(Pindorama é um nome aportuguesado para o nome em tupi antigo Pindóbaretama, “região de palmeiras”, referindo-se às terras da costa litorânea do continente Sul).

Em um território historicamente marcado pelo etnocídio, genocídio e epistemicídio indígenas, todas as coisas estão interligadas, mesmo num “país” que nunca se quis indígena, mas que respira o ar dos nossos pulmões originários. Pela primeira vez em um reality da TV aberta brasileira, há uma mulher indígena amazonense, Isabelle Nogueira, musa Cunhã-Poranga do Boi Garantido, que carrega a representatividade da cultura originária da região Norte, o Boi Bumbá, que se tornou Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco em 2018. 

No reality, considerado a “casa mais vigiada do Brasil”, Isabelle passou e segue passando por várias situações de racismo anti-indígena, às quais todas as pessoas indígenas somos submetidas. Sobretudo, os corpos lidos socialmente como femininos, colocados no lugar de mulher; assim como os corpos que escapam da norma “masculino x feminino”, havendo sempre a objetificação e sexualização de nossos corpos.

Corpos esses que sofrem historicamente com a cultura do sequestro e do estupro, das avós/bisavós/tataravós “pegas no laço”, “a casco de cavalo e dente de cachorro”. Na casa, assistimos à misoginia racista de diversas formas, uma delas foi em uma das falas do participante Rodriguinho para outro participante, Vinícius, contra a Cunhã-Poranga Isabelle: “Cuidado com o golpe da Xereca”, um reducionismo “naturalizado” contra corpos marcados pela violência sexual e de gênero desde o início da invasão territorial.

O que simbolizam, também, outras cenas nas quais essa mulher indígena amazonense tem sua identidade o tempo todo questionada: “‘Índia’ mesmo, ela é ‘Índia’ de verdade?”. Quando é assim notada: “É ‘índia’, ‘indiona'”, sob o tom da objetificação de sua corporeidade; além do incômodo com a expressividade do pertencimento da Isabelle ao seu território de origem: “‘Ela só fala nisso’, ‘só vejo ela cantando música de Boi-Bumbá e falando de Manaus”‘.

O que somos nós, pessoas originárias, sem nossos territórios? Sem nossa identidade étnica, cultural? Um país criado dentro de um continente indígena, que está passando por uma emergência étnica de retomadas, contrária ao apagamento e etnocídio sistemático de extermínio intencionado por esse país. “Todos os povos estão em retomada”, disse Isabelle ao explicar o motivo de o termo “índia” ser pejorativo.

A retomada indígena é um direito originário, mas, após a aprovação inconstitucional do Marco Temporal, a ininterrupta violência contra povos originários só cresce. No dia 21 de janeiro, a Pajé Nega Pataxó, do povo Pataxó Hãhãhãe do Sul da Bahia, foi brutalmente assassinada a tiro por fazendeiros da região com auxílio da Polícia Militar, além de seu irmão, Cacique, ter sido baleado junto de outras pessoas da comunidade.

Devido aos marcadores étnicos, no BBB, Isabelle raramente é chamada pelo nome. Uma vez que deixou claro o incômodo em ser chamada de “índia”, passou a ser chamada pelo nome de sua personagem no Boi Garantido. Mas como não-indígenas têm orgulho de demonstrar distanciamento e desconhecimento acerca das línguas indígenas – embora o português do Brasil seja em boa parte Tupi – não a chamam de “Cunhã” e sim de “Cunha”, inconscientemente (?) perpetuando a velha e conhecida imposição de assimilação que etnocidou tantos povos ao longo da história desse país.

A relação do público com Isabelle reflete o debate racial no Brasil: o limbo identitário vivenciado pelo não-lugar das pessoas indígenas; pois dentro do BBB o público a coloca em um não-lugar, entre o protagonismo e antagonismo de brancos e negros. Como tantos dos pardos brasileiros, que pela lógica histórica possuem ascendências indígenas, e mesmo que pelo fator do etnocídio tenham sido desconectados de suas origens, estes não cabem em nenhuma das duas narrativas raciais binárias “branco x negro”. Indígenas em retomada, despertos retirantes desse limbo, conhecem bem esse não-lugar. Quando Isabelle é alvo de machismo, o feminismo branco não engaja em seu favor. Quando é alvo de racismo, o antirracismo preto não engaja em seu favor. As dores indígenas são abafadas por todos os lados.

Enquanto páginas e influencers podem se dedicar exclusivamente a levantar discussões nas redes sociais, nos territórios indígenas demarcados ou em processo de demarcação, os parentes enfrentam invasão de grileiros, desmatamento pela instalação de parques eólicos e solares, contaminação da água pelo mercúrio do garimpo, malária, alcoolismo, exploração de madeira, chuva de agrotóxico, ameaça do Marco Temporal. Nos territórios não-reconhecidos como indígenas, urbanos ou rurais, entre essas mesmas e tantas outras mazelas, ainda precisamos todos os dias convencer o país e o restante do mundo que não apenas existimos indígenas, mas que também temos direito à essa identidade e ao território. Monitorar programas de TV não tem como ser nossa prioridade. Isso não significa que o que acontece por lá não nos afeta por fora.

Isabelle, até agora, tem se mostrado uma pessoa sensata, centrada, leal às suas convicções, cheia de personalidade, mas é muito difícil enxergar uma mulher de origem indígena, exotificada e pejorativamente animalizada – cujas ancestrais eram caçadas, presas e violentadas – enquanto senhora de seu próprio caminhar. A mentalidade de nos tutelar ainda impera entre não-indígenas, o que não é diferente para o público do BBB, que só enxerga Isabelle em uma perspectiva de manipulada pela suposta antagonista branca ou pelo suposto protagonista negro. Nesse contexto, considerando a colonialidade que pessoas negras e populações indígenas foram escravizadas por mulheres e homens brancos, o protagonismo de pertencentes a esses povos é excepcionalmente raro. Pelo visto, não importa o que ela pensa, o que sente, o que diz ou faz, o público não-indígena só enxerga o que previamente se propôs a enxergar desde o início: um estereótipo caricaturesco. 

Estereótipos não têm subjetividade, não têm vontade própria, não têm personalidade, desejos, contextualização e nem mesmo nome. São personagens que servem a utilidades ou entretenimentos alheios. Chega o Carnaval é tempo de ignorarem nossa insatisfação com fantasias que reforçam esses estereótipos, nos obrigando a aceitar tal “homenagem” anual que dizem nos fazer, certos de justificarem nossa ridicularização e sem fazer nada por nós nessa ou em qualquer outra época. É tempo de não-indígenas nos colocarem no que acreditam ser o nosso lugar. Neste lugar, documentários como “O território”, narrador da luta empreitada pelo povo Uru-eu-wau-wau na atual Rondônia, são até premiados no Emmy 2023. Pois nesse lugar se ganha um Emmy, mas não a segurança em nossos territórios.

A definição de território ultrapassa as fronteiras físicas. Territórios são espaços tangíveis ou não, nos quais há coexistências de vidas, embaladas por relações de pertencimento com o modo de viver e cultura surgida nesses territórios, justamente enquanto fruto dessas coexistências e suas confluências.

O ataque a todos os tipos de territórios indígenas é constante: desde o corpo físico, passando por suas camadas imateriais de culturas, espiritualidades, línguas, etnicidades e pertencimentos, mulheridades e transgeneridades – inclusive na negação ao direito de outros entendimentos sobre gênero – até às matas de Pindóbaretama e seus outros nomes e organizações territoriais originários. Como por exemplo, Maranhãn, “o mar que corre”, em referência aos grandes rios de onde batizaram de Amazônia. 

Essa Amazônia, por sua vez, que é território da Isabelle, Cunhã-Poranga, termo em tupi traduzido como “moça-bonita”, de uma manifestação cultural nativa. Essa Amazônia a qual invade-se com garimpo e mineração industriais, e com eles envenenamentos por mercúrio. Essa Amazônia por onde passa o Rio Amazonas, cuja foz está para ter seu petróleo explorado no Pará, um estado ao lado do que ficou com o nome vindo do termo “maranhãn”, o Maranhão, pertencente ao Nordeste do país. 

Esse Nordeste onde invade-se cada vez mais com a implantação industrial de parques eólicos, a despeito da saúde da Caatinga, um ecossistema exclusivo deste país, único no mundo, e a despeito da saúde de seus moradores nativos também, submetidos a conviver com esses parques – sendo eles, em grande parte, descendentes indígenas, em apagamento ou não. 

Esse Nordeste no qual, não à toa, há uma manifestação cultural nativa chamada de Caboclinhos, no atual Pernambuco, cujo nome, em Tupi, a maior parte dos considerados brasileiros sequer sabe o significado. Esse Nordeste no qual, assim como no restante do território continental, há muito mais cultura e línguas indígenas do que a Tupi, mesmo que não deixe de ser importante que ela seja amplamente conhecida e ensinada nas escolas, como defendeu Isabelle em outro momento do BBB.

Opa, voltamos para ela no reality, de novo. Poderíamos fazer isso mais muitas vezes, em cada uma delas tocando em muitos outros pontos dos tópicos abordados, seguindo com a demonstração de paralelos e relações entre todos eles, de novo e de novo, pois, como já foi dito antes, em um território historicamente marcado pelo etnocídio e genocídio indígenas, todas as coisas estão interligadas. 

Nele, a guerra e as invasões de todos os tipos nunca cessaram, restando a todos os seres, ecossistemas e pessoas indígenas o lugar de personagens de uma narrativa colonial, na qual seus papéis são o de servir: ora ao entretenimento, ora para ser alvo de assassinatos e violências, ora à sexualização, ora à exploração, ridicularização, objetificação, destruição, inferiorização, subestimação. Nunca o lugar que nos é de direito: o de sermos, em nossos próprios modos, viventes co-criadores dos territórios e culturas aos quais pertencemos, como em nossas próprias narrativas.

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