Por Melina Fachin* e Kassia Hellen Martins**.

Travestis, transexuais e transgêneros de modo geral, doravante referidos como “pessoas trans”, compõem um dos grupos mais estigmatizados e vulneráveis do Brasil. Os dados disponíveis revelam que a vida dessas pessoas é marcada por brutais violações de direitos, invisibilidade e marginalização.

Vergonhosamente, o Brasil mantém-se pelo décimo quarto ano consecutivo como o país que mais mata pessoas trans no mundo. No ranking da violência, o estado do Paraná ocupa o sétimo lugar, com 42 assassinatos de pessoas trans entre 2017 e 2022, pior colocação entre os estados da região sul. Esses números alarmantes evidenciam a urgência de políticas públicas e medidas efetivas para promover a segurança da população trans.

Além da violência física, as pessoas trans também enfrentam intenso abuso psicológico, tanto nas esferas públicas quanto nas privadas. São alvos de discriminação, preconceito e marginalização, o que contribui para a sua exclusão social.

Essa marginalização impede que as pessoas trans desfrutem de uma vida digna, com igualdade de direitos. O acesso ao trabalho, à educação, à moradia e até mesmo ao uso de banheiros adequados são direitos negados diariamente às pessoas trans.

É nesse contexto que após oito anos desde o pedido de vistas do ministro Luiz Fux, o Recurso Extraordinário nº 845.779, em que se discute o tratamento social das pessoas trans, foi devolvido e seguirá para julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). 

Na lide concreta, o recurso em questão discute a reparação de danos morais a uma pessoa transexual que teria sido constrangida por um funcionário de um shopping center no município de Florianópolis/SC ao tentar utilizar o banheiro feminino. Para fins do controle de constitucionalidade, o tema em questão foi estabelecido como Repercussão Geral 778 e sua definição aborda a possibilidade de uma pessoa, levando em consideração os direitos à personalidade e à dignidade humana, ser tratada socialmente como pertencente a um sexo diverso daquele com o qual ela se identifica e se apresenta publicamente.

Antes do pedido de vistas pelo ministro Luiz Fux, os ministros Luís Roberto Barroso, relator, e Edson Fachin votaram no sentido de assegurar às pessoas trans o direito de serem tratadas socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive no que diz respeito à utilização de banheiros de acesso público. Na fundamentação, ambos os votos pautaram-se na garantia da autodeterminação de gênero, do uso de banheiro público e do adequado tratamento social, à luz do princípio da dignidade humana (CF, art. 1º, III), da dignidade material (CF, art. 5º, caput, V e X), da não discriminação e proteção às minorias. 

Essa é uma discussão de extrema relevância, uma vez que o resultado desse julgamento poderá negar ou efetivar direitos fundamentais para a população trans. O reconhecimento e a garantia do direito ao uso de banheiros conforme a autoidentificação de gênero são questões cruciais para a inclusão.

A decisão do STF poderá estabelecer um precedente jurídico fundamental para assegurar a igualdade de tratamento e o respeito à identidade de gênero das pessoas trans. Além disso, a definição desse tema como Repercussão Geral indica que sua resolução terá impacto em casos semelhantes em todo o país, gerando, espera-se, segurança jurídica e uniformidade na interpretação da Constituição em prol daquelas e daqueles que mais necessitam da sua proteção.

Ainda, cumpre salientar que o direito à autodeterminação de gênero é um princípio fundamental para a garantia dos direitos humanos e do combate à discriminação. Ao negar o uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero, as pessoas trans são submetidas a constrangimentos, violências múltiplas, inclusive agressões físicas. 

A utilização de espaços adequados para a realização das necessidades fisiológicas não deveria ser um privilégio voltado às pessoas cisgêneros, sobretudo pelo óbvio: a identidade de gênero não é definida a partir da genitália. Por reconhecer isso, o deslinde do julgamento em questão tem o potencial de impactar diretamente na qualidade de vida e na inclusão social das pessoas trans no Brasil.

*Melina Fachin é advogada, pós-doutora em democracia e direitos humanos (Universidade de Coimbra). Professora da UFPR. Sócia do escritório Fachin Advogados Associados.

**Kassia Hellen Martins é acadêmica de Direito pela Universidade Positivo (2019-2023) e presidenta da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI (ANAJUDH-LGBTI).

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