A juíza da 5ª Vara Criminal da Comarca da Capital, Andrea Cristina Rodrigues Studer, acolheu manifestação do Ministério Público de Santa Catarina e arquivou procedimento criminal instaurado contra o Portal Catarinas, em 26 de julho, para apurar incitação ao crime — neste caso, aborto — prevista no artigo 286 do Código Penal. A investigação foi iniciada a partir de uma notícia de fato, em 25 de abril, feita por Rachel Heringer Salles no sistema de atendimento ao Cidadão do Ministério Público Federal do Distrito Federal. Como consta no Diário Oficial do Distrito Federal, a denunciante foi nomeada, em 29 de maio, secretária executiva do Observatório da Mulher, da Secretaria de Estado da Mulher do DF. 

Salles, que integra o Republicanos ao lado da aliada, a senadora Damares Alves, denunciou o Portal Catarinas por ter divulgado o Edital Futuro do Cuidado, que destinou R$20 mil para iniciativas de comunicação sobre aborto. Sem expressividade na vida pública, a denunciante fez apenas 131 votos como candidata a deputada distrital no Distrito Federal, nas últimas eleições, e tem uma empresa de “consultoria e inovação”. 

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Na denúncia, ela acusava o Portal de promover a prática de abortos criminosos, inclusive com menção a citações que não estão no Edital. Segundo Salles “no edital aberto recentemente, em anexo, ofereceram 20 mil reais por projeto que promova formas ‘inovadoras’ de promover o aborto, extrapolando os limites estabelecidos pela legislação brasileira que proíbe e criminaliza o aborto enquanto prática de controle natal”. A denunciante argumentou ainda que “eles pedem de forma inacreditavelmente ousada e acintosa que sejam criadas formas de tornar ‘a prática normal dentro do controle natalício na vida reprodutiva’”.

Diferentemente do que narrou, o Edital Futuro do Cuidado tinha por objetivo apoiar iniciativas de comunicação e informação sobre o tema frente às violações no acesso ao direito ao aborto legal, principalmente em casos de estupro de crianças, e diante do fato de que uma a cada 7 mulheres já realizou um aborto até os 40 anos, conforme apontou a última Pesquisa Nacional do Aborto. 

Iniciativa colaborativa da plataforma Nem Presa Nem Morta, o Edital é realizado por organizações da sociedade civil que atuam em defesa dos direitos humanos das mulheres, entre elas Anis – Instituto de Bioética, CEPIA, Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde, Coletivo Margarida Alves, Grupo Curumim, Portal Catarinas e Rede Feminista de Saúde.

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Como explica Amanda Nunes, advogada da Anis e co-coordenadora do projeto Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília, o objetivo do Edital era fortalecer iniciativas que contribuam para a redução do estigma e da culpabilização de meninas e mulheres que abortam, já que esses são fatores que dificultam o acesso ao aborto legal e seguro.

“A criminalização do aborto incentiva a criação de obstáculos mesmo nos casos em que o direito já é assegurado pela legislação brasileira. Assim, o Edital deixava claro que não buscava incitar a prática de crimes, mas promover o debate democrático sobre um assunto que afeta a saúde reprodutiva de meninas e mulheres”, reitera a advogada.

Do prêmio de jornalismo à delegacia

Por uma questão de competência, a denúncia realizada junto ao MPF foi encaminhada ao MP de Santa Catarina, já que não havia justificativa para que a investigação tramitasse na esfera federal. 

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Uma vez instaurada a investigação criminal, em 6 de julho, a jornalista Paula Guimarães prestou depoimento na Delegacia de Polícia do Continente, em Florianópolis, representando o Catarinas, um dia após ter retornado do Festival Gabo de Jornalismo, na Colômbia, onde foi homenageada por ser coautora de uma das três melhores reportagens ibero-americanas na categoria cobertura. 

“Como finalista do Prêmio Gabo fui reconhecida pela coautoria da reportagem sobre o caso que ocorreu em Santa Catarina, em que juíza e promotora impediram uma menina, engravidada aos 10 anos, de acessar o aborto legal. Ser reconhecida lá fora e criminalizada no território onde vivo, só mostra a importância de iniciativas como o Edital Futuro do Cuidado, da discussão e informação sem interdição para que policiais, promotoras e juízas também tenham letramento sobre o aborto enquanto direito”, afirma Guimarães, co-fundadora do Portal.

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Em 14 de julho, o Ministério Público requereu audiência para propor acordo de transação penal — no qual a pessoa acusada aceita cumprir pena antecipada e o processo é arquivado — sob pagamento de um salário-mínimo ou prestação de serviços à comunidade pelo período de três meses, por sete horas semanais. A audiência estava marcada para 5 de setembro. Sem aderir à proposta do MP, a defesa do Portal Catarinas, no entanto, pediu o arquivamento do processo, em 17 de julho. 

“A delegacia finalizou o termo circunstanciado e encaminhou ao MP, que por sua vez já poderia ter de pronto determinado o arquivamento se tivesse verificado a situação, mas não o fez. O MP peticionou ao juiz, pedindo a designação de uma audiência preliminar, fazendo inclusive proposta de transação penal, que é proposta de acordo, que funciona assim: para esse processo não ir adiante, o acusado aceita cumprir pena antecipada, de multa ou restrições de direitos, e fica por isso mesmo”, explica a advogada Mayara de Andrade, que fez a defesa do Portal.

Quatro dias após a manifestação da defesa, em 21 de julho, o MP acolheu a tese e pediu o arquivamento do processo, pedido que foi  deferido cinco dias depois pelo Juízo da 5ª Vara Criminal da Comarca da Capital. “Considerando que o edital lançado pela investigada busca promover o diálogo sobre a descriminalização do aborto e não incitar a prática da referida conduta delitiva, verifica-se que deve ser privilegiada a liberdade de expressão, não havendo que falar na caracterização da infração penal prevista no art. 286 do Código Penal”, escreveu o Promotor de Justiça Fabiano Henrique Garcia, na petição. 

Não há conduta criminosa: bastava ler o edital

A defesa do Catarinas sustentou que não havia dúvida ou questão de interpretação, bastava a leitura literal do Edital para concluir que o documento não extrapolou a legalidade e que a denunciante agiu de má-fé ao mencionar afirmações que não constam no texto.

“Destacamos que os trechos mencionados na denúncia não constam no Edital, muito menos na divulgação do Portal. Então, esse foi o primeiro argumento que sustentamos, de que não teria uma questão interpretativa acerca da denúncia em relação ao edital, mas uma questão de literalidade mesmo: o que foi colocado na denúncia é falso”, afirma a advogada Mayara de Andrade.

Da denúncia ao arquivamento foram cerca de 90 dias de investigação, documentados em 88 páginas. A advogada encara a manifestação do MP pelo arquivamento como uma forma de retratação diante da falta de cautela do órgão ao não ter agido sumariamente.

“Eles fizeram uma manifestação que vai até um pouquinho além da nossa argumentação. Entendo que esse reforço na fundamentação foi bem positivo. O despacho da juíza pelo arquivamento também foi rápido. É uma situação que faz pensar que as instituições, de um modo geral, precisam dar um pouco mais de atenção ao processo desde o seu início. Também é um reforço para a causa ter o MP se manifestando de forma qualificada em defesa do direito à liberdade de expressão, à discussão sobre o aborto na sociedade, e o direito ao aborto legal”, analisa Andrade.  

O uso do aparato estatal para perseguir defensoras de direitos humanos

Para Amanda Nunes, advogada da Anis, o caso mostra como a perseguição a defensoras de direitos humanos é normalizada e institucionalizada no Brasil. “Era uma denúncia evidentemente falsa, apresentada de má-fé, que poderia ter sido sumariamente arquivada pelas instituições. Ao levar adiante esse tipo de denúncia, submetendo as jornalistas ao constrangimento de deporem mesmo ante a clara inexistência de crime, passa-se a mensagem de que atores antidemocráticos podem usar instrumentos estatais para intimidar defensoras de direitos humanos”, analisa. 

Nunes chama atenção para o fato de a denúncia, que buscou censurar a defesa do direito ao aborto legal e seguro, ter partido de uma representante estatal, cuja pasta tem como objetivo “contribuir para a promoção da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres”.

“Ainda mais grave é que a denúncia tenha sido apresentada por uma servidora pública, vinculada à Secretaria da Mulher do DF, que deve ter respeito pela coisa pública e proteger aquelas que atuam na defesa dos direitos das mulheres. Mesmo sabendo que a denúncia era falsa, a servidora entendeu por bem movimentar o braço punitivo do Estado para atingir o objetivo ideológico e antidemocrático de censurar a defesa do direito ao aborto legal e seguro”, critica. 

Na avaliação da advogada Mayara de Andrade, a denunciante precisa ser responsabilizada não somente por tentar criminalizar o jornalismo do Portal Catarinas, sem que houvesse base para isso, mas por colocar todo o aparato do Estado à disposição de uma denúncia falsa.

“A malícia da representante da notícia de fato está muito evidente, porque ela traz trechos que dão até a entender que foram retirados do edital e não foram, que realmente seriam criminosos, mas não é o caso. Além das pessoas que foram denunciadas de forma indevida, o Estado também é vítima desse crime de denunciação caluniosa. Então, ela pode vir a ser processada e responsabilizada por isso, porque a materialidade desse crime no caso está nítida”.

Manifestar-se pela descriminalização não é crime

A manifestação do MP foi favorável não somente ao arquivamento, como também à discussão pública sobre o tema, para que ocorra livre de censura e de interdições, ainda que disfarçadas de legalidade. “O fato de ser o aborto considerado crime atualmente, com a ressalva das exceções legais e construções jurisprudenciais, não pode impedir que o assunto fique imune à crítica pública ou que passe por uma mudança de entendimento e eventual descriminalização”, pontuou o promotor na manifestação. 

Ao considerar fundamentações trazidas pelo próprio Edital, o promotor mencionou o contexto de amplo debate sobre abolição penal do aborto em setores da sociedade, citando decisões e julgamentos no Congresso Nacional e nos Tribunais Superiores, sobretudo no STF; como a ADPF 54 que autorizou o aborto de fetos anencéfalos, e a ADPF 442 que busca descriminalizar a prática até a 12ª semana de gestação.

Na análise do promotor, o posicionamento favorável à descriminalização do aborto não pode ser criminalizado, conforme entendimento do STF ao julgar a ADPF 187 sobre a Marcha da Maconha, que garantiu a livre expressão do pensamento relacionada à manifestação política em favor da abolição penal. “Ora, em ambos os casos existe a pretensão de abrir espaço ao debate, a fim de que a sociedade reflita se determinada conduta, no atual momento histórico-social, deve ou não permanecer tipificada na legislação penal como crime”, refletiu na peça. 

Sem respostas

O Portal Catarinas entrou em contato com Rachel Heringer Salles e com a Secretaria de Estado da Mulher do DF. Até o fechamento da reportagem, não tivemos resposta de Salles.

A secretaria informou que Salles tomou posse no dia 6 de junho de 2023 e, desde então, “desempenha a função de subsidiar a Pasta por meio de dados numéricos, coletados pelo Observatório da Mulher, para que sejam desenvolvidas, pelas equipes responsáveis, as políticas públicas voltadas ao combate à violência de gênero e à promoção das mulheres nas áreas de educação, saúde, cultura, empreendedorismo e autonomia econômica, e que considerem sua diversidade racial, de orientação sexual, geracional, condição de deficiência sem prejuízo de outras formas de diversidade; e também promovam a igualdade entre mulheres e homens, o  trabalho e a garantia de seus direitos.”

A pasta acrescentou que “segue as leis, regulamentos e normas vigentes, além de manter o compromisso ético e legal para garantir que o órgão público atue de maneira transparente, justa e em conformidade com as normas infringidas”, sem responder aos questionamentos enviados. As perguntas podem ser lidas aqui. 

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