o comprometimento do Brasil com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual a República Federativa é signatária. Tem-se, ainda, a Opinião Consultiva n. 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que trata da identidade de gênero, igualdade e não discriminação e define as obrigações dos Estados-Parte, como o Brasil, no que se refere à alteração do nome e à identidade de gênero.
Em seu ponto 83, o texto assevera que “é importante lembrar que a falta de consenso no interior de alguns Estados sobre o pleno respeito pelos direitos de certos grupos ou pessoas que se distinguem por sua orientação sexual, identidade de gênero ou sua expressão de gênero, reais ou percebidas, não pode ser considerado um argumento válido para negar-lhes ou restringir-lhes seus direitos humanos ou para perpetuar e reproduzir a discriminação histórica e estrutural que esses grupos ou pessoas sofreram.”
O documento também pontua que tanto a orientação sexual quanto a identidade de gênero são direito constitutivo das pessoas, “que possui valor instrumental para o exercício de outros direitos e está intrinsecamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, com o direito à vida, com o princípio da autonomia da pessoa e com direito à liberdade de expressão, sendo o seu reconhecimento pelo Estado de vital importância para garantir o pleno gozo dos direitos humanos pelas pessoas trans.”
Da lei à prática
Mesmo com os compromissos sobre direitos humanos, o Brasil aparece em um ranking perigoso: segundo a Relatora Especial da ONU sobre Defensores/as de Direitos Humanos, entre 2015 e 2019, o Brasil ficou em segundo lugar no ranking global de assassinatos de defensores/as de direitos humanos, com 174 mortes, atrás apenas da Colômbia, com 379. Em um panorama mais abrangente, 1.323 defensores/as de direitos humanos foram assassinados/as em todo o mundo. Mais de 70% desses casos se concentraram na América Latina e no Caribe, e em 166 deles as vítimas foram mulheres. As violências enfrentadas por defensoras de direitos humanos no Brasil encontram reforço tanto nas desigualdades e discriminações estruturais, mas também, e especialmente, na violência disciplinar das subjetividades das mulheres e nas expectativas que lhes são arcaicamente reservadas.
São poucos os países do mundo em que são nutridas ideias contrárias à não discriminação sexual, especialmente sobre orientação sexual e identidade de gênero. As ideias contrárias à não discriminação – ou ideias a favor da discriminação – são manifestadas em diversas práticas: ação, omissão, falas, escritos, comportamentos. Geralmente, podem ser identificadas com uma justificativa aparentemente legítima, como defesa de algo de profundo valor social (como a vida, a família ou a própria sociedade), em uma associação deturpada de ideias que vincula eliminação de subjetividades e vidas para a manutenção do objeto de sua preocupação.
Ideias discriminatórias estão enraizadas nos aparelhos estatais e são associadas a políticas neoconservadoras e de discriminação de gênero, que organizam instituições e orientam práticas discriminatórias, que são contrárias às determinações de direitos humanos.
No Brasil, as políticas neoconservadoras estão presentes em estados como Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro, tomando esses territórios como potenciais laboratórios de políticas e práticas extremistas antitrans, genocidas e racistas. Para citar alguns exemplos, em Santa Catarina, através de uma investigação da Polícia Civil do Estado, foram identificadas, em 2022, células neonazistas. Esse cenário culmina na ameaça e no ódio às existências em dissidência, como é o caso das pessoas LGBT+, especialmente mulheres transexuais e travestis, e pessoas negras, indígenas, refugiadas e pessoas com deficiência.
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Não raro, essas práticas organizadas e reguladas por uma subjetividade coletiva amparada na exclusão e no aniquilamento das existências em dissidência, estão presentes também em espaços da educação, como nas escolas e nas universidades. Isso tudo culmina numa dificuldade de permanência dos sujeitos e, não raro, nas práticas implícitas e explícitas de violências físicas, morais e institucionais.
No que se refere à população de pessoas travestis e transexuais, segundo uma pesquisa feita em 2018 pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, apenas 0,3% dessa população está presente nas universidades públicas brasileiras, em nível de graduação. Acredita-se que esse número seja maior ao levar em conta o público presente na pós-graduação. Mesmo assim, esses números são baixos e representam a realidade a que pessoas trans e travestis são destinadas socialmente.
A dificuldade e a impossibilidade de acesso à saúde, à educação e ao mercado de trabalho formal seguem sendo, historicamente, as principais e maiores demandas dos movimentos sociais de pessoas trans e travestis no Brasil. Há mais de três décadas, a passos lentos e com políticas precárias, percebemos que a realidade para essa população só piora.
O Relatório de Assassinatos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) de 2023 demonstra essa realidade marcada pelo ódio aos corpos trans e travestis, colocando o Brasil – pelo 14º ano consecutivo – como o país que mais mata e violenta pessoas trans e travestis em todo o mundo. Os dados também incluem as violências institucionais e as violações de direitos humanos.
Desigualdades na educação superior
No caso da educação superior, esse cenário vem mudando pela crescente presença, a duras penas, de pessoas travestis e transexuais ingressando nas universidades, especialmente naquelas que possuem políticas de cotas de ingresso específicas para essa população, como é o caso de cinco instituições: Universidade do Estado da Bahia, Universidade Estadual de Feira de Santana, Universidade Federal do Sul da Bahia, Universidade Federal do ABC e Universidade Federal do Amapá. E mais recentemente na Universidade Federal de Santa Catarina, através da Política Institucional de Ações Afirmativas para pessoas trans, travestis e não binárias, que dispõe sobre uma política integral de acesso, inclusão e permanência.
Essas políticas têm sido realidade tanto pelo avanço na presença de jovens estudantes trans ingressando nas universidades, o que tem produzido mobilizações políticas coletivas e demandas pelo acesso aos direitos básicos, mas sobretudo pelo crescente cenário de violências vivenciadas por esses estudantes dentro das universidades.
O fortalecimento da mobilização desses coletivos tem como resultado a conquista de normatização de direitos humanos básicos. Um exemplo é a Resolução Normativa nº 181/2023/CUn, que dispõe sobre a Política Institucional de Ações Afirmativas de acesso, concursos, permanência qualificada para pessoas que se autodeclaram transexuais, travestis, transmasculinas, transgêneras e/ou não binárias, sobre o enfrentamento da transfobia no âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina, dentre outras providências. A Resolução foi resultado de intenso trabalho coletivo da REDE TRANS UFSC e resultou na institucionalização da normativa que determina ações afirmativas para pessoas trans e enfrentamento às violências praticadas contra esse grupo de estudantes.
No entanto, a existência de normativas não basta para um reconhecimento moral e para a concretização dos direitos humanos. São necessárias ações efetivas de educação, proteção, acolhimento, responsabilização e monitoramento das violências para coibir ataques, intimidações e a criminalização.
Essa noção de normas e ações é imprescindível para a compreensão de como funcionam as práticas discriminatórias. A existência de uma normativa pode até dar a aparência de postura institucional antidiscriminatórias, mas a ausência de ações efetivas denuncia o caráter transexcludente das instituições e das práticas dos sujeitos que as integram.
As omissões dos trabalhos de enfrentamento à discriminação podem ser caracterizadas por diversas práticas. Pensadas em um âmbito de modelagem comportamental, parecem estar fortemente alicerçadas: em omissões de registro das denúncias; na demora ou descaso, ou ainda a ausência da ação de ato que tenha a obrigação de praticar (o que pode ser caracterizado, dependendo das circunstâncias, como crime de prevaricação, segundo o art. 319 do Código Penal); no impedimento de que reclamações sigam o fluxo processual determinado normativamente; na desatenção sobre reivindicação de direitos ou sobre explicação do fluxo processual; no tratamento de forma agressiva ou de coação; nas práticas e ações visando retirar a autonomia da participação institucional sobre discussões que envolvam determinados grupos de pessoas.
Permanência é sobre acesso a direitos materiais, como auxílio moradia, bolsa permanência, ajuda de custo para transporte e deslocamentos, mas também é sobre condições interpessoais e relacionais de existências de subjetividades diversas.
Falar em permanência é falar sobre promover condições para que a pessoa estudante tenha acesso às condições de desenvolver suas atividades na universidade, em um trabalho constante para reduzir a evasão e para contribuir com a sua formação acadêmica integral.
Estamos aqui falando em relacionamentos que respeitam a outra pessoa em sua existência e em suas possibilidades de existir e de conviver em um ambiente acadêmico. Para isso, o reconhecimento jurídico é imprescindível, mas deve ser acompanhado do reconhecimento moral, que é uma dimensão de construção de nossas identidades que constitui toda e qualquer existência humana.
Ademais, falta às instituições o entendimento de que as desigualdades e injustiças de gênero, sobretudo no que se refere à população trans, são estruturais. Nesse sentido, resta compreender que a permanência, o acolhimento e a inclusão efetiva de pessoas trans nos espaços de educação é uma luta conjunta, também de responsabilidade de pessoas cis – não da boca pra fora, mas com efetiva implicação, de modo a tornar possíveis alguns avanços.