No último fim de semana, Leci Brandão, uma das maiores sambistas do país, encantou o público do Arvo Festival, em Florianópolis, com um repertório cheio de sucessos. Aos 78 anos, a artista cantou, dançou, tocou surdo e pandeiro e, ainda, encontrou fôlego para abordar temas importantes da política nacional. Reeleita para o seu quarto mandato como deputada estadual de São Paulo pelo PCdoB, ela conclamou o público à defesa da cultura, da educação e da democracia brasileira.
Como parlamentar, Leci Brandão tem uma trajetória dedicada à promoção da igualdade racial, ao respeito às religiões e à cultura afro-brasileira, em defesa dos direitos das populações indígena e quilombola, da juventude, das mulheres e das pessoas LGBTQIA+. Em um momento emblemático do show, a artista convidou as sambistas locais que a antecederam no palco: Juliana D Passos, Julia Maria, Êlo Gonzaga & Jandira Souza. Em seguida, entoou a música “Mulher brasileira”, de Martinho da Vila, exaltando as cantoras, que representavam todas as mulheres brasileiras. O gesto emocionou o público e as artistas.
Com quase 50 anos de carreira, Brandão tem um vínculo indissociável com o Carnaval, foi a primeira mulher a participar da ala de compositores da Mangueira. O seu pioneirismo não fica por aí. Em 1978, ela foi uma das primeiras cantoras famosas a se afirmar lésbica, em entrevista publicada no Jornal Lampião da Esquina. De 2004 a 2008, foi Conselheira da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher durante os governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em fevereiro de 2010, filiou-se ao Partido Comunista do Brasil, candidatou-se à Assembleia Legislativa do Estado de S. Paulo e foi eleita pela primeira vez, sendo a segunda mulher negra a ocupar a Alesp.
Após a sua apresentação no festival de brasilidades, o Catarinas teve a oportunidade de conversar com a artista e parlamentar sobre o cenário da cultura e da política brasileira.
Quais são os desafios que a cultura brasileira enfrenta neste momento?
Os desafios são muito grandes. É um desafio do país, não somente da cultura. Se o povo brasileiro pensar bem antes do dia 30, acho que ele consegue mudar o rumo do país. O país está muito mal, porque temos um desgoverno que é contra tudo, além de não respeitar as coisas importantes: a educação, a cultura, a saúde, o emprego, a alimentação. As pessoas estão perdendo tudo.
Para além disso, não há respeito às pessoas. Hoje, as pessoas têm medo de falar coisas, têm medo de se assumir, têm medo de tudo, porque pode aparecer um maluco e dar um tiro, dar um soco na sua cara. A gente não sabe o que pode acontecer. Eu ando sempre atenta, porque eu sempre falo as coisas e eu gravo muito vídeo.
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Antes de ontem, eu gravei vídeos para a educação, para as mulheres, para as pessoas LGBTs, para os trabalhadores. Fomos em um estúdio do PCdoB só para gravar falas sobre essas questões que vão entrar para a campanha. Eu rezo muito pedindo proteção para o anjo guarda para não acontecer nenhuma trairagem comigo, porque não sabemos do que eles são capazes. Essa gente é muito perigosa. É uma gente muito má. São pessoas que não têm limites para cometer qualquer coisa. Se tiverem que sumir com a gente, somem.
Estamos vivendo um momento de fascismo, tem gente que tem medo de usar essa palavra…
Eu não tenho medo de falar, porque é uma realidade. Não temos que ter medo de falar da realidade. Com essa eleição, tem mais militares ainda na nossa Assembleia. Muitos se reelegeram, conseguiram se fortalecer e elegeram outros. Se você observar, estão militarizando todos os plenários. Eu achei um absurdo chegar ao ponto de a Érica Malunguinho não querer se candidatar por medo. Ela recebeu muitas ameaças, foi muito perseguida e fez um trabalho diferenciado dentro da Casa Legislativa. Eu estive com ela no Aparelha Luzia (quilombo urbano fundado por Malunguinho) e disse: ‘quem perde é o Brasil. Você tem a opção de não se candidatar, mas você tinha que continuar porque fez um trabalho brilhante.’ Mas quem recebeu as ameaças foi ela. É ela quem sabe o que sente ao chegar em casa, ouvir o telefone tocar e atender uma ligação que ninguém se identifica. Eles não têm limites, a coisa perdeu o rumo, ninguém mais tem o pudor de dizer que não vai agredir alguém, porque não é legal agredir uma pessoa. Virou natural.
Você é pioneira em várias aulas, pioneira na música e na questão LGBT, quando você se colocou como uma mulher lésbica. Como você vê essa questão da conquista dos direitos da população LGBTQIA+ no contexto em que estamos vivendo que temos avanços, mas temos retrocessos. Como dá para medir isso agora?
Por que aconteceram alguns avanços? Porque as pessoas tiveram a coragem de colocar no espaço de poder pessoas que travam essa luta de forma natural. As pessoas têm que ter respeito por todo mundo. É algo que minha mãe me ensinou sempre, a respeitar a qualquer pessoa. E temos que denunciar. Tem gente que tem medo, as violências acontecem, mas as vítimas não vão à delegacia. Nós estamos, aos poucos, colocando representatividade dentro das delegacias, dentro das universidades, das direções das universidades, para que não haja perseguição. Não é sobre bullying. É perseguição mesmo, ameaça de morte, isso é ainda pior.
Ainda que estejamos neste contexto de perseguições e de práticas fascistas, conforme conversamos, você tem esperança de um futuro melhor para o Brasil?
Eu sempre tenho esperança em tudo. O que conseguimos conquistar, as coisas que eu consegui fazer nesse país ao longo desses anos. Tem coisas inclusive que eu nunca poderia imaginar: como ser procurada por tantos brasileiros, tantas brasileiras, como referência. Falam muito essa palavra para mim, ‘você é referência’. Será que eu sou tudo isso? Eu sou muito tranquila, eu não faço panfleto. Acho que você tem que respeitar todo mundo para ser respeitado.
Por exemplo, a Érica, sofreu toda essa perseguição, porque o caso dela foi mais sério, por ela ser a primeira trans que entrou na Alesp, ninguém imaginava. Ela é uma pessoa extremamente inteligente. O nível de discussão dela, a forma como ela debate é algo de ficar admirando. Como essa menina tem coragem de enfrentar essas pessoas? A bancada evangélica é muito forte e continua. Temos vários pastores eleitos. Ainda tem essa mulher primeira dama, que se coloca com o Palácio do Governo para fazer encontros, fazer rezas, cultos, é muito ruim. Não podemos deixar que ele continue. A partir de segunda-feira, a ordem é ir para a rua. Eu estou com uma expectativa muito grande.