Estamos em 2024, e na vigésima quarta edição do Big Brother Brasil. Todos os anos, antes, durante e depois da exibição do programa da Rede Globo, algumas discussões se repetem. Isso se acentuou, e muito, em duas ocasiões: a primeira, com a participação ativa da audiência do reality show através das redes sociais, que teve início ainda na década de 2010; a segunda, logo depois, quando a emissora percebeu que a diversidade é lucrativa. 

Para situar a estimada leitora, aviso que neste texto vou mesmo abordar apenas uma das celeumas relacionadas ao BBB no final de semana de 13-14 de janeiro de 2024, que fez o debate público online girar em torno de comentários feitos pelo cantor de pagode Rodriguinho sobre a aparência e idade da modelo Yasmin Brunet. Mas, antes disso, acho prudente fazer algumas ressalvas. 

Se você assiste e gosta do BBB, peço que considere minha franca intenção quando afirmo que este texto não pretende qualificar seu gosto, menos ainda interpretá-lo. Não é minha intenção aqui disputar distinções acerca do que é ou não válido que cada um prefira consumir nas suas horas de lazer e entretenimento.

Eu não assisti nenhuma edição, mas mais de uma vez participei da onda, chamada por jornalistas para comentar uma ou outra manifestação de machismo no programa. 

Tenho acordo com quem, gostando ou não e assistindo ou não, concede que o BBB tem potencial para engendrar discussões relevantes. Há também de se saber que o reality é produzido, roteirizado, editado, dirigido e divulgado de forma que cada vez mais de nós sejamos sua audiência, direta ou indiretamente. (E por audiência me refiro a qualquer público que consome quaisquer pedaços deste produto de entretenimento de massa, por cuja atenção os anunciantes pagam muito bem, numa fórmula de faturamento mais antiga do que a invenção da televisão).

Assim, compartilho a expressão da minha colega colunista de Catarinas, Bruna Benevides, que em um de seus stories de 15/01 no Instagram afirmou que não se sente melhor do que ninguém por não assistir BBB, mas tampouco esquece que o reality é irresponsável ao abordar determinados temas. 

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Imagem: Print de um dos stories do perfil de Bruna Benevides no Instagram, 15 de janeiro de 2024

Rodriguinho tem 45 anos, é compositor, cantor e produtor musical, e foi integrante do grupo Os Travessos. Yasmin Brunet tem 35 anos e é uma modelo e empresária, filha do argentino Armando Fernandez com a brasileira Luiza Brunet. Eles fazem parte do grupo “Camarote” desta edição do BBB, que não sei desde quando divide seus integrantes entre famosos e anônimos, os últimos no grupo “Pipoca”.

Yasmin é o que hoje se convencionou chamar de “nepobaby”: celebridades filhas de celebridades ganhando a vida sendo celebridades. O vocalista e autor Rodriguinho já foi acusado de violência pela ex, e não negou o ocorrido. Neste final de semana, Rodriguinho disse que Yasmin “tem um rosto bonito, mas um corpo estranho”, falando que ela “já foi melhor”. No outro dia, observando os hábitos alimentares dela, falou que ela está “mais velha e largou mão”. Estes são Rodriguinho e Yasmin, dentro da casa do BBB:

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Imagens: reprodução Globoplay.

Hoje pela manhã recebi uma questão da jornalista Kelly Matos, que foi aluna nossa no MBA em Diversidade nas Organizações da Universidade LaSalle, que me encorajou a escrever publicamente sobre este tema. Ela me perguntou: “Em que momento o corpo padrão da mulher passou a ser usado para colocá-la num lugar de inferioridade?”. Abaixo, providencio uma reescritura, bastante expandida para os propósitos desta publicação, com base nas respostas que compuseram meu diálogo com a querida Kelly. 

É sabido que narrativas de poder são estabelecidas a partir de padrões imagéticos, e estudos sobre isso vão da iconoclastia bizantina aos ensaios sobre raça, gênero e entretenimento do britânico Richard Dyer. A Escola de Frankfurt sinalizou uma virada no entendimento da reprodutibilidade de signos e o capital, e uma preocupação capturada nos escritos de Susan Sontag é a imagem, desde o advento da fotografia, como mediadora da realidade. 

Somos cada vez mais dependentes de imagens, e importa saber que padronizações de ideais de mulheres jamais significaram redenção para mulher nenhuma. Nem as muito bonitas estão protegidas da misoginia, e importa se atentar ao fato de que aparência não é nem deve ser critério principal para exaltarmos o que as mulheres fazem de bom.

Há de se observar também, no entanto, que o patriarcado é supremacista branco e cisheteronormativo. Dos ideais e tecnologias do patriarcado, um é manter pessoas negras em lugares de inferioridade a partir do fomento do racismo. Deste entendimento se pode observar e compreender as masculinidades subordinadas a que se refere a socióloga australiana Raewyn Connell na sua proposta de uma ordem de gênero, teorização que frequentemente emprego nos meus escritos e aulas por ser tão instrumental para o entendimento do patriarcado. 

No patriarcado supremacista branco, as masculinidades de homens não brancos, não heteronormativos, e não cisgênero, são subordinadas ao poder da masculinidade hegemônica. E no patriarcado — que tem na misoginia o sentimento principal na direção das mulheres, e opera com o machismo como diretriz principal das ações dos homens — não importa se a mulher existe dentro ou não do que é considerado padrão. O padrão é inatingível como o horizonte, e não passa de um marcador construído com linguagens e imagens do que misóginos e machistas consideram ideal. 

O “padrão”, arrisco dizer, cabe dentro do conceito que Connell chama de feminilidade enfatizada – ou seja, aquela que enfatiza a hegemonia da masculinidade, que também depende da subordinação de outras masculinidades, como mencionado acima. Mas o “padrão” não diz nada sobre uma mulher ideal, e sim sobre o ideal patriarcal por excelência, que é manter as mulheres em lugares de inferioridade a partir do fomento de misoginia e de machismo. Assim, não importa se a mulher é bela (nem se é recatada, ou do lar). Antes de mais nada ela é mulher, e será tratada com a inferioridade que o patriarcado a reserva, mesmo por homens cuja masculinidade é subordinada.

O BBB não é tela janela espelho do mundo, nem sangue novo na veia da gente. Como Bruna Benevides, também acho doloroso observar, ano após ano, o machismo, racismo e homofobia se manifestando como vilanização roteirizada no programa. Neste final de semana ficamos indignadas com um homem cis negro na esteira da defesa de uma mulher cis branca padrão. Ele está sendo vilanizado pela misoginia do mesmo patriarcado supremacista branco que é violento para homens como ele. 

O diretor-geral do programa, que não é pessoalmente afetado por machismo nem racismo, sabe bem disso. As palavras certeiras da crítica satírica no perfil de instagram da divertida e afiada Sara Mara, que num dos seus stories que já conta com milhões de visualizações parodiou uma das canções mais famosas de Rodriguinho, dizem tudo: “Toda vez que eu vejo você/Meu coração palpita diferente/Toda vez que eu penso em você/Chamo o Boninho de inconsequente” (assista aqui). 

O machismo e misoginia do Rodriguinho são reais, mas é também irresponsável e inconsequente fomentar indignação contra uma identidade marginalizada socialmente pelo racismo de formas que mulheres na posição que ocupa Brunet jamais conhecerão. 

Em 1962, quando foi lançada Garota de Ipanema, Helô Pinheiro tinha 17 anos, Tom Jobim 35, e Vinícius de Moraes, 49. Dois marmanjos exaltando a beleza de uma menina é evidência objetiva e concreta do quanto naturalizamos pedofilia, e reconhecer isso não é condenar Tom nem Vinícius, muito menos jogar pedras em Helô. Tampouco é cancelar a música, pois é escolha de cada um o que fazer com suas preferências.

Mas devemos ter acordo sobre os fatos, e é fato constitutivo da canção ter sido composta por dois adultos cantando a sensualidade de uma menor de idade. É certo que Tom e Vinícius são de outro tempo em que não existia BBB no qual pudessem ser filmados proferindo misoginia, mas isso não impediu nenhum dos dois de fazerem isso. O poetinha – retratado abaixo na imagem de 1960 que vem do Arquivo Nacional – em 1957 chegou a começar sua canção/poema intitulada “Receita de Mulher” com:

As muito feias que me desculpem
Mas beleza é fundamental 

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Vinícius de Moraes. Crédito: arquivo Museu Nacional.

Apesar da audácia e comédia inerentes ao fato de o homem da imagem acima julgar adequado escrever uma receita de mulher, e iniciá-la a partir justamente da beleza de que ele mesmo não dispõe, o ponto aqui não é sua aparência – nem a de Rodriguinho, ou de Yasmin Brunet ou de Helô Pinheiro. O que quero aqui é fixar sua atenção em qual identidade costuma ser a de sujeitos que saem ilesos e fortalecidos dos desrespeitos que desencadeiam. Os muito alienados que me desculpem, mas enxergar quem está no topo da pirâmide de desigualdade é fundamental. 

O BBB age como usurpador perverso de discursos de justiça social, e é difícil entrar em conversas sobre o programa sem antes estabelecer certos entendimentos, como o discernimento entre cultura popular (feita com participação ativa do povo, para o povo) e cultura de massa (feita pela indústria cultural, para satisfazer demandas capitalistas).

Tendo em vista que questões de identidade e diversidade são assuntos firmes dos nossos tempos, parte regular do nosso entretenimento, e podem ser manejados na direção de ampliar tanto direitos como faturamentos, precisamos de bastante discernimento e clareza sobre seus termos e discursos. Usá-los levianamente gera animosidade, e não é justo nem certo de que aflições dessa ordem sejam insufladas primordialmente para manter o engajamento rentável. Lucrar com a diversidade nem sempre é antiético, mas faturar com o fomento de opressões estruturais é.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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