Há pelo menos três décadas, a pedagoga Jeruse Romão, 63 anos, reconhece a importância de Antonieta de Barros em sua vida. Inicialmente, isso se deu através do seu ativismo político e social. Nos últimos nove anos, Jeruse mergulhou na construção de biografias sobre a catarinense que esteve entre as três primeiras deputadas eleitas no país, sendo a única negra, em 1934. 

O seu segundo livro, intitulado “Antonieta de Barros: discursos, entrevistas e outros textos”, lançado neste ano, desconstrói duas visões da branquitude sobre a trajetória da parlamentar, professora e jornalista. Enquanto uma delas sugeria que Antonieta não abordara adequadamente a questão racial, a outra afirmava que ela não se empenhara na luta pelos direitos das mulheres.

As fontes incluem duas correspondências entre Antonieta e Bertha Lutz, fundadora da Frente Brasileira pelo Progresso Feminino, evidenciando o contato com o movimento feminista nacional.

Se no primeiro livro, “Antonieta de Barros: Professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil”, Jeruse apresentou a deputada estadual sob a sua perspectiva, nesta sequência, a autora explora a visão da própria Antonieta, analisando os textos que ela deixou.

Protagonista e autora têm trajetórias semelhantes: mulheres, negras, professoras, ativistas, atuantes na política e escritoras, referências na educação catarinense e na luta por melhores condições de vida. A afinidade é tão forte que Jeruse quis “escrever uma Antonieta por dentro”.

Em 1948, Antonieta criou o Dia do Professor em Santa Catarina, quinze anos antes da data ser reconhecida e tornar-se feriado escolar nacional, contribuindo para sua memória e legado na educação. O trabalho de Jeruse tornou essa história mais conhecida, fortalecendo a autoestima da população catarinense. 

Na entrevista, Jeruse compartilha uma visão íntima da vida de Antonieta e leva-nos pela complexa jornada de sua pesquisa e da própria protagonista. Enquanto Antonieta enfrentava machismo, fascismo e uma sociedade conservadora, Jeruse lida com esses desafios, destacando a falta de investimento local em sua pesquisa e o racismo epistêmico. 

Atualmente em Salvador, a professora aposentada continua sua investigação, levando Antonieta aos espaços que ocupa. Confira a entrevista completa.

Catarinas: Quem é Jeruse Romão, como você prefere ser identificada e denominada?

Jeruse Romão: Eu sou uma mulher negra, nascida em Florianópolis em 1960. Minha família é toda catarinense. Em Santa Catarina, isso tinha um significado especial: a resistência do povo negro. Esse território se diz branco, mas a gente sabe que tem parte indígena e negra-africana. Aqui em Salvador, isso se desdobra. Primeiro, as pessoas identificam meu sotaque como carioca. Segundo, quando digo que sou catarinense, as pessoas estranham. Não é sempre, mas às vezes ouço: “Mas você é de lá mesmo ou foi para lá?”. Isso é uma narrativa de invisibilidade, tanto de dentro quanto de fora.

Eu nasci com um olhar aguçado para as questões sociais. Desde menina, fui atravessada por escolhas políticas, apesar de só conhecer esse conceito quando adulta. Eu me formei no Curso Normal e depois cursei Pedagogia. Em 1983, iniciei o ativismo no movimento negro. Fui professora, assessora parlamentar de seis parlamentares de esquerda em Santa Catarina, participei de grupos de pesquisa de universidades, fui presidenta do Fórum de Educação das Relações Étnicos Raciais e dirigi algumas organizações. Sou fundadora da Mudiá, uma coletiva de mulheres lésbicas, e da escola de samba Dascuia. 

Experimentei muitas coisas em Santa Catarina e escrevi. As duas publicações da Antonieta não são as minhas primeiras. Antes tiveram outras com função escolar, didática, pedagógica. Agora estou escrevendo no ramo da literatura. Sou mãe da Zânia, que é doutoranda na Universidade Federal (UFBA), e do Kaiodê, que é formado em Ciência da Computação e mora em Florianópolis.

Catarinas: Há quantos anos você estuda Antonieta o que te motiva a pesquisar a vida e o legado da primeira deputada catarinense?

Jeruse Romão: O Ensino Normal e as professoras negras na educação são um campo muito interessante na História da Educação de Santa Catarina. A forma como as mulheres transitam no pós-abolição e nos lugares de trabalho ajuda a entender as primeiras gerações das professoras negras do estado. Essas professoras inauguram um espaço para si e para outras, fortalecendo uma rede de negros na educação.

Da mesma forma que a minha mãe inspirou pessoas depois dela, a minha mãe foi muito inspirada por Antonieta e por Eleonor de Barros. Essa admiração de alguns homens e mulheres negras no âmbito da família negra das comunidades era muito presente em todos os contextos. Do ponto de vista religioso, tem a mãe Malvina, na educação tem Antonieta, Venância e o professor Lucas. Tem o major Ildefonso Juvenal nas forças de segurança públicas. Minha mãe era da educação. Minha tia Valdionira também, além de ser militante ativa no feminismo negro. E Antonieta era o nome de uma das minhas irmãs. 

Logo que iniciei na militância do movimento negro, Antonieta voltou como um tema importante. Infelizmente, não aprendemos sobre ela na escola, nem no magistério, nem na pedagogia. Então, fui me reaproximando dela a partir do movimento negro. Essa militância me levou a assistir a fundação da Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros. Quando fui assessora do vereador Márcio de Souza, foi criada a medalha Antonieta de Barros na Câmara de vereadores. Assisti à sua homenagem na Assembleia Legislativa, a defesa pelo território da escola, a defesa pela sua memória.

Olhando para os meus manuais e escritos, ela está há pelo menos trinta anos no meu universo, muito mais no contexto do ativismo político, do que na escrita de livros. Se considerarmos que escrevi a minuta da justificativa da lei da criação da medalha, onde pesquisei, estudei e conversei com pessoas. Já a construção da biografia de Antonieta é um processo dos últimos nove anos.

O que tínhamos acesso ainda era uma visão muito centrada na perspectiva das pessoas brancas. O que não é ruim de todo, porque temos trabalhos belíssimos e maravilhosos sobre Antonieta, mas um olhar de uma mulher negra para outra mulher negra alcança as dinâmicas negras pelas vivências, pelas experiências, pela história familiar, pela identidade cultural e racial. Eu quis escrever uma Antonieta por dentro.

Jeruse Romão desconstrói narrativas da branquitude sobre Antonieta de Barros
Jeruse Romão no lançamento da sua segunda publicação sobre Antonieta de Barros. Foto: Rony Costa.

Catarinas: No lançamento do primeiro livro você falou em desconstruir a imagem da Antonieta até então conhecida, e que um dos principais méritos daquela publicação era a sua humanização. Este segundo lançamento, por sua vez, desconstrói algumas narrativas da branquitude sobre a Antonieta. Quais são elas?

Jeruse Romão: O primeiro livro de Antonieta de Barros reflete minha perspectiva e olhar. No segundo livro, explorei a visão da própria Antonieta, analisando seus textos, movimentos, pautas e os conceitos que estruturam o seu pensamento. Na biografia, eu incluí apenas partes de seus textos, mas eu desejava publicá-los na íntegra, pois ao escolher uma parte, inevitavelmente deixamos de lado outras igualmente importantes. 

É um equívoco comum acreditar que Antonieta não abordou a questão racial. As pessoas costumam enfatizar que Antonieta era negra, que ela não havia flexionado raça como parte de sua identidade. O que vejo nos seus textos revela o contrário.

Antonieta se dizia negra, reconhecia o racismo e denunciava os sistemas de segregação racial, não apenas no Brasil. Em diversas ocasiões, ao falar sobre a civilização da época, ela lamentava a discriminação racial.

Quando foi atacada por um deputado da Assembleia Legislativa em 1951 no texto “intriga barata de senzala”, Antonieta respondeu questionando se as palavras dele eram proferidas nos Estados Unidos ou na Alemanha de Hitler. Isso evidencia sua crítica aos sistemas de segregação racial nos Estados Unidos e ao nazismo na Alemanha, que também se baseava na raça. Ela enfatizou que não se sentia ofendida ao ser chamada de negra, mas sim se a chamassem de branca. Foi no mínimo desatento afirmar que ela não flexionou a raça.

Quando a Lei Afonso Arinos foi sancionada no Brasil, ela publicou uma crônica sobre. A lei criminaliza atos de preconceito racial, ainda, mas não usava a categoria racismo. Depois eu localizei em pelo menos dois discursos de paraninfa, ela dizendo aos formandos: não deixem que raça, condição social e religião sejam impedimentos para a trajetória dos estudantes que estarão sendo ensinados por vocês. 

O segundo livro, não por acaso, é apresentado simbolicamente por Ildelfonso Juvenal, que era um intelectual negro contemporâneo dela. Ele está apresentando alguns candidatos para eleição de 1947 e, dentre os candidatos, apresenta a professora Antonieta de Barros. Ele diz: “uma negra que orgulha a sua raça”, ou seja, ela era vista pelos negros como uma referência. Se lidos com atenção, a gente vai interpretar ela tratando de raça nos seus textos. Não com as categorias que a gente queria encontrar, mas ela está ali pautando. 

Outro campo que se dizia que ela não tinha pautado, era o do direito das mulheres. Antonieta existiu antes e depois dos direitos políticos das mulheres. Ela viveu os dois mundos. O debate sobre direito das mulheres é ainda mais explícito nos seus textos. 

Desde sua juventude, em crônicas de 1928, ela abordava questões feministas, como no texto “Um homem como todos os outros”. Junto com Maura de Sena Pereira, ela pautou o feminismo na imprensa catarinense. Outras também pautaram, mas elas estavam mais sintonizadas com o movimento nacional e internacional. Ela deu notícias para os leitores e as leitoras sobre os avanços desses movimentos.

Antonieta defendia a ideia de que o lugar das mulheres era onde elas quisessem e também lutou por mais anos de estudos para as mulheres do estado.

Sua preocupação não se limitava à política, estendia-se ao acesso à educação e aos direitos trabalhistas. Como deputada, ela trabalhou para garantir a previdência para professoras de escolas particulares, reconhecendo a necessidade de prever aposentadoria para essas mulheres, muitas das quais eram solteiras e pobres. O magistério tinha legislações muito rígidas para as mulheres, dentre elas a proibição de contrair casamento. Em um tempo em que grande parte da população feminina estava atrelada a uma vida social vinculada ao casamento, um conjunto muito significativo de professoras morriam solteiras. Antonieta e a irmã não contraíram casamento. 

Antonieta também se destacou por seu apoio a uma imprensa livre e democrática. Ela fazia parte do grupo de deputados que garantiram assistência à imprensa e integrou a Associação Catarinense de Imprensa. Ela enfatizava que não existia sociedade sem imprensa e a ética que os jornalistas deveriam seguir, evitando bajulações, sem rastejar ou enxovalhar memórias, e respeitando a coletividade e os indivíduos. Sua perspectiva progressista é vanguardista, considerando que permanece relevante nos dias de hoje, especialmente diante do cenário de fake news e do comportamento de alguns órgãos de imprensa.

Catarinas: No início deste ano, Antonieta de Barros teve o seu nome inscrito no livro de Heróis e Heroínas da Pátria. A sua pesquisa, os seus livros e o seu trabalho incansável para visibilizar a sua história sem dúvidas foram essenciais para esse reconhecimento. Como você avalia o impacto das suas biografias na construção do legado da Antonieta de Barros?

Jeruse Romão: Temos pesquisas em universidades, temos o documentário da Flávia Person sobre a Antonieta que foi e continua sendo muito importante, que deu visibilidade para Antonieta no universo da arte e do cinema, inclusive premiado em festivais. Enquanto ao livro, ele teve o efeito de popularizá-la. Minha identificação com Antonieta, como mulher negra, ativista do movimento negro, educadora e com algumas semelhanças em nossos trajetos, como o fato de ambas termos sido normalistas e pedagogas, professoras da Escola Normal, foi fundamental para isso. 

Hoje em dia, a publicação no Brasil, especialmente no modelo de produção independente, é cara. Houve sugestões de criar uma versão em e-book, mas recusei, pois compartilho da paixão de Antonieta pelos livros. Ela é uma defensora da leitura, ela dizia que era um desastre privar as crianças pobres dos livros. Ela defendia bibliotecas escolares fortes e pujantes, dizia que as crianças não tinham que ter acesso só ao livro didático. O livro não foi concebido com objetivo comercial. 

Eu estimulo a criação de bibliotecas em qualquer lugar que eu vá. Antonieta e eu compartilhamos dessa visão, eu queria olhar para uma estante e ver o livro da Antonieta de Barros lá. O livro conduziu o processo para que ela se tornasse Doutora Honoris Causa na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), além de inspirar a defesa do patrimônio da Escola Antonieta de Barros na cidade. Ele também estimulou a criação de espaços culturais e fortaleceu a autoestima tanto da população negra quanto branca.

Meu objetivo, mencionado na primeira entrevista ao Catarinas, era humanizar Antonieta, e acredito que o tenha alcançado com sucesso. As pessoas sentem orgulho e honra em associar o nome de Antonieta de Barros a eventos e organizações. Ela passou a ser uma referência, o livro proporcionou uma profundidade que torna a vida dela inquestionável, revelando uma mulher à frente de seu tempo.

Não posso afirmar as implicações diretas do livro ao fato de ela ter se tornado heroína nacional, mas acredito que o mais importante seja o simbolismo. Significa dar visibilidade aos negros de Santa Catarina. Muitas vezes, as pessoas direcionam seu olhar para o Sudeste, Norte e Nordeste, negligenciando os negros da região Sul. São muitos nomes de negros importantíssimos na região, mas falamos deles com muita dificuldade, porque não há um investimento local e não conseguimos furar essa bolha. 

Antonieta merece todas essas referências. Recentemente, a vice-reitora da UFSC, professora Joana Célia, presenteou o Papa com a biografia de Antonieta de Barros, um gesto emocionante, dada a forte ligação da professora com a fé católica.

A energia de Antonieta transcende e continua a impactar, ela diz respeito às mulheres negras, aos trabalhadores negros e promove o que ela entende como valores civilizatórios de pacifismo e não violência. Ela era uma humanista que enfatizava o respeito, a ética, o amor e a luta em seu discurso.

Vice-reitora da UFSC entrega biografia de Antonieta de Barros ao Papa Francisco. Foto: Arquivo Pessoal.

Catarinas: Quais os principais desafios ao investigar e difundir as histórias, memórias e narrativas sobre a Antonieta? 

Jeruse Romão: Primeiro, a falta de investimento local. A Antonieta é uma figura incontornável para a história de Santa Catarina, não apenas para os negros ou mulheres. Ela é uma figura incontornável para entender as mulheres na política, considerando que ela está no grupo das três primeiras deputadas eleitas no Brasil. Além disso, ela também desempenhou um papel significativo na defesa da responsabilidade do Estado em garantir direitos para os mais pobres e desassistidos. Ela sempre defendeu que a responsabilidade da educação para os pobres era dos estados. Trouxe a pauta de direitos o tempo inteiro. Ela sempre argumentou que a responsabilidade pela educação dos pobres era dos estados. Esse conceito atravessou a sua vida e continua relevante. 

Em fevereiro, eu me aposentei como professora e vim para Salvador. Sustento este projeto e invisto em uma pesquisa sobre a ascendência baiana de Antonieta de Barros, já que o seu pai era baiano. Não é um trabalho fácil, especialmente porque não sou daqui, demora um pouco mais para as coisas acontecerem. Trabalhar em torno de um nome pioneiro como Antonieta, que acredito ser relevante não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina, é desafiador, principalmente por estar em uma condição muito fragilizada de continuidade da pesquisa. Mas eu sei que vou entregar um trabalho valioso para a sociedade catarinense e para a baiana.

Estou divulgando Antonieta e ganhando pequenos espaços aqui em Salvador. Lancei o livro no Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos (Cepaia), da Universidade do Estado da Bahia, e tenho planos para participar de eventos relacionados ao mês da Consciência Negra e ao Museu Afro. Espero ter condição de participar, porque não tenho investimento para isso. As vendas de Antonieta em Santa Catarina praticamente cessaram desde minha mudança para Salvador.

Tenho uma rede muito importante de apoiadores, incluindo professores e professoras, sindicatos, organizações que investiram recursos através de empréstimo ou colaboração. Os custos gráficos, de revisão e edição são caros, mas contamos com a colaboração de pessoas e agências que aderem politicamente a esse trabalho. 

Meu sonho é que Antonieta seja traduzido para outras línguas, para que outras mulheres negras possam ler. Para que o mulherismo negro possa ler fora do Brasil, porque ela é muito inspiradora na luta das mulheres negras em qualquer lugar do mundo.

Catarinas: Recentemente você fez uma denúncia de racismo epistêmico nas suas redes sociais. Você gostaria de comentar o que aconteceu e quais foram as consequências quando você expôs essa violência contra você e o seu trabalho?

Jeruse Romão: Nós falamos de racismo no Brasil, mas precisamos tipificá-lo.  Conhecemos racismo cultural, recreativo, estrutural, institucional, temos também o racismo epistêmico e o patrimonial. Eu entendo que uma obra é um patrimônio de uma pessoa, embora o seu conteúdo seja público, ele envolve uma trajetória de pesquisa dedicada e atenciosa de alguém. A forma como agem em torno disso é como se estivessem voltando ao tempo da escravidão, ao saque das coisas dos pretos. Há muita apropriação. 

Não tem problema nenhum as pessoas brancas gostarem das coisas que os negros fazem. O problema é querer tirar o protagonismo dessas pessoas, a autoria delas. Quando eu falei sobre isso nas redes, veio uma avalanche de gente preta reclamando disso. Gente do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Bahia, de todas as áreas. 

O que aconteceu é que eu cheguei no limite. Foram duas situações, a de um filme e de uma genealogia organizada a partir do meu livro sem citação de fonte. O livro traz conteúdos inéditos. Eu fui em fontes ainda não publicadas anteriormente. Quando alguém utiliza dessa fonte depois de 2021 e não cita o meu livro, não tem como dissociar. 

Eu me senti muito violentada. Essa visão brancocêntrica de poder é violenta na medida em que exerce os seus privilégios, mas não somente. Ela exercita a dominação. Eu não vou ser mais dominada por ninguém, porque eu não nasci nesse contexto. Os meus ancestrais que nasceram, lutaram para não serem dominados. Não serei dominada com pessoas brancas, que não entendem que não deve haver hierarquização epistemológica. Tampouco preciso que uma pessoa branca valide o que eu escrevi. 

Isso é o que a Antonieta passou na vida. Quando as pessoas falavam sobre ela, diziam que ela só era política, porque contava com o apoio de pessoas brancas. Ela não se colocava como uma figura secundária em nada. Esteve na direção de quase tudo daquilo que ela participou, ou seja, ela sempre se colocou como uma mulher protagonista. Se essa mulher passou tudo isso no tempo dela e teve coragem, não sou eu que vou ficar me submetendo a isso. Muito menos em nome dela. 

Tenho a sorte de ter amigos na área do direito, até por conta do meu ativismo em defesa de direitos humanos, que foi a minha pauta durante muito tempo na assessoria parlamentar. Essa conversa acabou sendo reorganizada a partir de uma abordagem jurídica para o caso do filme, e o outro imediatamente fez a correção na genealogia. Eu pensei muito se faria ou não a denúncia, fiz pelo meu papel político de ser uma liderança do movimento negro. Eu fiz isso em nome de pessoas negras que não podem fazer.

Jeruse em evento de homenagem à Antonieta na Assembleia do Estado de Santa Catarina. Foto: Rony Costa.

Catarinas: Você gostaria de acrescentar algo antes de encerrarmos a entrevista? 

Jeruse Romão: Nessa segunda publicação, Antonieta, nascida em 1901, apenas 13 anos após a abolição da escravatura, filha de pais que foram escravizados, emerge como uma figura que o movimento feminista precisa se aproximar mais.

Um dos trabalhos que eu trouxe como fonte primária são duas correspondências dela para Bertha Lutz, encontradas no acervo da Frente Brasileira pelo Progresso Feminino, na Biblioteca Nacional. Essas correspondências são do contexto catarinense da década de 1930, quando as mulheres estavam conquistando seus direitos políticos, embora ainda não houvesse um movimento organizado.

A Frente delegou uma companheira para ir a Santa Catarina conversar com a deputada Antonieta de Barros para constituir uma filial da organização nacional. Através das atas das reuniões, fica estabelecido que Antonieta pautou a luta das mulheres no tempo dela, com as condições que ela tinha.

Algumas biógrafas e estudiosas de Bertha Lutz a chamam de “feminista comportada”. No caso de Antonieta, não acho que ela fosse uma “feminista comportada”.

Ela se movimentava com as condições que tinha numa sociedade extremamente conservadora, extremamente fascista. Ela tinha um domínio muito eficiente da cena política, sendo única no parlamento. Os seus projetos dependiam da construção de alianças com homens para serem aprovados. Ela tinha uma perspectiva, não sei se seria feminista, às vezes eu considero mais mulherista. Era muito tática.

Depois que eu escrevi o livro, a minha admiração por ela foi dobrada. Ela soube lidar com essa cena política: masculina, machista, enfrentando retaliações da oposição e dos movimentos conservadores, incluindo mulheres e membros da igreja Católica. Ela também teve que enfrentar questões morais como uma mulher solteira e pobre, criada por uma mãe em uma família muito simples. A mãe lavava para fora para que as filhas pudessem estudar, esse foi o projeto dela. Catarina era uma estrategista na formação das filhas.

Um desafio absurdo é a falta de acervo sobre a Antonieta. Enquanto outros contemporâneos tiveram seus documentos preservados, Antonieta carece de um legado documental. Os meus livros têm prestado um papel importante de inventariar fontes sobre ela. Somamos 400 e poucas fontes. Nós demoramos 120 anos para descobrir coisas inéditas sobre ela, quem sabe daqui a pouco novos conteúdos surgem?

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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