No último mês, nove parlamentares brasileiras foram ameaçadas de estupro corretivo. Todos os ataques chegaram via e-mail corporativo, contendo descrições do crime com requinte de crueldade, e o criminoso diz saber onde as vítimas moram. 

De acordo com a blogueira feminista Lola Aronovich, que nomeia a Lei Federal 13.642 contra a misoginia cibernética, os textos seguem o modus operandi misógino, lesbofóbico, bifóbico e capacitista dos grupos masculinistas, que se articulam na internet para amedrontar mulheres, sobretudo aquelas que fogem às regras tradicionais de gênero e orientação sexual. 

Em reportagem, o Catarinas mostra que os ataques começaram em 14 de agosto contra a deputada federal Daiana Santos (PCdoB-RS), as deputadas estaduais Rosa Amorim (PT-PE) e Bella Gonçalves (PSOL-MG), e as vereadoras Mônica Benício (PSOL), do Rio de Janeiro, e Iza Lourença (PSOL) e Cida Falabella (PSOL), ambas de Belo Horizonte. Depois, se estenderam à vereadora Talita de Lima Barbosa (PSB), de Taubaté, e à deputada estadual Lohanna França (PSOL-MG). Por último, a vereadora Amanda Gondim (PDT), de Uberlândia, divulgou que também foi alvo do crime.

Em entrevista, a pesquisadora Paula Damasceno resgata a origem do termo estupro corretivo, mostrando como essa ofensiva vem sendo mobilizada contra grupos minorizados desde os anos 2000. Damasceno é bacharel em Direito, além de mestre e doutoranda em Saúde Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 

Jess Carvalho: Qual é a origem do termo “estupro corretivo” e o que ele designa?

Paula Damasceno: O termo “estupro corretivo” é uma categoria êmica [relativa ao estudo da linguística, levando em conta a função que desempenha no sistema a que pertence], que advém das denúncias reportadas pelos coletivos lésbicos da África do Sul, no início dos anos 2000, sobre reiterados estupros cometidos sob o pretexto de “corrigir” ou “curar” a orientação sexual de mulheres lésbicas negras, sobretudo as mais masculinas, o que, na perspectiva dos agressores, corresponderia à uma patologia e a um desvio moral. No discurso que procura justificar o estupro “corretivo”, somam-se ao determinismo biológico e à moralidade religiosa, os argumentos culturalista e nacionalista, segundo os quais, as práticas e identidades sexuais que desafiam os códigos tradicionais de gênero, teriam sido introduzidas no continente pelos europeus, sendo, portanto, consideradas externas à cultura original dos povos negros africanos. Apontadas como reflexo da herança colonial, as existências lésbicas, das mulheres negras, as invalidariam como mulheres “de verdade” e como “autênticas” africanas, o que finda por gerar acusações de traição à cultura ancestral e à unidade nacional independente. O crime conjuga, portanto, múltiplos eixos de opressão.

Enquanto a nomenclatura corretiva expõe a face punitiva do crime, a expressão “estupro curativo”, menos popular, mas igualmente usada para designar o delito, evidencia sua articulação com as práticas de “cura gay”, condenadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e proibidas, no Brasil, pelo Conselho Federal de Psicologia. A postura moralizadora assumida pelo agressor no estupro corretivo resta evidente tanto no castigo aplicado em razão da transgressão às normas tradicionais de gênero, quanto na tentativa de apagamento das sexualidades e identidades de gêneros, que subjaz na ação de readequação/reversão à cisheterossexualidade [conceito que faz referência a um conjunto de relações de poder que normaliza, regulamenta, idealiza e institucionaliza o gênero, sexo e a sexualidade].

O estupro de mulheres lésbicas em razão da sexualidade não é um problema recente. Temos relatos de que, nos anos 1980, a violência sexual com o propósito de impor a heterossexualidade, já ocorria no Rio de Janeiro, embora não fosse, naquele momento, referida como estupro “corretivo”. Foi na virada para o século XXI que o crime assumiu um novo vulto, como parte da reação à crescente visibilização de mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+, bem como a formalização de seus direitos nas esferas nacional e internacional.

Desde quando essa violência é documentada?

Em 2003, a organização não-governamental Human Rights Watch (HRW), em parceria com a International Gay and Lesbian Human Rights Commission (IGLHRC), publicou uma pesquisa sobre violências de Estado contra a população LGBTQIA+, realizada, entre 1998 e 2002, em alguns países da países da África Meridional. Nas entrevistas reunidas no estudo, as informantes narram casos de estupro “corretivo”, ocorridos na África do Sul. 

Na região da América Latina e Caribe, o Equador se destaca como o país de maior documentação de casos dessa natureza, segundo dados produzidos pelas organizações da sociedade civil que têm fomentado o debate público e atuado no enfrentamento da problemática em âmbito nacional e internacional. Os casos deflagrados no Peru, apesar de conhecidos desde 2005, até 2015 não eram documentados e, tampouco, alcançavam os canais formais de denúncia, de acordo com as observações da organização Estudo para a Defesa dos Direitos da Mulher (Demus).

No Brasil, apesar do aperfeiçoamento dos instrumentos de notificação de violência, no âmbito dos serviços de saúde e de segurança pública, o quadro de escassa informação estatística sobre o estupro “corretivo” pouco se alterou. Em outubro de 2014, a versão 5.1 da Ficha de Notificação de Violências Interpessoais ou Autoprovocadas foi lançada, na Saúde, com incrementos que tornavam possível identificar o diferencial “corretivo” nas violações sexuais.. Isso porque o modelo destinou campos à coleta de dados sobre a população LGBTQIA+, tais como: nome social; orientação sexual (hetero, homo ou bissexual); identidade de gênero (travesti, mulher trans, homem trans); ciclo da vida do provável agressor e motivação da violência, com item preciso para identificar a homofobia/lesbofobia/transfobia.

Na área da segurança pública, o estado do Rio de Janeiro que, de forma pioneira, em 2009, havia destinado um campo, nos boletins policiais, para registrar a motivação homofóbica dos delitos, ampliou, em 2018, o rol de classificações do instrumento, que passou a incluir lesbofobia, transfobia e xenofobia, permitindo assim a apuração mais precisa da população e dos direitos humanos que estão sendo violados em cada caso. 

Apesar dos esforços e avanços, ainda existem barreiras consideráveis para acessar os dados da segurança pública. O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) não publica os dados desagregados de violência sexual com a motivação lgbtfóbica. Os campos incrementados nos registros de ocorrência não foram incorporados aos relatórios estatísticos de violência contra a mulher, tampouco àqueles dedicados às violências LGBTfóbicas, fator que condiciona o impacto de seus efeitos no contexto público. 

Outro ponto que merece destaque é que, até 2016, apenas uma pequena parcela dos estados havia atualizado o boletim de ocorrência para colher informações sobre a orientação sexual, identidade de gênero e nome social, além da motivação presumida do delito. Dessa forma, embora o Sistema Nacional de informação de Segurança Pública (SINESP) reserve campos para especificação do gênero e sexualidade, a falta de uniformidade dos boletins de ocorrência e seu devido preenchimento no âmbito dos estados, obsta a possibilidade de um dimensionamento mais consistente das violências sofridas pela população LGBTQIA+.

Importa destacar a atuação das organizações da sociedade civil na produção de dados recentes sobre o assunto. Segundo o Lesbocenso, uma pesquisa realizada pela Liga Brasileira de Lésbicas e pelo Coturno de Vênus do Distrito Federal, 24,76% das 22 mil mulheres lésbicas que participaram do levantamento, em 2022, declaram ter sofrido estupro, tendo sido 75,13% deles cometidos por pessoas conhecidas. Outra iniciativa inédita foi Mapeamento Sociocultural e Afetivo de Lésbicas e Mulheres Bissexuais de Favelas, realizado pela Coletiva Resistência Lésbica da Maré, em parceria com a Universidade Federal Fluminense, em 2019.

Quais são os principais alvos?

Originalmente, o emprego do termo estupro “corretivo” aparecia circunscrito às mulheres lésbicas, bissexuais e aos homens trans, que se destacam como as principais vítimas desse tipo de violência. Progressivamente, os relatos e dados coletados por organizações da sociedade civil e organismos internacionais passaram a atestar que os riscos de sofrer uma violação “corretiva” se estendem às demais identidades da comunidade LGBTQIA+. A questão racial é outro fator relevante. As pesquisas sobre violência sexual, no Brasil, apontam as mulheres negras como as principais vítimas de violação, o que torna plausível suspeitar de que sejam elas também as mais afetadas pelo estupro “corretivo”. É com base em dados que podemos verificar essa e outras hipóteses, avaliar de que forma o crime alcança e impacta cada grupo.

Por que o estupro corretivo justifica uma pena maior em casos de estupro?

O estupro corretivo integra o lento processo de visibilização e especificação de violências sexuais no campo social e jurídico, no curso do qual as proteções tecidas são reforçadas para responder às discriminações específicas que expõem cada grupo a riscos e violências amplificadas, de natureza e gravidade singular. Identificar o preconceito que motiva o crime e responsabilizar os autores são pontos cruciais para promoção da justiça e contenção dos crimes de ódio. O enfrentamento de problemas sociais exige, contudo, estratégias amplas, capazes de contemplar iniciativas de prevenção do crime, atenção e reparação às vítimas.

Na sua visão, o Estado brasileiro já avançou em reconhecer e registrar esse crime?

Embora a lei nº13.718/18 e a inclusão de campos pertinentes às ocorrências de estupros “corretivos”, nos instrumentos de registro, na área de saúde e segurança pública, representem passos substanciais no enfrentamento do crime, os avanços têm se mostrado tímidos e lentos. O reconhecimento da violência pelo Estado é indispensável para o seu enfrentamento e, nesse sentido, a lei é parte da solução, na medida em que orienta e contribui para modular comportamentos, afirma valores e constitui instrumento para responsabilização. 

Houve um avanço simbólico e instrutivo com a nova lei. O crime tem sido mais discutido, passou a ser conhecido pelos operadores, estudantes de Direito e o termo está se popularizando. Por outro lado, cabe frisar que o concreto reconhecimento legal se encontra atrelado à acuidade no registro, à investigação policial, ao devido enquadramento do crime, dentre muitos outros elementos. 

A resistência no preenchimento do campo, a falta de transparência e publicização dos dados acerca dos “estupros corretivos” se contrastam com a capacidade administrativa do país, o que finda por demonstrar o desinteresse do Estado em dar o passo seguinte na consolidação das proteções e cidadania a esse grupo social.

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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