A campanha Nem Presa Nem Morta nasceu em 2018, às vésperas da audiência pública que discutiria a descriminalização da interrupção da gravidez até a 12ª semana, por livre vontade da mulher, no Supremo Tribunal Federal (STF).

Entre suas fundadoras estão Laura Molinari e Angela Freitas, ativistas feministas que, em diálogo com outras organizações do campo – entre elas Portal Catarinas, Grupo Curumim, Coletivo Margarida Alves, Criola, Cfemea e Anis –, identificaram a necessidade de acelerar, tornar acessível e qualificar o debate sobre aborto no Brasil. 

O primeiro passo foi colaborar para planejar e divulgar o Festival pela Vida das Mulheres, que aconteceu em Brasília, nos dias da audiência, aproximando a mobilização política em torno da descriminalização do aborto da população em geral, que pôde curtir dois dias de manifestações artísticas e informação. Caravanas de todo o país tomaram a capital federal para celebrar a cultura aborteira latino-americana.

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Festival Pela Vida das Mulheres, 2018, Brasília (DF) | Crédito: reprodução.

Passados os eventos, Nem Presa Nem Morta havia ganhado tanta popularidade que a campanha foi mantida, mesmo sob a pressão do governo Bolsonaro e dispondo de pouco recurso. Ano passado, com o apoio da Anis, o coletivo virou organização da sociedade civil, legalmente constituída às vésperas do julgamento da ADPF 442.

Em entrevista ao Portal Catarinas, Laura Molinari conta que agora a organização tem uma estrutura que lhe permite monitorar e incidir sobre o debate público em torno da descriminalização com maior desenvoltura, e convida feministas e apoiadores a conhecerem e multiplicarem a campanha Nem Presa Nem Morta.

Jess Carvalho: Quem teve a ideia de criar a Nem Presa Nem Morta? Pode nos contar sobre o contexto de fundação da organização?

Laura Molinari: Essa ideia surgiu no contexto de uma reunião de várias organizações feministas que estavam pensando estratégias para incidir na audiência pública da ADPF 442. A audiência já estava agendada, as organizações já estavam mobilizadas desde 2017 para entrar com um pedido de amicus curiae e fazer parte da ação, e aí, em 2018, quando marcaram a audiência, a gente pensou em uma estratégia para levar essa discussão também para fora do STF. Então, tivemos a ideia de fazer um festival no momento da audiência.

Especialmente pensando como é que a gente podia não só ter um momento nosso, que a gente pudesse levar os nossos argumentos para a ação, trazendo as propostas das organizações feministas, de direitos humanos, de saúde, para fora, mas também fazer uma atividade que fosse mais lúdica e que ajudasse a mobilizar pessoas que, talvez, se tivesse só uma parte informativa, não se interessariam pelo que estava acontecendo ali. Foram dois dias de festival com oficinas, exposições artíticas e música para a gente celebrar e ajudar a mudar a imagem que existe quando se fala de aborto, que é sempre muito pesada, a luta, a dor…

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Festival Pela Vida das Mulheres, 2018, Brasília (DF) | Crédito: reprodução.

Quando pensamos no festival, a gente pensou que seria importante criar uma estratégia de mobilização pública que também fizesse esse debate para além do que ia rolar em Brasília, no festival e no STF, mas que ajudasse a mobilizar e a chamar pro festival de maneira segura. Como era ano eleitoral, com a questão do Bolsonaro, a gente tinha receio, não sabíamos se teria uma reatividade política. Se o Bolsonaro ganhasse, como ganhou, se ia sobrar espaço para organizações de mulheres, para pensar o direito ao aborto, então também foi estratégico ter uma identidade coletiva que pudesse representar essa campanha pública de mobilização, foi pensando em proteger o nosso campo, as ativistas. A ideia era que a campanha reverberasse e que fosse reproduzido o que as organizações estavam fazendo, mas entendendo que esse sujeito coletivo faria a disputa pública, que às vezes coloca as organizações em uma posição de insegurança. Assim surgiu a campanha. 

E o nome, como vocês pensaram?

Eu e Angela [Freitas], Paula Guimarães [diretora executiva do Catarinas] também estava nessa época, o Diego [Lôbo], que trabalhava na Global Health Strategies, que é uma consultoria que trabalha muito com saúde, comunicação, mas fundamentalmente eu e Angela pensamos sobre qual seria o nome da campanha e como a gente podia fazer para que a campanha comunicasse do que se trata a ação que estava sendo tema da audiência pública sem falar a palavra aborto, como uma maneira de a gente dialogar com outros públicos, que só de falar essa palavra se assustam, para que se pudesse criar espaços, abrir alguma oportunidade de diálogo. Queríamos transformar um pouco a linguagem, os sentimentos, o vocabulário associado a esse termo. O festival se chamava “Festival pela vida”, e “Nem Presa Nem Morta” comunica o mínimo que a gente quer.

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Festival Pela Vida das Mulheres, 2018, Brasília (DF) | Crédito: Mídia Ninja.

E a arruda, que hoje é símbolo da Nem Presa Nem Morta?

Escolhemos a arruda como símbolo porque é uma planta muito popular no Brasil para curar, para afastar o mau olhado, para afastar o baixo astral fundamentalista, rs. E também porque é uma planta considerada abortiva, tradicionalmente.

As minhas avós falavam que era pra tomar para descer a menstruação, “a regra atrasada”, então também quisemos trazer um pouco da ancestralidade dessas mulheres e de pessoas que resolveram ter controle do seu futuro, da sua própria vida, num lugar que nem sempre é tão complexo e denso como a discussão sobre aborto às vezes é tratada, como um tabu, como um estigma.

É mais simples do que isso. A nossa estratégia é de mudar e ampliar as narrativas sobre aborto. Nós vemos que esse tema, em geral, é debatido de forma a perguntar se a pessoa é a favor ou contra, se a pessoa é ou não uma assassina, mas não no lugar de debater a vida, de debater a dignidade. 

O trabalho da Nem Presa Nem Morta me lembra muito o do Abortion Dream Team, da Polônia. Vocês se inspiram na atuação de outros grupos latino-americanos? Quais?

Muito legal você falar do Abortion Dream Team porque poucas pessoas conhecem e elas são incríveis. A gente tem uma inspiração obviamente na Argentina, mas eu acho que no Brasil a gente tem um processo muito particular, pela nossa história, pelo nosso tamanho e pelas desigualdades que tomam uma proporção muito diferente de qualquer outro país da região. Tem uma coisa que nos aproxima de outros países, como a Colômbia e a Argentina, que ajudam a gente a transformar o aborto numa cultura popular, de diálogo, de trazer para a rotina das conversas, tirar o aborto do armário, né, que foi uma estratégia que elas [as argentinas] fizeram e que foi super importante para a mudança da lei, para avançar esse debate na sociedade. Mas tem uma outra questão, da nossa conjuntura particular, que a gente também se inspira nas que estão resistindo, né? Então você tem as mulheres de El Salvador, que estão resistindo a um governo autoritário, que está prendendo sem limites, que durante muitos anos manteve 17 mulheres presas por aborto, algumas por aborto espontâneo. Tem agora o caso Beatriz, que será julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Acho que tem as resistências dessa região, que conseguiu acolher as mulheres, essa tecnologia feminista que é o acompanhamento autônomo de quem faz o aborto feminista – não só na Argentina, existem grupos espalhados por toda a América Latina e Caribe que, dentro das limitações de cada legislação, estão se organizando para fazer uma outra proposta que não é pautada no poder médico, que não é pautada na indústria farmacêutica, por mais que o medicamento seja fundamental para tornar o aborto autônomo.

O aborto demanda cuidado a quem está abortando e tem suas necessidades particulares. Precisamos de acolhimento e outras questões que vão além do protocolo médico, então acho que são esses outros movimentos que trazem esse questionamento de forma mais ampla, para além da lei do aborto, inspiram muito a gente. Trazer um pouco dessa cultura aborteira, a galera que está fazendo música, que está fazendo cinema, a galera que está fazendo arte sobre aborto. Acho que isso é muito forte na região.

Ao comemorar os cinco anos da organização, no Instagram, vocês brincaram com perguntas que já devem ter respondido muitas vezes, como “distribuímos Cytotec?” e “vendemos lencinho verde?”. Na prática, como vocês atuam?

Estas são as perguntas que mais chegam pra gente nas redes sociais. A gente criou a campanha sem uma perspectiva de continuidade, mas ela deu muito certo, com apoio de atrizes, teve um apoio muito grande de pessoas que não são organizadas em nenhum movimento, mas tinham algum interesse na pauta, seja porque querem saber sobre aborto, passaram por alguma experiência pessoal, enfim, então a gente viu uma oportunidade de ter um espaço aberto para difundir informação de qualidade, cientificamente embasada, porque ficava muito restrito a um contexto de criminalização e estigma.

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Conferência Nacional de Saúde | Crédito: reprodução.

Como isso deu certo, foi para além da nossa bolha, a gente decidiu manter a campanha, mas até 2022, a gente não tinha tido reforço substancial para estruturá-la – ela era gerida por várias organizações que apostam nessa estratégia coletiva de conscientização, mas era isso, eu postava alguma coisa, às vezes a gente conseguia grana pra fazer um vídeo, ou pra ter uma designer, a gente nunca teve recurso para se estruturar, e nesse processo, agora, de estruturação, o que a gente está fazendo – eu e a Angela, as coordenadoras –, é pegar esses anos todos de mobilização e aprendizados coletivos e refletir isso na nossa estrutura.

A gente não se propõe a ser a campanha brasileira a favor da descriminalização, a nossa proposta é trabalhar a comunicação estratégica, seja para mudar as leis sobre aborto, seja para transformar o debate público sobre aborto.

O que a gente faz hoje é campanha, mas também acompanha as políticas públicas de saúde, de relações internacionais – a gente fez uma campanha para o Brasil sair do Consenso de Genebra, por exemplo. E ao mesmo tempo, dentro do nosso campo feminista, que trabalha com o aborto, a gente também fortalece as reflexões e as estratégias de comunicação. A gente, junto com outras organizações, faz webinários sobre aborto e comunicação, faz monitoramento de mídia, para pensar quais são os argumentos que a gente pode usar em determinados momentos, para determinados públicos.

A gente tem um trabalho com jornalistas, comunicadoras e feministas para melhorar as nossas estratégias de comunicação enquanto campo, para a gente conseguir, por mais que cada uma tenha o seu próprio trabalho e atue numa área específica, ter um pouco mais de coesão nesses debates sobre aborto, publicamente, enquanto sociedade civil, enquanto pessoas que estão defendendo a descriminalização. Então, resumidamente, a gente faz um trabalho de articulação, proporcionando espaços e ferramentas para melhorar a comunicação sobre aborto no Brasil.

Já houve tentativas de criminalizar o trabalho da organização? 

Não diretamente. A gente tem uma comunidade muito engajada nas redes sociais, mas como até o ano passado ainda não tinha uma estrutura interna, a gente também não se posicionava publicamente enquanto campanha, esta é uma novidade. As pessoas transfóbicas são as que mais atacam a gente quando falamos sobre mulheres e outras pessoas que podem gestar. A gente nunca foi criminalizada. Acompanhamos várias ativistas que foram criminalizadas, mas a gente nunca sofreu nada. A gente lançou, recentemente, o edital Futuro do Cuidado, com o Portal Catarinas e outras organizações, mas a criminalização não veio pela gente. Até agora, tudo certo.

[Nota da reportagem: houve tentativa de criminalização do Portal Catarinas por divulgar o edital, mas a denúncia foi arquivada. Saiba mais clicando aqui].

Estamos às vésperas do julgamento da ADPF 442, você acredita que há chances reais de o aborto ser descriminalizado? Como as feministas podem colaborar para pressionar o Supremo Tribunal Federal?

Independentemente do resultado da ADPF, de 2018 pra cá, a nossa avaliação é que o povo se movimentou bastante. O debate acelerou muito, a cobertura da imprensa melhorou muito, tem mais apoio para essa agenda. A gente tem monitorado o debate nas redes sociais e na mídia e ele é majoritariamente favorável, a gente tem conseguido diversificar os nossos argumentos. Então, essa ação já trouxe um ganho muito grande.

Claro que, depois de dois anos de golpe e quatro anos de governo Bolsonaro, a gente teve portarias do Ministério da Saúde que dificultaram o acesso, só que a gente sabe que, na prática, elas nem fazem sentido para o dia a dia dos profissionais de saúde, então elas não interferiram tanto assim. A gente não teve nenhum projeto de lei contrário aprovado, então, toda essa movimentação do campo é positiva. A gente tem o pessoal do cinema engajado, pensando em como articular filmes que falam de aborto e da nossa mobilização, ou de maternidade de uma forma que colabore para o debate. Pessoas que não tinham se mobilizado antes e que agora estão se mobilizando.

O julgamento, durando um ou dois anos, é uma chance ótima para a gente ampliar essa base de apoio à descriminalização, é o momento de a gente fazer os nossos argumentos ganharem fala, diversidade, chegarem em outras pessoas. Esta é a minha expectativa principal.

Em termos de como o STF vai se comportar, a conjuntura brasileira tem mudado de status, eu acho que os ministros, boa parte deles tem se posicionado em defesa da democracia e da Constituição de maneira bastante firme nos últimos anos. Principalmente depois de Bolsonaro e da pandemia, esses direitos essenciais que a Constituição garante estão sendo mais protegidos, tem um debate maior sobre eles, e a ADPF retoma esse debate. Tendo a sinalização de Rosa Weber, tendo a sinalização de Luís Roberto Barroso de que tem a intenção de priorizar esse tema enquanto presidente do STF, eu acho que a gente tem uma oportunidade de se engajar e de aproveitar essa janela para tirar o aborto do armário.

Para fechar, já que o principal eixo de atuação da Nem Presa Nem Morta é a comunicação, quero saber: que dicas você dá para quem quer cooperar para a desestigmatização do aborto no Brasil?

Eu acho que passa por um lugar de não julgar as decisões. Tem um estigma muito forte associado a quem aborta, como se essa fosse uma decisão impensada, então começa por aí: entender que essa pessoa não está partindo de um lugar de irresponsabilidade. Os motivos que levam cada uma a fazer o aborto são muito particulares, e essa é uma decisão importante, que muda a vida, a gente carrega essa memória no corpo, então, pensar que cada uma tem os seus motivos e que essa não é uma decisão irresponsável é um bom ponto de partida. Todo mundo toma decisões difíceis, e a gente toma as decisões que são melhores para a gente.

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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