A Rede de Estudantes Trans e Travestis da UFSC (RedeTrans UFSC), em trabalho realizado com a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (Proafe), no emblemático último dia 8 de agosto, aprovou junto ao Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina, uma Resolução Normativa de Ações Afirmativas voltada para o acesso, concursos e permanência estudantil da população trans e travesti.

Com o efeito de propor reflexões acerca das características sociais, políticas e econômicas da realidade trans brasileira, falamos de um país que por mais de 14 anos é o mais violento do mundo para as pessoas trans, que possuem mínima participação no mercado formal de trabalho. Com o avanço do neoliberalismo desde o impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil sofre uma conjuntura política atravessada também pelo avanço do conservadorismo, amparado por ideologias trans-excludentes, correlacionando vivências trans com violências sexuais.


É neste cenário, que pessoas trans e travestis (re)existem, (re)significando suas trajetórias, mesmo em ampla diminuição e retrocesso das políticas sociais, e a diminuição da proteção social (aqui faço uma menção principalmente à Emenda Constitucional 95, o Teto de Gastos do Governo Federal, e as Reformas Trabalhista e Previdenciária que retiraram direitos e promoveram o agravo da pobreza no Brasil).

Nesse sentido, a UFSC, através de diversos enfrentamentos, entra na contramão do cenário nacional, proporcionando ações de combate à transfobia e de afirmação da presença trans na sociedade, através da educação como o projeto transformador da sociedade e da realidade vivida de corpos trans.

Sendo uma reivindicação de longa data, a presença de corpos trans na universidade é algo recente. Segundo informações da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), em um universo de 420 mil estudantes de universidades federais, apenas 0,03% declararam ser trans ou travesti.

Um dos objetivos do grupo de trabalho para a construção da política de acesso e permanência trans e travesti da UFSC, é que esta sirva como instrumento para outras universidades e institutos federais adotarem também políticas trans-inclusivas. A aprovação desta política, para além de garantir o acesso, a permanência estudantil, e vagas em concursos públicos da universidade para travestis e transexuais, garante o reconhecimento pleno dos direitos fundados na Constituição de 1988 e a efetivação do Estado Social. Nesse sentido, a Resolução Normativa está colaborando com o intuito de realizar uma justiça distributiva e de uma justiça compensatória pela exposição e pela alta vulnerabilidade social e exclusão social à qual, notadamente, a população transexual e travesti está sujeita.

No Brasil, atualmente apenas três universidades federais possuem políticas específicas para a permanência de pessoas trans e travestis: Universidade Federal do ABC, Universidade Federal do Sul da Bahia e Universidade do Estado da Bahia. Com a aprovação da Resolução na UFSC, a universidade amplia as ações afirmativas destinando 2% das vagas para pessoas trans e travestis, e assegura a participação política, respeitando a diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero prevista nos Princípio Adicionais de Yogyakarta (2017), e nas Resoluções das Organizações dos Estados Americanos. Para concorrer às vagas, as/os estudantes terão que participar de bancas de validação.

Para além, a política em si traz aspectos importantes, como a definição e especificação da transfobia, denunciando através de tipologias as práticas trans-excludentes, algo muito importante em um contexto institucional como a UFSC.

Os Princípios Adicionais de Yogyakarta (2017), construídos por pesquisadores de mais de 25 países e que visam à construção de aparatos e normas jurídicas internacionais dos direitos humanos, sexuais e de identidade de gênero, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) são documentos importantes no debate de gênero, mas ainda pouco utilizados por pesquisadoras/es no Brasil diante do potencial de otimizar as legislações. 

Infelizmente nosso sistema jurídico e político brasileiro pouco produziu em termos de legislações voltadas para pessoas trans, como mencionei anteriormente. Estamos no período da história em que há uma crescente de propostas de lei contra pessoas trans, necessitamos urgentemente da defesa do Estado Democrático de Direito, da defesa intransigente dos direitos humanos, promoção e participação de igualdades nas escolhas públicas. Nunca se fez tão necessária a participação da sociedade nas decisões do governo.

A PROAFE, a partir da Resolução Normativa aprovada, construirá resultados significativos para o acesso, permanência e mercado de trabalho de pessoas transexuais e travestis.

O desafio de propor e aprovar uma Resolução específica para pessoas trans e travesti, considerando vários aspectos do ingresso e permanência estudantil, é uma tarefa que exigirá uma multiplicidade de enfrentamentos necessários para Santa Catarina.

Novos corpos, novas pessoas frequentando espaços até então não ocupados. Se faz necessário a construção de uma rede de serviços para a superação dos preconceitos e das dificuldades travadas com a ordem social (sociedade binária) imposta pelo sistema capitalista.

Destaco ainda que ao propor inicialmente uma política de acesso à universidade, a UFSC em si mobilizou a organização civil de estudantes trans e travestis, criando em paralelo um movimento social organizado que não aceitou somente o acesso da universidade, mas também políticas de permanência e do acesso ao mercado de trabalho.

A UFSC em parceria com a Redetrans, ao aprovar uma política específica de acesso e permanência estudantil da população trans e travesti, mesmo que em flutuação política, principalmente no Estado de SC, oxigena ações de enfrentamento à transfobia, realizando preceitos para a dignidade humana em diferentes níveis, questionando fissuras existentes na sociedade e fortalecendo a democracia e o Estado de Direito.

Com os enfrentamentos realizados, o movimento organizado de pessoas trans e travestis  promove diversas dinâmicas e articulações para traçar estratégias e trocas de informações para o fomento de suas atividades acontecerem, surgindo, portanto, a busca por justiça social.

Esse protagonismo, alicerçado na efetivação da legislação brasileira, e produzindo avanços nas mais diversas áreas, influencia na ressignificação e importância da luta trans e travesti, mesmo a sociedade cisgênera assujeitando a referida população nos espaços de subalternidade, de humilhação e de exclusão social.

A presença de corpos trans e travestis nas universidades rompe com os estereótipos produzidos pela “cis-ência”, produzindo novas formas de saber/estar/pertencer da população trans e travesti. Tudo o que foi produzido pela cisgeneridade será visto e revisto, decodificando as práticas transfóbicas produzidas por pessoas cisgêneras.

A UFSC, abriu diversas possibilidades da população trans e travesti produzir ciência epistemológica e de justiça social e cognitiva. Por décadas, a presença de corpos não normativos foi remetida às esquinas e aos cemitérios brasileiros, sendo a academia um espaço negado. A circulação de pessoas trans e travestis nas universidades, nas salas de aula como alunas/os e docentes, realizará uma rachadura nos muros invisíveis das universidades, das cidades, dos territórios, refutando teorias, produzindo o saber.

Sabemos que as leis por si só não mudam a realidade, mas facilitam a continuidade das lutas.

De agora, de corpos pesquisados para corpos que produzem ciência.

Referências

GOMES, Bianca; FAHEINA, Caio; KER, João. No ensino superior, o espelho da exclusão de pessoas trans. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 2019. Disponível em: https://arte.estadao.com.br/focas/capitu/materia/no-ensino-superior-o-espelho-da-exclusao-depessoas-trans. Acesso em: 09/08/2023.

INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Situação dos direitos humanos no Brasil: Aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 12 de fevereiro de 2021. Disponível em: A CIDH publica seu relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil e destaca os impactos dos processos históricos de discriminação e desigualdade estrutural no país (oas.org). Acesso em: 09/08/2023.

RIBEIRO, Jheniffer; NASCIMENTO, Vivian. Apenas cinco universidades públicas destinam vagas a pessoas trans. Revista Gênero e Número, 20 de abril de 2023. Disponível em: Gênero e Número | Apenas cinco universidades públicas destinam vagas a pessoas trans (generonumero.media). Acesso em: 09/08/2023.

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  • Mariana Franco

    Mariana Franco é formanda em Serviço Social pela UFSC, Colunista no Portal Catarinas, Pesquisadora em Direitos Humanos n...

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