Eu travesti,

assumi que sou divina.

E criei a mim mesma.

Somos criadoras,

crias de dores.

A vida se faz

frente à morte voraz”.

Letícia Carolina Nascimento é mulher travesti, negra e gorda. Filha de Xangô e Oyá no Candomblé Ketu, é também ativista do Acolhe Trans e do Forúm Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans). Neste 29 de janeiro, marcado pelo Dia Nacional da Visibilidade Trans e Travesti, convidamos Letícia, atualmente, pesquisadora e docente da Universidade Federal do Piauí (UFPI) para dialogar sobre o transfeminismo e as possibilidades de imaginar outros mundos.

Autora do livro Transfeminismo, recém lançado em 2021. A obra faz parte da Coleção Feminismos Plurais, coordenado por Djamila Ribeiro. Com a escrita de uma voz potente e localizada, sua obra se inicia com uma pergunta detonadora, carregada de sentidos, significados e sentires: E não posso ser eu uma mulher?

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Foto: Reprodução.

CATARINAS – O que é o transfeminismo? 

Letícia: O transfeminismo é o feminismo pensado a partir das experiências de pessoas trans e travestis. De pessoas que rompem com a ordem imposta em relação ao gênero hegemônico, que seria baseado na divisão sexual binária.

Portanto, as pessoas trans possuem uma divergência com essa normatização. Eu acredito que várias pessoas têm divergência com essas normatizações, mas me parece que a divergência que as pessoas trans têm é profundamente radical a aquilo que a sociedade consegue tolerar. A gente consegue tolerar performances de pessoas gays e pessoas lésbicas, que são cisgêneras e rompem de certa forma com estes modelos. Mas me parece que, às vezes, são experiências um pouco mais toleráveis do que a radicalidade das pessoas trans. Não é raro nós ouvirmos comentários do tipo: ser gay tudo bem, mas se vestir de mulher é demais né.

Esses comentários sentenciam o quanto a homossexualidade, apesar de estar envolta numa série de violências, é admitida ou tolerada. Não há a mesma aceitação sobre as transvertigeneridades, pois existe uma radicalidade no modo que nós rompemos com sistemas cis, hétero e normativo. O que faz com que isso acabe sendo intolerável e monstruoso para nossa sociedade.

Óbvio que eu jamais quero reproduzir um tipo de hierarquização dos tipos de opressões, pois a comunidade LBGTQITA+ em geral, está marcada por violências, mas a gente precisa entender as diferentes questões que atravessam cada uma delas.

As pessoas trans passam por essa experiência de rompimento radical com o gênero que nos é atribuído desde antes do nosso nascimento. Pois, as pessoas entendem que nós só podemos nascer homens e/ou mulheres, inclusive desconsiderando o fenômeno da intersexualidade – normatizando as pessoas intersexo ao binarismo de gênero, apagando completamente as experiências dessas pessoas, ou seja, as possibilidades de existência das pessoas intersexo. Desse modo, só pode-se nascer homem ou mulher, esse é o destino que nós devemos percorrer ao longo da nossa trajetória. Já as pessoas trans em divergência com essa normatização buscam a construção de outros gêneros possíveis a partir das suas corporalidades, porque aqui não existe corpo errado, existe corpo possível: o que nós podemos fazer com nossos corpos a partir de práticas e ressignificações culturais e inclusive de intervenções médicas e tecnológicas – todos são processos de fabricação das nossas corporalidades. Desde um batom, que é uma coisa superficial que você passa água e sabão e saí, a uma prótese que você precisa abrir o seu corpo para colocar. São todas intervenções que modificam a suposta natureza do nosso corpo.

As pessoas trans fazem intervenções bioculturais tecnológicas para produzir outros gêneros, outras corporalidades. E nesse processo se alinham ao feminismo, exatamente, na compreensão do postulado bem inicial ao conceito de gênero e que o transfeminismo acaba por conceber um significado muito maior: da ideia de que o gênero lhe é um produto cultural e não uma dimensão biológica do ser humano. E as pessoas trans comprovam que gênero é cultural quando elas conseguem subverter a própria anatomia (que seria algo natural e biológico, um “determinante” que nós não poderíamos modificar). Ora, se o gênero é algo cultural, nós não nascemos com os nossos gêneros, nós construímos os nossos gêneros e as pessoas trans evidenciam os processos de construção de gênero. Afinal, o que me faz uma mulher trans são os mesmos símbolos culturais que fazem da mulher cis uma mulher.

Nós negociamos com os mesmos símbolos culturais. Ora, se ela pode ser uma mulher utilizando saia, batom, salto alto, qualquer outra referência que nos identificamos como feminino, eu também posso ser e inclusive posso ser uma mulher negando esse tipo de adereço que historicamente tem sido utilizado por mulheres, porque existem feminilidades. Existem diferentes construções daquilo que identificamos como feminino.

As travestis e as transexuais, elas não reforçam as feminilidades apenas, elas subvertem, assim, como as mulheres cis. Porque existe nessa nossa sociedade figuras femininas e nós todas, mulheres cis e mulheres trans, nos tornamos mulheres a partir das associações que nós fazemos com esse repertório cultural, social e histórica. O que historicamente produzimos como feminilidades, todas nós fazemos copiando umas às outras. Somos todas cópias.

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Foto: Reprodução.

CATARINAS – Como os conceitos de: cisgeneridades, mulheridades, feminilidades que você traz no livro incidem nas desconstruções das classificações coloniais de gêneros, ou seja, dos binarismos?

Letícia: Eu sempre entendo esse processo de criação de outras categorias e em especial dentro do transfeminismo, como um processo de invenção de outros mundos.

A linguagem faz parte das estruturas de poder, isso o Foucault já nos anunciava em As Palavras e as Coisas e em outras obras – ele vai colocar a importância da linguagem no processo de produção de saber e no processo de produção de poder, que inclusive vão estar articulados: poder e saber a partir da linguagem. Então quando nós, transfeministas, criamos teorias, nós precisamos criar outras palavras e criar outras palavras significa também criar outras possibilidades e outros mundos.

Pois, a língua como ela está é uma língua colonial, ela é patriarcal, é uma língua que reflete o binarismo de gênero. Quando a gente cria esses outros termos, nós estamos pensando este mundo ao nosso modo, nós estamos intervindo dentro desta realidade. Isso não é apenas o transfeminismo que faz. Quem cria de fato, a categoria branquitude é o movimento negro, não são os brancos que se reivindicam brancos, é o movimento negro que começa a olhar para aqueles que nomearam os negros de negros (porque os negros não eram negros antes dessa denominação) e devolvem o favor: – vocês nos nomearam, agora nós iremos nomear vocês, vocês são brancos e a branquitude se organiza deste modo.

Do mesmo modo, as pessoas trans fazem. Nós olhamos para aqueles que nos criaram enquanto pessoas trans, olhamos pra eles e dizemos: vocês são cis e isso de ser cisgêneros confere privilégios a vocês, que nós não temos por que somos “doentes” e vocês se consideram normais.

Essa normalidade de vocês é uma farsa, porque vocês produzem gênero tanto como nós produzimos gênero. Então nós precisamos nomear nossas opressões. Aquilo que não é nomeado é invisibilizado.

Portanto, o transfeminismo precisa nomear as opressões, as relações, as corporalidades, por isso nós criamos sujeitas, sujeites, traviarcado … porque nós estamos criando outras possibilidades de organização desse mundo, então a gente vai brincar com as palavras do opressor. A gente faz um jogo linguístico com aquilo que o opressor traz de possibilidade para gente e nós vamos subverter a língua e o modo como nosso mundo é organizado.  

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Foto: Reprodução.

CATARINAS – Você aborda no livro que corpos trans e travestigêneres se recusam à suposta verdade biológica imposta pelo CIStema sexo-gênero-desejo (p.58). Essa “verdade” biológica tem sido um ponto de divergências com/nos feminismos. A tese biologizante é fundamento da transfobia? 

Letícia: Sim, nós precisamos superar a biologia. Inclusive existem vários autores e autoras que falam da importância disso, o próprio Paul Preciado, a Donna Haraway. Ela é fantástica nesse aspecto: precisamos entender o gênero como uma fronteira, como a própria produção cultural.

O pensamento não é que tudo é cultural ou que tudo é biológico. O maniqueísmo é o que nós devemos evitar, pois a biologia e a cultura estão misturadas, inclusive existem estudos genéticos que comprovam que nossa estrutura genética muda por influência da cultura, então como é que as pessoas não conseguem perceber que nós não somos uma natureza completamente biológica.

Nós também somos efeitos da cultura, então há um alinhamento entre cultura e biologia. Na área da genética existem uma série de pesquisas, um campo de estudos que às vezes nós das Ciências Humanas não lemos tanto e, por outro lado, alguns geneticistas acabam privilegiando a questão genética. Mas existem pesquisas que vão mostrar o desenvolvimento de doenças a partir de interferências de posições genéticas e contexto cultural. Ou seja, se tivesse um outro contexto cultural, possivelmente (e apesar) da disposição genética não teria o aparecimento de uma depressão ou outras doenças que nós temos aí, contemporaneamente.

O modo como nós olhamos para a biologia e para cultura – ainda é muito dicotômico, parece que só pode rezar numa igreja: ou tudo é biologia ou tudo é cultura. Não! Nós fazemos os nossos corpos com essa biologia que está conosco, mas essa biologia não determina o que nós somos, ela participa do que nós somos.

É por isso que sou uma mulher de pau, ora é muito potente você afirmar que é uma mulher de pau, você está rompendo com a ideia de que para você ser mulher você tem que ter vagina. Não! Mulher é um pertencimento identitário.

Existem modos de nos fazermos mulher e eu me faço mulher tendo uma estrutura biológica que é sim masculina, que é identificada como masculina, mas é a partir dessa corporalidade geneticamente masculina que eu produzo uma outra feminilidade.

Aí, nós não estamos anulando a biologia, nós estamos fazendo outros processos a partir da biologia, ou seja, a biologia não determina. Ela (a biologia) é uma pauta de criação para outros processos, eu lembro muito do conceito de Corpos Sem Órgãos do Deleuze, é exatamente falar isso: não é ir contra o organismo, mas não podemos entender que o nosso organismo (ele só) está ou só pode existir daquela maneira. O corpo pode passar por processos de criação e por processos de invenção. Inclusive Deleuze, fala que mantendo o mínimo da sua organização para que se mantenha a vida, outros processos são possíveis de criação, nesse corpo material, biológico e orgânico que nós temos.

O corpo não é uma verdade absoluta, é uma possibilidade.

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Foto: Wilkerson Araújo. . .

CATARINAS – “Nós não somos corpos, nós fazemos nossos corpos” (p.40). Alguns usos de palavras, tais como: plasticidade de gênero, performar o gênero, fabricação de corpos, produção das corporalidades são utilizadas no livro para situar que as identidades de gêneros são identidades construídas socialmente. Gostaria que falasse um pouco sobre a relação sexo – gênero – desejo.

Letícia: Essa tríade, digamos assim, compulsória “sexo- gênero-desejo” é o que a Judith Butler traz no livro dela Problemas de Gênero, ela traz de maneira bastante didática a comprensão que: a nossa sociedade amarra uma questão na outra, ou seja, ela amarra o sexo biológico com a performance de gênero e com a orientação do desejo.

Por isso, que não faz sentido nos usarmos apenas o termo heteronormatividade ou machismo, pois existe uma cisheteronormatividade, já que não é apenas nascer homem ou mulher, pensando que o desejo que devemos ter para o sexo oposto faz parte desse regime de produção de poder. Então não tem como a gente desalinhavar as questões do sexo biológico com as questões do gênero e com as questões do desejo. Nós precisamos produzir uma análise conjunta dessas questões.

Essa normatização passa por uma naturalização, como se fosse algo natural: você nasce com o pênis, ora é um menino, ora gosta de mulher. É como se fosse uma sequência lógica, que nós naturalizamos isso a tal ponto, que as pessoas consideram de fato, doentio, patológico e imoral pessoas que subvertem essa lógica.

Estamos falando de séculos de colonização, de um processo que é bastante cruel, que vai instituir essa lógica de sexo, gênero e desejo dentro de uma perspectiva binária, dentro de uma normatividade. E as pessoas trans rompem completamente com isso, não são apenas as pessoas trans que propõem essas rupturas, outras corporalidades: as feministas, mulheres, lésbicas, gays e bissexuais têm buscado esse rompimento, especialmente com essa dimensão do campo do desejo. 

Esse rompimento vai demonstrar e trazer uma quebra a algo que seria supostamente natural e a gente começa a entender esses fenômenos não mais com naturalidade e, sim, a partir de uma artificialidade. Todas as identidades são fictícias, é o que a gente precisa entender. Não significa dizer que nós não temos identidades, pois no processo de politização das identidades a gente acaba tentando construir identidades políticas, aquilo que a autora Gayatri Spivak vai chamar de essencialismo estratégico identitário. Mesmo nessa dimensão, ter uma identidade negra como uma identidade política, ter uma identidade travesti como uma identidade política, não significa dizer que essas identidades não foram criadas ou que não são fictícias. Nenhuma identidade é real, toda a identidade é uma farsa.

Agora, por que nós estamos construindo essa farsa? Por que nós estamos construinído esta identidade: negra, lésbica, mulher, trans? Porque nós estamos dentro de um regime de poder e para ter estratégias de conquistas de direitos, nós estamos nos utilizando das identidades, destas identidades. Mas todas as identidades são fictícias. E no transfeminismo, nós sabemos disso.

Na verdade, a questão não é se eu posso ser uma mulher, é porque ainda insistimos nessa categoria mulher. Por que ainda, mulheres e homens? Porque não acabar com os binarismos de gêneros. Seria isso possível? Talvez seja algo que algumas pessoas considerariam utópico, tendo em vista que no nosso processo de construção de direitos, nós reforçamos constantemente a categoria mulher como uma identidade política: de conquista, que precisa ser emancipada – então como é que agora a gente vai passar a dizer que a mulher não existe, que o negro não existe. Até parece que a professora Letícia está ajudando o discurso fascista: de que não existe raça, não existe gênero, mas não é isso, é uma outra compreensão, de que sim esses processos sociais são produzidos dentro de contexto histórico e político, de que existe um processo de produção de discurso racial e de gênero. E nós precisamos inclusive identificar como esses discursos foram produzidos ao longo da história para que nós possamos desconstruir os efeitos de hierarquização social que esses discursos propuseram. 

Com isso, entender que essas identidades são fictícias é algo fundamental, mas não significa que não existam processos reais, materiais, tangíveis de violências. Entender uma identidade como fictícia, não significa anular todo o processo de violência que nós passamos. Então não seriam reais as trintas facadas que uma mulher recebe do marido, por que eu estou dizendo que mulher não existe? Não é real o modo como as travestis são brutalmente assassinadas? Não! Isso evidencia os modos como os discursos que produzem essas identidades, se materializam de maneiras violentas na nossa sociedade. 

Quando nós falamos de discursos não estamos falando de contos de fadas. Nós estamos falando de processos de produção de saber e de relações de poder que dão forma à nossa vida social, à nossa vida real. Então, gênero é uma categoria fictícia, nós criamos a categoria gênero para evidenciar o modo como as hierarquias entre homens e mulheres são produzidas. Como nós podemos romper com essas hierarquias? Construindo uma sociedade onde não haja sexismo – que é uma categoria inventada – mas que tem um efeito real no modo como nós organizamos a nossa sociedade.

CATARINAS – A tua pesquisa tem um papel fundamental para a teorização do transfeminismo, colocando em xeque e em disputa esse conhecimento branco – ocidental – universal. Existe uma genealogia do transfeminismo a ser contada?

Letícia: Eu acho que essa genealogia existe, mas ela ainda não está completamente organizada. Eu acho que já existem pistas para entender esses processos até porque o transfeminismo considera as lutas ancestrais. O transfeminismo traz como pilares tanto essa ancestralidade do próprio movimento trans como a interseccionalidade. 

Nós consideramos as experiências de Xica Manicongo, ainda no Brasil colonial, como sendo experiências de um transfeminismo. Nós resgatamos essa potência para o transfeminismo. 

Há essa genealogia e aí é muito bom utilizar esse termo, porque a genealogia é uma história das possibilidades, ela não traz uma linearidade, a ideia é pensar como Xica está em nós agora no presente. Como essas possibilidades da Xica no período colonial, você pensar na loucura que foi a Inquisição – ameaçar a vida de uma pessoa que seria um homem que se veste de mulher e você entender que, exatamente em 2022, a minha vida é ameaçada porque eu me visto como mulher.

A colonização não acabou, Xica sou eu, eu sou Xica. Pensar nesses processos é algo muito difícil de se fazer até porque a história não é contada por pessoas trans, por pessoas negras, então esses rastros são muito difíceis de achá-los e localizá-los.

A partir da ocupação da universidade, a gente tem tentado – as transfeministas – juntar as nossas histórias, juntar esses rastros como possibilidade de remontar.

Mas o transfeminismo enquanto uma corrente do feminismo começa emergir com bastante força desde os anos 2000. Aqui no Brasil por uma transfeminista que hoje em dia não tem uma atuação, que é a Aline Freitas e depois passa a ser encabeçado por autoras como Jaqueline Gomes de Jesus e Hailey Kaas. E aí vai seguindo o fluxo de outras produções, passando pela Viviane Vergueiro, pela Amara Moira. E quando chega em 2021, com o lançamento do livro eu tento fazer um apanhado dessas produções,  trazendo a minha originalidade. 

Muito do que eu produzo é uma colcha de retalhos que minhas outras irmãs já produziram, conferindo importância e visibilidade ao que foi produzido dentro do transfeminismo: das que me antecederam. Eu falo que o transfeminismo não é meu, o que eu fiz foi: sistematizar várias ideias e dar um pouco de originalidade, criando e intervindo a partir de como compreendo e o analiso certas questões. Boa parte dessas questões são elaboradas e teorizadas por outras irmãs trans, em diferentes momentos da história do transfeminismo.  

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Foto: Reprodução.

CATARINAS – “Me ensinaram que éramos insuficiente/Discordei, pra ser ouvida o grito tem que ser potente” – música da MC Carol e Karol Conká que você traz para sua escrita. Gostaria que você falasse dessas potências?

Letícia: Existem essas potências como possibilidade ao longo da nossa história, mas que nós temos tentado recuperar. Nós ainda somos poucas transfeministas pesquisando dentro das universidades com recursos e condições, mas a gente sabe que tem meninas trans em vários rolês e nem todas conseguem se dedicar à pesquisa, porque precisam trabalhar e estão concluindo os estudos ainda. E a gente sabe que as pesquisas demandam tempo, investimento, nós somos poucas ainda fazendo pós-graduação, inclusive orientando na pós-graduação. Mas a gente acredita que ao longo dos anos este trabalho vai se intensificar e quando aumentar a gente vai conseguir fazer essa genealogia, já temos pistas e nomes. 

A professora Megg Rayara e a professora Jaqueline Gomes de Jesus são duas professoras que têm sistematizado muitas coisas das histórias de travestis e a gente tem buscado formas de dar uma consistência e uma publicidade para esse processo. São pesquisas que estão em andamento, que vão revelar exatamente que as potências daquilo que estamos permitindo um pouco mais (digamos assim) elas sempre estiveram nas mais variadas sociedades e nos mais variados momentos históricos. Aquela famosa frase: no meu tempo não tinha isso! 

Em todo os tempos existiam essas possibilidades, porque nós somos seres inventivos, o que existem são condições de emergências, como o Foucault vai nos ensinar. Existem momentos históricos onde aquelas identidades lhes possibilitaram tomar uma forma de existência que em outros momentos não era possível, mas existiam essas rupturas. E nós, precisamos entender essas rupturas para entender esse próprio processo de existência, inclusive o modo de como essas possibilidades estão nas nossas realidades contemporâneas. 

A ancestralidade é uma categoria afrodiaspórica muito forte e pra nós travestis negras isso também acaba sendo um fundamento. Nós temos a necessidade de nos nutrir daquelas que nos antecederam, porque elas fortalecem nossa luta no presente. 

CATARINAS – Qual a importância da autodeterminação para as pessoas LGBTQIA+ e em particular para as trans e travestis?

Letícia: Eu tenho uma compreensão de certo modo particular de autodeterminação, que eu apresento no livro. Pois, eu entendo que nenhuma identidade é sozinha, solitária e ensimesmada. Ela é social. 

Acredito que o processo de autodeterminação seja de autorreivindicação é muito importante, inclusive ele precisa e ele demanda de um respeito social, mas ele não é suficiente para que um indivíduo faça parte de uma comunidade, exatamente porque existem comunidades que abraçam as identidades. Então não basta que você se identifique como uma pessoa negra, você precisa ser identificada por outras pessoas negras como uma pessoa negra.

Por que que nós – travestis e transexuais – por exemplo, que nós reivindicamos dentro das mulheridades, estamos o tempo todo em negociação com os feminismos? Porque nós, entendemos que é importante que essa comunidade feminista nos abrace como mulheres também, não que isso mude minha autorreivindicação e minha autodeterminação, pois não é o fato de uma feminista dizer que eu não posso ser uma mulher que eu, agora, deixo de ser uma mulher. Mas me é importante que outras feministas olhem pra mim e digam: eu entendo sua mulheridade, eu respeito a sua mulheridade e te considero parte do feminismo. Isso é importante, então o processo de autodeterminação está ligado a um processo de formação social das comunidades e se existe um feminismo negro, as mulheres negras definiram suas próprias identidades, isso a gente vai ver em vários textos, inclusive da Patrícia Hill Collins e nos textos da Sueli Carneiro: o modo de como as mulheres negras vão definindo e construindo a própria identidade. 

Então, não é uma mulher negra que diz: a mulher negra é isso … são as mulheres negras que vão em conjunto, entendendo o que é importante para identidade de mulheres negras. Assim são as pessoas trans e travestis, entendemos o que nos parece importante para as pessoas trans de modo geral e a gente vai trazendo alguns traços para essas identidades. E que não pode ser um tribunal de identidades que determina quem é ou quem não é. A gente precisa ter muito cuidado com isso até porque existem discursos bastante violentos nas redes sociais que colocam e expõem pessoas que se reivindicam trans, de maneira bastante violenta – como se aquela pessoa não pudesse pertencer a comunidade trans, porque não tem um hormônio ou porque tem isso ou aquilo, esse tipo de discurso eu não acho educativo.

Eu acho que a gente precisa entender a pluralidade das identidades das travestis, das mulheres trans, as inúmeras possibilidades, inclusive entender que essas possibilidades estão num processo de desconstrução constante.

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Foto: Reprodução.

CATARINAS – O transfeminicídio, um tema que você aborda no final do livro, que assim como o feminicídio constituem crimes de gênero. Quais seriam as responsabilizações da sociedade (como um todo), do Estado e dos movimentos sociais/feminismos para o enfrentamento desses crimes de ódio?

Letícia: Nós precisamos entender que a violência transfóbica e o transfeminismo são o resultado de um Estado patriarcal que banaliza determinadas vidas, como tem sido  as vidas: de mulheres negras e homens e jovens negros, mulheres indígenas e indígenas de modo geral. Todas essas vulnerabilidades estão alicerçadas há séculos num Estado que determinou que essas vidas não importam. Então é importante que o Estado se responsabilize. 

Que os feminismos de modo geral entendam que se uma mulher ou pessoa trans morre vítima desse patriarcado cisheteronormativo, isso é problema do feminismo também. Porque se o cisheteropatriarcado consegue tirar a vida de uma travesti – é porque ele também consegue ainda tirar a vida de uma mulher cis. Há uma relação e nós precisamos entender essas relações. É aquela máxima do feminismo: se uma de nós não está segura, nenhuma de nós está! Pois, enquanto o cisheteropatriarcado tiver vítimas, nenhuma de nós está segura, todas nós podemos sofrer com essas violências.

Há uma importância de exercer nossa sororidade a partir das nossas diferenças, eu sempre insisto nisso, pois as pessoas acreditam que a sororidade é muito fácil de ser exercida: com pessoas que pensam igual a gente ou pessoas que são iguais a gente. O difícil é a gente exercer a sororidade e empatia com pessoas que divergem da gente, que passam por outros problemas distantes da gente e esse é o desafio da sororidade dentro do feminismo: entendermos que nós temos dores, problemas e opressões que são completamente distintas, mas que ainda assim somos irmãs.

E mesmo que a violência que te atinge seja diferente da violência que mata a mim e as minhas, essas violências têm uma mesma base: que é o cisheteropatriarcado. Portanto, nós somos irmãs de lutas e nós precisamos combater aquele que nos mata diariamente.

Pois quando eu falo de feminicídios eu estou falando de crimes contra as mulheridades  e feminilidades – aqui eu estou incluindo cisgeneridades e as transgeneridades. Quando eu falo de transfeminicídios eu estou falando especificamente de crimes voltados às mulheres trans e quando eu falo de cisfeminidicios eu estou falando de crimes voltados para as mulheres cis. Você pega uma categoria e desdobra em outras para entender que são fenômenos que fazem parte de outro grande fenômeno que é esse ódio colonial – que nós temos a tudo que é feminino. Por que que as bichas afeminadas sofrem muito mais homofobia do que aqueles homossexuais que atendem o padrão normativo? Porque elas vão viver na nossa sociedade aquilo que é digno de escárnio: a feminilidade.

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Foto: Wilkerson Araújo.

Pois, historicamente, tudo que é feminino parece que é vil, é perigoso, é baixo, é imoral, é passivo, é fraco, é besteira, posso dominar e possuir. Quando a gente vê algo ou alguém falando sem muita importância a gente logo diz: parece assunto de menina –  consideramos sem importância. Inclusive as práticas de domesticação dos negros, eram através de abusos: pois assim eles eram feminilizados e serviam aos seus senhores como mulheres. Então esse processo de ódio ao feminino é o vincula os crimes as mulheres vítimas: trans e cis. 

É esse processo da organização colonial que vai colocar a feminilidade como algo que pode ser violentado a qualquer momento e essas similaridades precisam ser consideradas dentro de um processo de construção de políticas públicas para mulheres trans. Precisamos entender que já existe um percurso que foi feito pelas mulheres cis e que nós podemos dialogar para entender como esses dispositivos institucionais, jurídicos e legais podem contribuir para a cidadania de mulheres trans, a partir de trocas de experiências – pois já temos uma lei de feminicídio, temos delegacias de mulheres. E de como utilizar esses dispositivos para ampliar a luta feminista, incluindo as mulheres trans nesse processo? Tenho pensado muito isso e trago no livro como um chamamento para as mulheres cis, para que a gente possa entender essas alianças possíveis.      

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  • Nicole Ballesteros

    Nicole é feminista, latino-americana, mulher cis e migrante. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal de Sant...

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