Nascida no interior de Piratuba, no Extremo-Oeste catarinense, Tercília dos Santos, aos 70 anos, é uma das grandes referências em arte naïf no Brasil. A artista plástica passou a pintar após sonhar com o menino Jesus em 1990. O seu talento parece ser obra da intervenção divina. Somente dois anos após pincelar a primeira tela, participou da Bienal Naïf de Piracicaba (SP), principal evento do estilo no país. Bastou mais dois anos para levar o Prêmio de Aquisição.  

Suas obras retratam as memórias da sua infância na roça: a lida com a terra, com os animais, com as plantas. Um mundo repleto de cores, imaginação e liberdade. Seus traços se destacam através da ausência de perspectiva. Altamente intuitiva, Tercília se sente cômoda ao ser identificada como uma artista “ingênua” (tradução literal de naïf do francês). O estilo, amplamente diverso, é usado para caracterizar pinturas feitas por autodidatas, que abusam de cores vivas e desenvolvem um caráter narrativo nas suas telas. 

Apesar de ser uma artista reconhecida nacionalmente há muitos anos, recentemente está colhendo os devidos méritos em Santa Catarina. A sua última exposição “A herança negra na cultura brasileira”, realizada entre maio e junho no Centro Integrado de Cultura (CIC), em Florianópolis, parece ter mudado este cenário. “De repente, todo mundo ficou se perguntando quem é a Tercília”, diz a pintora, que atualmente trabalha em um projeto que lançará em agosto.  

A seguir, leia a entrevista com a artista plástica Tercília dos Santos, mulher negra e catarinense, celebrada pelo Catarinas neste Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha.

Tercília dos Santos, a artista plástica referência em arte naïf no Brasil
Tercília dos Santos em seu ateliê em São José (SC). Foto: Tay Nascimento.

Catarinas: Quando você começou a pintar e o que a motivou a se dedicar às artes? 

Tercília dos Santos: Eu sempre trabalhei em salão de beleza. Pintar não era o meu ofício. Mas eu senti vontade de ter obras para enfeitar as paredes da minha casa. Aí sonhei com Jesus Cristo. Eu sempre me imaginava falando com Jesus Cristo como se eu estivesse falando com uma criança. Eu falava com muito respeito, porque eu tenho um respeito pela criança, estou sempre ensinando, explicando as coisas.

Eu sonhei com Jesus Cristo e ele me mostrou os quadros. O primeiro quadro que ele mostrou, existe. É uma dança portuguesa que está na casa de uma cliente. No meu sonho, era uma revoada de pombos, bem colorido. Depois ele mostrou umas cenas na rua, vilas. Tudo muito colorido. Ele tinha 10 anos e estava chapeuzinho na cabeça bem caipirinha, conforme a obra que ele estava me dando. Era uma obra de criança, todo mundo dizia “isso aí o meu filho também pinta”.  Quando eu acordei, eu sabia pintar. A vontade de pintar era muito grande.

Eu fiquei preocupada, mas como que eu vou pintar se eu não sei, o que eu vou fazer, por onde começar? Era umas cinco horas da tarde, eu fui em uma loja de materiais artísticos. Falei que estava com vontade de pintar, que eu gostaria de material.

Ela (a atendente) falou que era um hobby caro. Só que era para comprar pincéis, tintas, as cores básicas e foi o que eu fiz. Cheguei em casa e pintei. Fiz uma revoada de pombos, em uma telinha pequena. Eu botei a tela na janela para firmá-la e pintei. Eu trabalho com a intuição, sempre intuí as coisas. Meus pombos são simples. E ficou tudo borrado, porque a moça me deu tinta óleo e demorou três dias para secar. Só que eu não conhecia.

A minha única preocupação é que eu tinha que pintar. Eu passei em uma galeria ali na avenida Rio Branco, e havia um moço na galeria. Ele disse para eu ir para o CIC (Centro Integrado de Cultura) para aprender técnicas diferentes. “Nós não trabalhamos primitivismo”, ele falou. Eu liguei para o CIC, expliquei que eu sabia pintar, mas não entendia nada. Eu queria aprender desde o começo. A moça disse que eu faria aula de iniciação com o professor Fernando Lindote.

Foi a minha sorte, porque o Lindote entendeu que eu estava pronta, mas que estava com vergonha de mostrar o que sabia. Até pela resposta que eu tinha tido naquela manhã. Eu estava com a sensibilidade tão aguçada, e me sentia em dois mundos. Eu queria e precisava fazer, mas ao mesmo tempo tinha medo de mostrar e receber mais dessas respostas que machucam.  

Eu sabia que não estava boa, mas eu precisava de uma orientação. Era isso que estava procurando. Quando eu cheguei no CIC com aquelas telinhas borradinhas. Eu mostrei para ele, que falou que estava bonito. Eu sabia que não estava, mas me fez bem. Ele montou umas coisas para me ensinar a base, de claro e escuro, que até hoje eu não sei. Eu não uso perspectiva.

Eu pedi para aprender a fazer e ele falou: “Ah, todo mundo pinta com perspectiva. Você é a única que não pinta, por que tu quer copiar os outros?”. Ótimo, só eu que faço assim? Então vou manter. Os arquitetos ficam surpresos que eu não uso perspectiva e dá certo, porque eles são da linha reta o tempo todo. Tipo meu pai que era carpinteiro e tinha mania de linha reta. 

A artista pincela cenários da sua infância no interior de Piratuba (SC). Foto: Tay Nascimento.

Catarinas: Você desenha o imaginário da sua infância, o que te inspira do tempo vivido em Piratuba para compor as tuas obras?

Tercília dos Santos: Segundo os críticos, os artistas criados na roça e na agricultura têm a essência do naïf. Talvez, por isso o valor da minha obra, porque eu tenho a essência do naïf. Na minha infância, a gente trabalhava na roça. As minhas bonecas eram crianças. A minha mãe morreu quando eu tinha 5 anos, a minha tia foi morar com a gente e ela tinha uma criança. A minha tia pegava a criança para amamentar, para trocar e me devolvia. Eu ficava numa casinha sem soalho. Eu enfeitava aquela casinha com flores, sempre imaginando a minha casa completa. Onde eu vivo sozinha é o que eu imaginava quando era criança.

A gente trabalhava na roça, fazia todo o trabalho da lavoura. Nós éramos seis irmãs. Meu pai era aquele carpinteiro perfeccionista e muito requisitado pelo bom trabalho. Casa que ele fazia vento nenhum derrubava. Nós, meninas, fazíamos o trabalho em casa, da lavoura. Eu arava, capinava, plantava, colhia. 

Nós usávamos dois bois. Um na carroça e um para arar a terra. Só eu e meu pai pegávamos aquele boi. Quando os bois viam minhas irmãs próximas, eles queriam pular a cerca para pegá-las. Quando eu ou meu pai entrávamos no potreiro, eles baixavam a cabeça. Eu tinha medo do boi, não entendia por que ele não corria atrás de mim também. Mas é que os animais conhecem a personalidade da pessoa. Eu trabalhava com eles, não precisava bater, eles obedeciam normal. Com o meu pai também era assim. E ele me dava a responsabilidade do trabalho, principalmente a de arar a terra, que tinha que ser com os bois, porque eu tratava bem os animais. Só conversava e eles obedeciam normalmente. 

A gente tinha aquela rotina de trabalho, quase não tinha lazer. Como era só meninas, o meu pai segurava muito a gente em casa. Até porque tudo era longe. A gente saía na missa de domingo. E não era sempre que tinha missa, o padre vinha de outra comunidade. Na época de sexta-feira santa, a gente ia nos terços.

Era uma infância difícil, porque a gente tinha que trabalhar na roça, era um trabalho pesado, mas a gente não conhecia outro mundo. Eu me sinto bem de ter vivido lá, ter me criado dessa maneira. Eu trago isso para a minha obra. Tudo gira em torno da comunidade, do trabalho. 

A gente aprendeu a organizar as coisas como meu pai exigia, tudo bonito e bem feito. A gente capinava a roça e já deixava limpinho. Eu vou pintando e limpando a tela para o trabalho ficar bonito. Foi um tempo bom a minha vivência lá na roça, que se reflete hoje no valor da minha obra pura. 

Quando começou a pintar, Tercília se sentia entre dois mundos. Foto: Tay Nascimento.

Catarinas: O seu estilo é apontado como referência em pintura naïf em Santa Catarina. Naïf que em uma tradução literal seria “ingênua”. Como você avalia esta classificação e como você vê a sua arte a partir dela?    

Tercília dos Santos: Eu não vejo defeito nenhum em usar a palavra naïf. Foi neste título que eu fiquei conhecida pelo mundo. Não acho que é desclassificar a obra chamá-la assim, porque tem vários nomes: naïf, ingênua, nativa, pintores de domingo. O importante é o tipo de obra que eu faço. Ela serve tanto no naïf, quanto no contemporâneo. Por que eu vou me preocupar com o rótulo? Cada um vê a minha obra com os olhos que têm. Tem muitos artistas que se dizem naïf, mas está mais para uma reprodução do que uma obra pura. Estou satisfeita com a palavra naïf e pretendo usá-la para o resto da vida. 

Catarinas: Quando você começou a ser reconhecida pelo seu trabalho? Quais momentos da sua trajetória você destacaria como memoráveis neste aspecto? 

Tercília dos Santos: Foram muitos. Na primeira vez que eu mandei a obra para Piracicaba, por exemplo, eu fui selecionada. Não esperava. Em 1994, eu ganhei o Prêmio de Aquisição. Na hora que eu recebi a carta, há 30 anos atrás, eu fiquei pensativa. Foram mil perguntas. Eu não esperava, porque estava começando e concorria com o Brasil inteiro. Jamais imaginei ganhar prêmios. Eu já estaria muito satisfeita, se tivesse no meu currículo que eu tinha participado de uma Bienal. Seria ótimo. O prêmio foi muito especial pela surpresa.

Em 1998, eu ganhei novamente, deste vez o Prêmio Divulgação. Os cartazes, os banners, tudo que saía na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo, foi enfeitado com a minha obra. Ganhar um prêmio estava bom, agora dois, era bom demais. Fazia oito anos que eu estava pintando. Eu sabia das dificuldades das pessoas, do sonho de entrar na Bienal. Até hoje tem artista que fica muito triste, porque não entrou na Bienal. Eu penso diferente. Eu não entrei nessa vez, mas outro entrou pela primeira vez e está feliz da vida. Isso é repartir o pão. 

Outro momento foi quando o curador da Bienal me convidou para participar de uma exposição itinerante pelo interior de São Paulo, foram só artistas brasileiros convidados. 

Outra foi quando o Clube da Criação escolheu 22 artistas do Brasil. De Santa Catarina fui eu. O quadro que eu fiz foi bastante comentado, porque ficou melhor do que eles imaginavam. Eles deram um tema para cada região, o meu tema era outdoor com propaganda das empresas. O destaque era para o carro Audi.  

Catarinas: Na sua última exposição “A herança negra na cultura brasileira”. Quais manifestações da cultura negra catarinense você retratou nas suas obras?    

Eu não escolhi os temas, eu deveria abordar trinta temas que foram dados de antemão pelo curador. De Santa Catarina, eu fiz a Antonieta de Barros. O da Antonieta de Barros eu acabei bem no final. Tinha  feito o guarda-pó dela com giz. E fui fazendo outras coisas até voltar para terminá-lo. Eu costumo trabalhar assim.

Eu sempre trabalhei com imaginário, aqueles temas eram um desafio muito difícil. Eu até estava acostumada a fazer desafio, mas eram duas telas com um tema específico normalmente. Agora, eram trinta de uma vez, e em menos de um ano. 

Foram vários temas, também pintei relacionados à Bahia e fiz coisas que eu não sabia pintar. Pesquisei e fiz tudo do meu jeito. Eu nunca tinha desenhado um tear, mas fiz um fundo de um quadro para trabalhar em cima e na hora tive certeza que ali seria o tear. Foi um dos mais fotografados lá. 

O curador Odécio Visintin Rossafa Garcia estava há uns dois anos esperando. Eu não aceitava, por causa das responsabilidades. A minha irmã faleceu em junho do ano passado, ela morava aqui comigo e eu era a sua cuidadora. Em agosto, perguntei se ele ainda estava me esperando para realizar esse trabalho. Ele disse que estava, porque eu tinha o perfil. Eu aceitei. 

Era algo que estava me preocupando, o fato dele estar muito tempo me esperando. Eu tinha a sensação de que eu parecia estar esnobando. Um colecionador e empresário como ele ter realizado um projeto para uma artista e ser recusado me fazia sentir desta forma. Então aceitei em agosto de 2022 e fiz tudo até maio de 2023.  

Detalhes do ateliê da artista. Foto: Tay Nascimento.

Catarinas: Quero  perguntar também sobre o reconhecimento da sua arte aqui no Estado. Você tem um reconhecimento nacional. Como você enxerga a inserção das suas obras em SC? 

Tercília dos Santos: Aqui em Santa Catarina eu nem era conhecida. Muita gente acha que eu sou de São Paulo. E, de repente, todo mundo ficou se perguntando quem é a Tercília. A repercussão da exposição do CIC foi muito boa, até então eu não era conhecida em Santa Catarina, era mais em outros estados. Nunca teve tanto agendamento de colégios. Eu tirei o CIC da função normal. Segunda-feira normalmente não abre, mas eu estava lá sempre com alunos, com visitante. 

Agora, tem uma equipe: eu, o Seu Odécio e a Juliana Candido. Cada um fazendo a sua parte. A Juliana faz a parte digital. O Seu Odécio faz mais a parte empresarial. Eu trabalho com a produção. A Juliana tem divulgado bastante. Lá em Piratuba poucas pessoas me conheciam, e eu nasci lá. Agora o pessoal  está ligando, porque saiu matéria em um jornal de lá. Aí o pessoal entra em contato, quer ter amizade comigo. Uma amiga de infância, que estudamos na primária, me reconheceu e está querendo retomar o contato.

Como todo artista, eu me sinto bem em ser reconhecida. Isso é bom para o Estado, saber que tem uma artista do patamar que eu estou. A única instituição do Governo que tem uma obra minha é o MASC (Museu de Arte de Santa Catarina), porque eu doei. Do contrário ninguém teria uma obra minha no Estado. Isso é triste, porque o Estado mostra que não valoriza nem os melhores do seu território. É pobre isso.

Na Assembleia, fizeram uma celebração para homenagear a Antonieta de Barros. Tinha meia dúzia de pessoas, e ninguém sabe que eu pintei um quadro da Antonieta. Deram prêmios para uma turminha. Um porque plantou um pé de couve para a Antonieta, outro porque falou o nome dela em sala de aula, outro porque escreveu algo sobre. E, na Assembleia, inventaram um edital para pintar obras com o tema Antonieta de Barros, a Assembleia fez um edital. Vão pagar 2 mil reais por uma obra de arte. Você acha que eu vou perder o meu tempo? Se fosse qualquer outra instituição sem recursos, tudo bem, mas a Assembleia faz isso? É o descaso com o artista. Eles não terão obras de artistas, imagino. Vão ter obra de quem faz cópias, é o que eles merecem.

Atualmente, Tercília prepara projeto de arte em colégio de Florianópolis. Foto: Tay Nascimento.

Catarinas:  Como você se inspirou para pintar o quadro da Antonieta?

Eu fiz um colégio com a professora e os alunos. Se o prédio da Escola da Antonieta de Barros estivesse pronto, eu teria pintado o prédio, ela e os aluninhos. Eu faço meus alunos de roupinha azul com branco, assim que eu estudei. A escolinha que eu estudei era amarela. Sempre faço assim. Também porque eu sonhava em ser freira quando era criança, e o uniforme das freiras era saia azul e blusa branca com aqueles suspensórios.

Catarinas: Quais são as suas perspectivas daqui para a frente? O que você tem planejado para a sua arte? Quais exposições e projetos tem pensado? 

Agora, estou trabalhando com um projeto que eu ganhei no ano passado do edital Elizabete Anderle. Será no Colégio de Aplicação, no mês de agosto. Quem escreveu o projeto foi a Célia Maria Antonacci, que ganhou o Prêmio Jabuti por um livro sobre arte africana e afro-brasileira contemporânea. O nome do projeto é “A arte como autoconhecimento de si”. Eu apresento a minha história, a minha obra, e as crianças vão trabalhar junto. Eu levo tudo recortadinho: personagens e desenhos. Se a criança quiser copiar pode, mas se não, pode fazer o seu desenho sobre a minha história. A gente incentiva a criança a fazer o seu próprio desenho. Vai ter oficinas de feltro, com desenhos e pintura. São 16 horas de palestras e mais 20 horas de oficinas. Aí a gente faz uma exposição com as minhas obras e com as obras dos aluninhos. Isso é um incentivo para criança, que ela esteja expondo também.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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