Prédio da escola Antonieta de Barros irá sediar museu em homenagem à deputada
Articulação do movimento negro garantiu a criação de espaço de valorização da memória negra em projeto de lei que municipaliza o edifício histórico
Interditada desde 2008, a escola Antonieta de Barros constitui um patrimônio histórico da capital catarinense. Quem circula pelo centro de Florianópolis, no entanto, não vê a sua importância refletida no edifício: as janelas estão quebradas, há relatos de furtos dentro da construção, o local está completamente abandonado. O destino do imóvel foi definido na última quarta-feira (14) com a aprovação do projeto de lei na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) que autoriza a cessão do imóvel, de propriedade do Estado, à Fundação Cultural de Florianópolis – Franklin Cascaes. Agora, o projeto vai para a sanção do Governo de Santa Catarina, que é autor da proposta.
A construção, que data da década de 1940, abrigou o Colégio Estadual Dias Velho, onde passaram destacados educadores catarinenses, incluindo Antonieta de Barros, que lecionou e foi diretora da instituição. Em 1952, após a morte da jornalista e primeira deputada negra eleita no Brasil, a escola ganhou o nome atual em sua homenagem. “O edifício tem uma história, uma narrativa e a memória das pessoas que pisaram ali, que precisam ser valorizadas ao discutir o seu estado e uso atual”, afirma a historiadora Carol Carvalho.
A criação de um centro de memória e cultura negra de Santa Catarina naquele espaço vem sendo articulada há alguns anos pelo coletivo Antonieta Resiste, constituído por organizações, representantes da sociedade civil e de mandatos antirracistas. A proposta do grupo é que o espaço sirva para eventos, cursos, seminários, exposições, obras teatrais, que estejam vinculados com a memória da população afrodescendente do estado.
“Aquele lugar, aquela construção, é um território que consideramos negro. E lutamos para que essa presença não seja inviabilizada, porque o processo que ocorreu ali foi de gentrificação, de colocar essas pessoas às margens. Queremos essa retomada de espaço e de território”, explica Carvalho, que integra a Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros.
O texto aprovado na Alesc prevê a implantação de um centro de cultura e arte negra, a instalação da sede da Fundação, de um museu dedicado à vida e obra de Franklin Cascaes e o desenvolvimento de projetos culturais no local. Uma emenda da deputada estadual Luciane Carminatti (PT) foi responsável por garantir que ali seja instalado um museu para homenagear Antonieta de Barros.
“Foi necessária muita articulação política e de bastidores para conseguir aprovar o novo projeto de lei de cessão do imóvel agora com uma nova emenda, proposta pelo movimento Antonieta Resiste, que garantirá não somente o espaço público de valorização do povo negro em Santa Catarina – uma dívida histórica do nosso estado -, como também o museu para promover a memória desta grande mulher, negra, professora, jornalista e nossa pioneira entre as deputadas estaduais”, diz a parlamentar.
Articulação do movimento negro garante museu dedicado à Antonieta de Barros
A revitalização do edifício está sendo discutida desde 2017. Na prática, porém, nada foi feito para mudar a situação de abandono. O local foi cedido à Assembleia Legislativa naquele ano para a construção da Escola do Legislativo. O projeto não avançou.
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Dois anos mais tarde, a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) assumiu o prédio com a finalidade de realizar atividades educacionais e culturais, voltadas à comunidade, à qualificação e formação de professores. A Udesc tinha como prazo até o fim deste ano para cumprir os requisitos da cessão do prédio, mas tampouco executou o acordado. Nesta lei, o centro de memória e cultura negra, reivindicado pelo movimento negro, também foi garantido através de uma emenda de autoria da deputada Carminatti.
“Essa conquista é fruto da organização que iniciamos em 2019, em uma audiência pública na Alesc para discutir saídas à situação de abandono do prédio. Foi uma iniciativa nossa pela Comissão de Educação da Alesc, do mandato do então vereador Lino Peres (PT) e da Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros. Reunimos lideranças do movimento negro e do setor cultural. O consenso foi para a destinação do espaço a um centro de valorização da cultura e da memória negra de SC”, relembra Carminatti.
Em maio deste ano, a prefeitura de Florianópolis pediu a doação do edifício histórico. A proposta era fazer um centro cultural para inclusão de jovens, com foco na cultura negra e resgate da história de Antonieta de Barros, além de sediar a Fundação Franklin Cascaes. Após alguns diálogos entre prefeitura, Udesc e o movimento Antonieta Resiste, o PL para municipalização começou a tramitar na Alesc em junho. Porém, com uma novidade em relação ao que havia sido articulado nos bastidores: ele prevê a criação de um museu dedicado à vida e obra do folclorista Franklin Cascaes.
“Ter esse espaço não vai ao encontro do que estávamos pensando. Sabemos que é uma luta, é uma disputa de poder e de espaço. O racismo é estrutural e perpassa diferentes âmbitos da sociedade, inclusive quando pensamos na ocupação de territórios e na reivindicação de uma valorização da cultura e memória negra”, diz Carvalho, bisneta, neta e filha de mulheres negras nascidas na capital catarinense.
Após a aprovação do projeto de lei na última semana, buscamos a Prefeitura Municipal de Florianópolis para entender quais os próximos passos para o edifício. Em nota, o poder executivo informou: “assim que a Prefeitura pegar a chave irá fazer uma limpeza imediatamente e iniciar a documentação para viabilização da reforma. A ideia inicial já era um espaço que valorizasse a cultura negra, mas também um centro de cultura criativa e inovação, unindo o Maciço do Morro da Cruz ao Centro”.
No início de 2023, será realizada uma audiência pública, aprovada através de um requerimento de autoria do mandato da vereadora Carla Ayres (PT), que reunirá as Comissões de Educação da Câmara Municipal de Florianópolis e da Assembleia Legislativa para debater a municipalização do edifício, assim como a construção do centro e do museu.
Centro Leste: população negra foi expulsa por diferentes processos de gentrificação
A região onde fica a Escola Antonieta de Barros, chamada de Centro Leste, foi ocupada historicamente pela população afrodescendente da capital catarinense. Isso é o que demonstra Azâmia Mahin Romão Nogueira, em sua dissertação intitulada Territórios Negros em Florianópolis. No trabalho, através de um resgate bibliográfico, ela conclui que no fim do século 19, especialmente na rua da Pedreira – a atual Victor Meirelles – havia a presença de “escravos, libertos e outros desterrados”. Já nos entornos do Rio da Bulha, sob o qual foi construída a Avenida Hercílio Luz, reuniam-se as lavadeiras. Com a canalização do rio e a urbanização da década de 1920, essa população foi expulsa para o outro lado do rio. Formando ali o “maior bairro popular de Desterro”, localidade conhecida como bairro da Tronqueira.
“Aos poucos, a região sofreu um processo sanitarista, que vem do modelo francês, isso gerou um salto no preço da terra, nos anos 1920 e 1930. Foi um processo de valorização, que cada vez mais foi gentrificado para as bordas. A população que estava às margens dos rios, em sua maioria negros, foi aos poucos sendo empurrada para cima do morro por volta dos anos 1950 e 1960 em diante”, explica o arquiteto e urbanista e professor aposentado pela Universidade Federal de Santa Catarina, Lino Peres.
A região, nos últimos anos, passa por um processo de baixa valorização imobiliária, intensificada com a desativação do Terminal Urbano da cidade de Florianópolis em 2019 e com o aumento da população em situação de rua. Há uma reclamação contínua do setor de comércio por insegurança e falta de circulação de pessoas. E, por ser uma zona histórica, tem uma legislação mais rígida em relação à sua preservação, mas, nos últimos anos, a sua revitalização têm sido uma pauta constante nos debates públicos.
Peres, que trabalha diretamente com os movimentos sociais auxiliando nas ações de planejamento urbano do município, acredita que a escola Antonieta de Barros e o seu entorno oferecem a possibilidade de construir um projeto “belíssimo” de inclusão de pessoas. “Nós estamos lutando para trazer a população negra para o Centro, para que a escola seja o museu da cultura negra. Que seja uma área que inclua a juventude, sirva para habitações e equipamentos que cuidem da população de rua. É um projeto alternativo à tendência de gentrificação empresarial”.
Em entrevista para o Catarinas, o ex-vereador defende que o debate se estenda para além do imóvel.
“Não podemos pensar no prédio em si mesmo, temos que pensar no conjunto daquela região, para que a escola não vire uma peça folclórica, que seria ter um museu da cultura negra ali, mas o entorno só ter pessoas brancas. O entorno da escola tem que ser integrado a essas atividades da cultura negra, com equipamentos voltados à cultura popular, que atraiam a população negra, o setor cultural, a juventude e o turismo”, defende o arquiteto.