Era o segundo dia da 17ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu entre 2 e 5 de julho de 2023, no Centro Internacional de Convenções do Brasil, em Brasília-DF.

Luana estava ansiosa, pois muitas das propostas que começavam a ser lidas no seu Grupo de Trabalho do Eixo 3 afetavam diretamente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pessoas que podem gestar; e, também, os direitos da população LGBTQIAP+, da qual ela também faz parte, sendo uma mulher cis bissexual.

Assim, foi com o coração apertado que ela ouviu a voz de uma mulher gritando “destaque!” quando a coordenadora terminou de ler a proposta 523, cuja redação era “Ampliar a rede de serviços de aborto legal, garantindo o direito das meninas e mulheres de interromper a gestação de forma segura e sem estigmatização, bem como disponibilização da Aspiração Manual Intrauterina (AMIU) em todos os estabelecimentos de atendimento obstétrico ambulatorial ou hospitalar”.

Incomodada, ela respirou fundo e continuou atenta à leitura das demais propostas, mantendo a concentração para não perder a chance de, ela mesma, gritar “destaque” quando alguma proposta tentava retirar direitos.

No dia seguinte, era o momento de defender os destaques e votar as propostas. Ao chegarem na 523, a mulher do dia anterior se levantou e passou a defender a supressão total da proposta, se posicionando contra o direito ao aborto. Cerca de 30 segundos se passaram até que Luana percebesse que conhecia aquela mulher: tratava-se de uma conhecida da adolescência, que tinha estudado na mesma escola que ela, e que morava na sua cidade, no interior do Paraná. Luana, então, seguindo o ritual daquele espaço, pediu a fala para defender a manutenção do texto original. Se levantou e disse:

“Laura, eu sinto muito por perceber que você, que já precisou realizar um aborto, hoje se posicione contra esse direito. A garantia do aborto legal é uma forma de evitar o sofrimento de manter tudo em segredo, com medo dos julgamentos alheios, além do medo de acabar com sequelas por um procedimento inseguro ou mal feito por médicos que nos tratam mal por precisarmos abortar. O AMIU (aspiração manual intrauterina) é uma das formas mais seguras de realizar o procedimento, substituindo a curetagem, método super invasivo que já não é mais recomendado pela OMS. Além disso, o AMIU pode ser feito em ambiente ambulatorial, não sendo necessário internação hospitalar. Isto é, tudo pelo que você passou no passado teria sido evitado se a gente tivesse garantida a ampliação dos serviços e aborto legal e que você não precisasse viajar mais de 300 km pra realizar o procedimento. Pensa bem, assim como você, milhares de pessoas anualmente no Brasil precisam desse procedimento, seja porque o feto não desenvolveu o cérebro e não sobreviverá após o parto (anencefalia fetal), seja por a gravidez incorrer em risco de vida ou por ser resultado de estupro. Você não acha que essas pessoas merecem, assim como você, passar por isso sem traumas?”

Silêncio na sala. O constrangimento de Laura era evidente, mas Luana tentou reparar: “Minha defesa é que nós votemos pela manutenção da proposta, pelo acolhimento à Laura e a todas que aqui já passaram por isso ou conhecem alguém que tenha passado. A cada 7 mulheres, 1 já abortou no Brasil, e isso é muita gente! Todas merecem acolhimento e cuidado”.

A votação foi aberta e o texto foi mantido. No intervalo, Laura e Luana foram conversar enquanto os demais presentes saíram da sala.

Este é um relato ficcional, com base em algo que aconteceu durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde e que me contaram durante o almoço no último dia 5. O final da história foi totalmente criado por mim, pensando em amenizar a situação de exposição ocorrida e tentando imaginar um cenário em que dizer que já precisamos abortar não esteja envolto em medo ou constrangimento e possa ser dito assim, de forma franca e pública. 

Também busquei, com essa historinha, mostrar como é a dinâmica dentro de uma CNS. A metodologia parece um pouco complexa e confusa, ao menos para marinheiras de primeira viagem como eu, mas funciona para que se garanta o debate e a participação de cada pessoa, delegada ou convidada. Após pegar o jeito, eu, que também participei desse processo como convidada no GT 7 do Eixo 1, me senti responsável por gritar “destaque!” toda vez que a redação das diretrizes e propostas mencionava termos como “nascituro”, “criança por nascer”, “não nascido” ou “desde a concepção”.

Foram muitas as diretrizes e propostas que tentavam dar status de pessoa separada da gestante para o embrião, feto, concepto ou produto da gestação, algo que não tem respaldo jurídico no Brasil. A proposta de criação de um cartão de saúde específico e separado da gestante estava em, pelo menos, dois eixos, e havia muitas outras tentativas de determinar um direito específico para o embrião ou feto, com o argumento de “protegê-lo”, algo que já está garantido no pré-natal e que deve ter foco na gestante. Éramos poucas e não podíamos dormir no ponto.

De forma semelhante, não dormiram nem por um segundo aqueles que se posicionam do lado contrário ao que defendemos – a ampliação dos direitos para todas as pessoas, especialmente mencionando as mais vulnerabilizadas e detalhando qual é o tipo de política que precisamos criar ou fortalecer. Ouvíamos “destaque!” a todo momento, fazendo com que o temor por supressões totais ou parciais de nossos direitos fosse algo palpável na energia densa das salas dos GTs.

Cada destaque é votado e precisa ser defendido por quem o solicitou e, por isso, delegadas/es/os e convidadas/es/os ficam reféns das jornadas exaustivas que, no caso do GT 14 do Eixo 2, foi até a meia-noite da terça, dia 4.

Por fim, após a etapa dos GTs, as diretrizes e propostas que não são aprovadas ou rejeitadas diretamente por mais de 70% dos grupos, vão para a Plenária Final, onde é feita nova votação. Foi nessa hora que, diferente do cenário que se apresentava no GT que estive, a ala pró-direitos mostrou que estava em maior número.

UFA! Saímos aliviadas. Conseguimos rejeitar totalmente propostas como a 325 do Eixo 3, que instaurava a tortura ao “promover, para os casos de interrupção da gravidez prevista na lei, que o procedimento de abortamento somente poderá avançar após exame de ultrassom onde o médico deverá apresentar para a gestante ouvir os batimentos cardíacos do nascituro, orientando a tomada de decisão lúcida e consciente da gestante, como prevenção aos processos de adoecimento psicológicos tardios. Após este procedimento, o médico deverá registrar em relatório que será anexado ao prontuário da gestante”. Inacreditável! 

Além da rejeição desta, das propostas de Cartão de Saúde específico para o embrião e muitas outras, também conseguimos aprovar na Plenária Final propostas muito boas, como a da historinha ficcional acima e a 670 do Eixo 4: “Garantir a intersetorialidade nas ações de saúde para o combate às desigualdades estruturais e históricas, com ampliação de políticas sociais e de transferência de renda, com a legalização do aborto e a legalização da maconha no Brasil”. 

Além disso, conseguimos suprimir a palavra “nascituro” de diretrizes e propostas sobre os direitos sexuais e reprodutivos e modificar o texto de outras, complementando com a menção às “indígenas”, por exemplo.

Isso foi possível porque, a meu ver, eles são barulhentos mas não são maioria – vide a última eleição – e nós sabemos nos articular e fortalecer umas às outras.

Aliás, algo importante que realizamos durante a Conferência foi a atividade autogestionada “Justiça Reprodutiva para Barrar a Violência de Gênero”, promovida pela Rede Feminista de Saúde, Anis Instituto de Bioética, Portal Catarinas, Grupo Curumim e Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, com apoio de Criola e Campanha Nem Presa Nem Morta. Apesar de não termos garantida a sala para atividade (que estava sendo usada por um GT), de não termos conseguido divulgá-la com o carro de som (por proibição da organização do evento) e de chocar o horário com as discussões nos GTs que não tinham encerrado seus trabalhos, conseguimos nos reunir, com duas horas de atraso, e foi um sucesso!

Na mesa: a médica responsável pela formulação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) em 1983, pesquisadora, professora universitária e diretora do Centro Brasileiro de Saúde Coletiva (Cebes), Ana Maria Costa; a enfermeira obstétrica, sanitarista e assistente de projetos de Criola, Mariane Marçal; a médica e pesquisadora da Anis, doutora em bioética, Ilana Ambrogi; e a socióloga e secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde, Lígia Cardieri. 

Suas falas sobre a luta contínua pela legalização do aborto; o conceito-potência de Justiça Reprodutiva cunhado pelas mulheres negras; os dados de estupro, mortalidade materna e falta de acesso à saúde e ao pré-natal que atingem, especialmente, mulheres negras; o lembrete da política do ódio que colocou o Brasil entre os países onde mais pessoas morreram por Covid-19 e onde a mortalidade materna voltou a índices de três décadas atrás; o cenário desolador em que são colocadas cerca de 20 mil meninas todos os anos no país que, vítimas de estupro, são obrigadas a parir e, por isso, têm impedida a infância, os estudos e a possibilidade de sair de situações de vulnerabilidade social estimularam o diálogo e a troca de experiências, que tive o prazer de mediar.

Um sentimento compartilhado entre nós pode ser resumido por uma das falas das companheiras, ao se referir ao tema da Conferência, “Amanhã vai ser outro dia”. “Se estamos há tantas décadas lutando contra os mesmos obstáculos, significa que não tem amanhã”. 

Não há amanhã, realmente, para milhares de pessoas, meninas e mulheres cis e pessoas trans, que ainda não acessam a saúde e outros direitos básicos como moradia, alimentação, educação e vida digna. E é pelo amanhã de todas/es/os que lutamos. 

Nos encontrar, abraçar e articular faz dessa luta algo afetuoso e poderoso. É nesse encontro que renovamos as forças e esperanças. Não estamos sós nem isoladas: somos profissionais, gestoras, estudantes e ativistas em várias partes do Brasil, resistindo e atuando pela ampliação dos nossos direitos. É isso que vai fazer possível que amanhã seja outro dia. É isso que nos faz compreender que já estamos construindo o “amanhã” que já começou.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

Últimas