Nós da Mudiá, Coletiva Visibilidade Lésbica de Floripa, nos manifestamos contrárias a uma política de exclusão de pessoas trans em nome de uma manifesta perspectiva “crítica de gênero”. O lesbofeminismo parte também do pressuposto da imbricação entre raça, classe e sexo/gênero e das reflexões sobre como a heterossexualidade compulsória serve à ideologia patriarcal que cria e sustenta uma suposta inferioridade de corpos compreendidos como femininos e sua submissão às normas patriarcais de gênero, normalmente associadas a um papel reprodutivo e de cuidado para “a mulher”.

Ampliando nossas perspectivas com relação a dissidências sexuais e de gênero, que de alguma forma desestabilizam a norma patriarcal centrada em dois sexos e na família nuclear monogâmica, entendemos que nossas lutas convergem com as lutas de pessoas trans, pois elas passam também por este crivo moral e normativo que nos relega ao apagamento e discriminação social, implicando em dificuldades para conseguir acesso à educação, emprego, renda, moradia e demais direitos constitucionais.

Pessoas lésbicas, sejam autoidentificadas mulheres ou não, sempre estiveram operando dissidências às normas de gênero e ocupando também o que, hoje, entendemos como transgeneridade. A violência brutal contra mulheres lésbicas e trans se manifestam de diversas formas, mas ficam mais evidentes quando estas são assassinadas de forma cruel e odiosa, principalmente quando seus corpos “originalmente” femininos ou masculinos não são compreendidos socialmente como aceitáveis. São corpos abjetos, “trocados”, “invertidos” e estranhos ao corpo social “normal”.

Corpos trans e lésbicos são violentados cotidianamente, principalmente quando são racializados e empobrecidos, por não corresponderem às expectativas de uma cultura cisheteropatriarcal. Cultura essa que entende o gênero como obrigatoriamente alinhado ao sexo biológico, considerado uma manifestação direta da natureza ou da “vontade de Deus”, operando de forma inescapável.

Ora, se entendemos que não há essência alguma na diferença sexual (por mais materialistas que sejamos), se nos informarmos das discussões levantadas por pessoas intersexo, e sobre a própria história da categoria “sexo” na medicina e na cultura, vamos compreender que nossas anatomias tem mais continuidade do que descontinuidades. Além disso, é importante reconhecer que a tecnologia reprodutiva e hormonal pode trazer benefícios, mas também nos envolver em outras contradições, como as questões relacionadas às polêmicas adoções de crianças geradas por “barrigas de aluguel” por famílias homoafetivas e por políticas voltadas para o reconhecimento do casamento homoafetivo num enquadramento heteronormativo ou mesmo numa “transexualidade compulsória” motivada por homofobia. No entanto, é crucial destacar que essas questões não automaticamente tornam as pessoas trans perigosas ou necessariamente alheias ao lesbofeminismo.

Temos nos deparado com um uso superficial da teoria para justificar comportamentos transfóbicos e uma defesa incabível da exclusão de pessoas trans dos movimentos feministas e de mulheres. Teorias materialistas não devem ser reduzidas a ponto de justificarem um medo de partilhar o mesmo espaço e divergir respeitosamente nas nossas diferenças. Acreditamos que podemos também convergir onde podemos atuar politicamente unides contra o conservadorismo e a perseguição aos nossos corpos “abjetos”.

Nós da Mudiá acreditamos que as possibilidades são melhores quando nos unimos, que nossas pautas podem sim coexistir, assim como devemos respeitar discussões históricas, onde lésbicas feministas estiveram sempre envolvidas, seja na produção teórica ou na atuação e militância política, geralmente implicadas umas às outras. Nós lésbicas estamos e estivemos nos movimentos feministas criando resistência aos determinismos patriarcais e ampliando as possibilidades de vida para todas as mulheres, assim como estivemos e estamos presentes nas lutas contra a homofobia, combatendo o HIV junto aos homens gays, incorporando discussões de raça e classe no interior das lutas feministas e criando para nós uma grande e diversa cultura sapatão.

Não se combate o essencialismo patriarcal com um suposto essencialismo feminista do qual não é possível escapar e no qual somos reduzidas a “fêmeas humanas”.

A existência de pessoas trans precisa ser compreendida e celebrada por nós, lésbicas, como parte daquilo que o imaginário de uma liberdade sexual e de gênero manifesta.

Ressaltamos que todes estamos passíveis de reproduzir discursos opressores e a lesbofobia também se faz presente em todos os movimentos dos quais fazemos parte, estamos cientes e conscientes do apagamento constante que temos que combater em diversas linhas de frente. Nossa intenção é justamente ampliar nossas lutas e defender espaços seguros para todes. Pessoas trans não estão isentas de reproduzir lesbofobia, mas não podemos operar numa “exclusão preventiva”, nem compactuar com posicionamentos equivocados e distantes da realidade.

Convidamos a todes que se identificam como lésbicas/sapatonas a participarem do nosso piquenique, no próximo domingo, dia 25 de fevereiro, no Parque da Luz, em Florianópolis, para nos aconchegarmos e discutirmos respeitosamente sobre nossos espaços e relações.

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