Ao longo dos últimos 50 anos, desenvolveu-se um extenso debate sobre a correlação entre população e desenvolvimento. Debate este, frequentemente direcionado para “crescimento populacional” como causa da “pobreza”.
Controvérsias teóricas e políticas marcaram as várias conferências internacionais sobre população entre os anos 50 e os anos 90 do século passado.
Finalmente, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento – CIPD – 94, realizada no Cairo, em 1994, pela ONU, foi admitido como um dos objetivos a estabilização da população mundial, sem deixar de reconhecer, no entanto, a complexidade e indissolubilidade da correlação entre regulação populacional e processos de desenvolvimento. O aumento ou a diminuição do crescimento populacional, tratado como assunto político, muitas vezes invade a liberdade de decisão, do homem ou da mulher sobre o tamanho de sua prole. É, também, uma questão intersetorial abrangendo temas do campo da saúde, econômicos e ambientais. Isto porque, os 3 processos demográficos básicos: mortalidade, migração e fecundidade exigem profundas intervenções nesses campos.
As resoluções adotadas no Cairo enfatizam a promoção da equidade e do bem-estar e o respeito aos Direitos Humanos assim como preconizam ações de promoção da igualdade entre gêneros, classes e etnias, programas amplos de saúde reprodutiva e respeito aos direitos reprodutivos.
Neste texto vamos enfatizar alguns aspectos básicos do conceito de direitos reprodutivos e suas intersecções com a saúde e as políticas públicas, ou ausência delas, voltadas para a superação das desigualdades social e de gênero.
Para o movimento feminista, a partir da conferência do Cairo – 94 onde foi incluída a questão dos Direitos Reprodutivos na agenda de discussões a tensão entre os setores mais conservadores da sociedade mundial foram intensificadas. Entre o foco destas tensões está uma das preocupações mais importantes do feminismo: o questionamento da ordem sexual dominante. A partir desta é que foi construído um ideal feminino segundo o qual é avaliado, julgado e disciplinado o comportamento e o corpo das mulheres e seu uso em todas as nuances de sua vida.
A saúde é, talvez, o mais importante foco desses controles opressivos, pois trás consigo o domínio do corpo e a vivência da sexualidade.
A saúde da mulher, além dos aspectos mais gerais dos fenômenos que ocorrem no ciclo vital de todas as pessoas, inclui de forma predominante os assuntos da reprodução e suas diferentes fases. Muitas vezes a falta de compreensão e a ignorância sobre o aparecimento de episódios como a menarca, a menstruação, a gestação, o parto, o puerpério, o climatério e a menopausa tornaram o corpo feminino motivo de curiosidade e atração. A vida da mulher, marcada pelo sangue, pelos humores, hormônios e alterações cíclicas, foi muitas vezes relacionada aos ciclos da natureza, às fases da lua, aos equinócios e solstícios, aos movimentos da terra e aos rituais da semeadura e da colheita, às deusas da fecundidade e da beleza. Continham uma conotação mística, às vezes até divina, despertando sensações de coisas inalcançáveis e de difícil controle. Toda essa multiplicidade de sentimentos e crenças ao mesmo tempo em que conferiam um sentido poético, sagrado e misterioso, também estimulavam um conjunto de rituais que tanto eram de adoração como de repressão, terror e medo. Nas origens culturais são encontradas diversas lendas que tentavam explicar a fertilidade das mulheres. Quando não eram entendidas geravam relatos fantásticos “de vaginas dentadas ou devoradoras que ameaçavam os homens com seu poder”. (Sanchez, [1984?]) Essas diferentes interpretações da vida sexual e reprodutiva das mulheres transformaram o ciclo vital da fêmea da espécie humana em algo que deveria ser observado com desconfiança e que precisava ser conhecido para ser subjugado. As transformações do corpo feminino tornaram-no objeto de crendices que com o passar do tempo alimentaram os preconceitos e restringiram a vida e a sexualidade das mulheres limitando seus direitos reprodutivos.
Os preconceitos e as discriminações foram validados pelas diferentes culturas, ciências e religiões em todos os tempos.
Na nossa sociedade ocidental judaico-cristã, os principais mecanismos utilizados para a submissão da mulher são a culpa e o pecado. O ato sexual era destinado apenas à reprodução e foi desenvolvido um verdadeiro culto à castidade, à virgindade e ao casamento monogâmico.
O avanço da civilização resultou em novas concepções científicas, a Medicina e a Biologia passarem a ser entendidas como a verdadeira base conceitual das práticas de saúde e das múltiplas formas de intervenção no corpo das pessoas. Estas ciências assumem um papel hegemônico na interpretação e na explicação dos fenômenos ligados à sexualidade e à reprodução.
A religião como forma de opressão sobre a mulher foi substituída pela Medicina:
“A Medicina se situa entre a Biologia e a Política. Entre o “misterioso” mundo do laboratório e a vida cotidiana. É a disciplina encarregada de fazer a interpretação pública dos fatos biológicos, aquela que administra os frutos médicos dos avanços científicos. A Biologia descobre os hormônios; os médicos são os encarregados de anunciar que os “desequilíbrios hormonais” fazem da mulher um sujeito incapaz de desempenhar tarefas públicas. Em termos gerais, pode se afirmar que a biologia se encarrega de rastrear as origens da doença, enquanto os médicos decidem quem está doente e quem não está.”
(Ehrenreich e English, 1980)
Com o passar do tempo a soma destes fatores: uma ciência que nunca foi neutra, a opressão cultural, a religião, a hegemonia do patriarcalismo e a exploração capitalista gestou um quadro de horror. Quadro este que é manifesto na opressão à sexualidade, na normalização da reprodução, na medicalização, na desumanização da assistência, na violência do atendimento ao aborto, seja espontâneo ou não, e na indiferença quando termina o ciclo reprodutivo.
Quando cessou a caça às bruxas, no século XVIII, houve grande transformação na condição feminina. O saber feminino popular caiu na clandestinidade sendo muitas vezes apropriado pelo poder médico masculino que já se tornara hegemônico. As mulheres, dominadas e sem direito e nem acesso ao estudo passaram a transmitir, voluntariamente, a seus filhos valores patriarcais já absorvidos por elas.
O século XIX é um marco na transição entre o passado medieval, a era moderna e a cultura contemporânea. Além das revoluções e lutas libertárias que ocorrem na Europa, aumenta a urbanização, o crescimento das cidades, os aglomerados urbanos e, ao final, a entrada da mulher no mercado de trabalho. No final do século XIX e início do século XX a nova realidade resultante do trabalho produtivo e remunerado das mulheres rompe o limite estrito entre o público e o privado. A relação entre a reprodução biológica (no universo privado) e a venda da força de trabalho (esfera coletiva da produção industrial) fica visível. Surgem os questionamentos sobre as famílias extensas, a família nuclear, patriarcal, e aparece como resultado, a visibilidade da opressão sobre a mulher.
Ainda nesse século, são produzidos os primeiros artefatos de contracepção. Com o transcorrer do tempo os métodos anticoncepcionais aparecem na cena social trazendo consigo as possibilidades de libertação da mulher da obrigatoriedade da concepção, a alternativa do controle populacional, a transgressão aos ditames religiosos de sexo só para a reprodução.
A controvérsia, o debate, o antagonismo estavam instalados e faziam parte integrante do cenário da época.
Outro aspecto que também se desenvolve são os estudos, pesquisas e as novas práticas relativas à contracepção e à concepção.
Em 1960 foi lançada a pílula anticoncepcional. Os eventos na área da reprodução multiplicaram-se de forma acelerada. Vários métodos anticonceptivos de base hormonal, com diferentes vias de administração, processos de tratamento da infertilidade, fertilização “in vitro”, embriões congelados, “úteros de aluguel”, vacina anticoncepcional, entre outros, e os que ainda virão, tornam cada vez mais necessária a definição de novos conceitos e paradigmas que combinem a ciência, a ética, a bioética, o desejo das mulheres de ter ou não ter filhos, o direito de decidir sobre o próprio corpo, o aborto, a religião e a laicidade do estado e da ciência, a saúde física, mental e ambiental e as políticas públicas de saúde e demografia.
Esse complexo elenco de variáveis chegou às esferas internacionais, e às Conferências da ONU sobre População e Desenvolvimento, Direitos Humanos, Meio Ambiente e Mulher, Equidade e Paz.
A discussão e estudo dessas questões remetem, decisivamente, para o campo da saúde e dos direitos humanos. Finalmente, é necessário que se utilize o conceito de direitos reprodutivos. Este conceito é uma construção teórico-conceitual elaborado pelo movimento de mulheres e referendado em Amsterdã em 1984, no “Tribunal Internacional do Encontro sobre Direitos Reprodutivos” que ocorreu no 8º Encontro Internacional Mulher e Saúde. Segundo (AVILA, 1993) “a novidade em relação aos direitos reprodutivos é que são uma invenção das mulheres participando, como sujeitos, da construção de princípios democráticos. O feminismo é o locus político e filosófico dos direito reprodutivos, é, na sua história ocidental, uma luta por igualdade. A ONU reconhece, na Conferência de Nairobi em 1985 que a “promoção dos direitos da reprodução é uma aquisição fundamental das mulheres para uma justa posição na sociedade.
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A partir destas considerações, DIREITOS REPRODUTIVOS são os direitos das mulheres de regular sua própria sexualidade e capacidade reprodutiva, bem como de exigir que os homens assumam responsabilidades pelas consequências do exercício de sua própria sexualidade. A abrangência desse conceito envolve a contracepção, esterilização, aborto, concepção e assistência à saúde. Além do mais é visto na perspectiva dos direitos humanos ampliando o seu sentido e retirando a função da reprodução da esfera privada, avançando para além do planejamento familiar, ou seja, saí do âmbito meramente familiar e passa a se localizar no espaço da sociedade como um todo.
Trabalhar com direitos reprodutivos significa entender que foi ampliada a abordagem sobre o assunto. O Relatório da Conferência do Cairo, 1994, reflete a agenda de prioridades que as mulheres construíram assim como demonstra que elas também redirecionaram o eixo da questão populacional. A partir daí o planejamento familiar perde força como conceito e emerge, com grande destaque o conceito de Direitos Reprodutivos como parte integrante dos Direitos Humanos.
A busca do consenso sobre os conceitos de direitos reprodutivos e direitos sexuais ocupou grande parte da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, – CIPD – 94, Cairo, 1994. (ONU, [1985?])
Ao final, a declaração foi obtida mediante intensa negociação para compatibilizar os antagonismos e ao mesmo tempo resistir à pressão das forças fundamentalistas lá presentes.
Segundo a Plataforma de Ação da IV Conferência Internacional sobre a Mulher. Plataforma de ação, § 96 e CIPD – 94, Programa de Ação, § 7.34:
“Os direitos humanos das mulheres incluem seu direito de controle e decisão, de forma livre e responsável, sobre questões relacionadas a sexualidade, incluindo-se a saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no que diz respeito à relação sexual e reprodução, incluindo-se o respeito à integridade, requer respeito mútuo, consentimento e divisão de responsabilidades pelos comportamentos sexuais e suas consequências”.
E, à luz da CIPD – 94, Programa de ação, § 7.3 :
“Os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos consensuais. Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Os direitos reprodutivos incluem o direito de todos os indivíduos exercerem controle sobre seus próprios corpos e de viverem relações sexuais consensuadas, livres de violência e de coerção, assim como de contraírem matrimônio com consentimento livre e pleno de ambas as pessoas. Os direitos reprodutivos são essenciais para que as mulheres exerçam seus direitos à saúde, incluindo-se o direito a serviços integrais e de boa qualidade, que assegurem privacidade, informação completa, livre escolha, confidencialidade e respeito.”
É perceptível que na linguagem consensual, própria da diplomacia internacional, a formulação não é tão explícita como no conceito de Amsterdã, de 1984, mas mesmo assim foi considerado um avanço, levando-se em conta a conjuntura da época. Apesar de todo o cuidado a Santa Sé expressou sua reserva geral sobre este capítulo que deve ser interpretada nos termos da declaração feita por seu representante na 14ª sessão plenária em 13 de setembro de 1994.
Mesmo com as restrições a inclusão de direitos reprodutivos na perspectiva dos direitos humanos amplia o seu sentido e retira reprodução da esfera privada, avançando para além do planejamento familiar. Contempla a antiga palavra de ordem do movimento feminista: “Filho não é só da mãe, é do pai, da família, da sociedade e do estado”.
Na 4ª Conferência Mundial da Mulher – Igualdade, Desenvolvimento e Paz, Beijing, 1995, as decisões do Cairo 1994, são retomadas e garantidas. Na declaração está explícita a recomendação aos países signatários para revisarem a legislação punitiva sobre o aborto. É sem dúvida um grande progresso para a consolidação dos direitos reprodutivos.
No Brasil, para a efetiva concretização dos Direitos Reprodutivos é essencial analisá-lo no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
O movimento feminista sempre reivindicou programas destinados à promoção, proteção e recuperação dos corpos femininos, independentes do período reprodutivo/gestacional.
Um bom exercício de análise é a verificação dos avanços e recuos dos programas destinados à saúde da mulher. Historicamente, as políticas de saúde da mulher eram vinculadas à maternidade e à infância, os conhecidos “Programa materno-Infantil”.
Em 1983 foi implantado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Um conjunto de estratégias que atuavam em todo o ciclo vital da mulher. Não durou mais do que 10 anos e não chegou a ser implementado em todo o país.
Estudos recentes demonstram que a abordagem predominante, na assistência à saúde da mulher, continua sendo a materno-infantil (com inclusão do planejamento familiar) abrange apenas 18,2% dos municípios brasileiros pesquisados. Ou seja, restritos à Atenção Básica. A situação é mais grave quando a pesquisa aponta que apenas 1,9% dos municípios brasileiros cumprem o que seria a “atenção semi-integral” – categorias que se aproximam das diretrizes propostas pelo PAISM.
Em 2003 o Ministério da Saúde implementou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Um conjunto de Princípios e Diretrizes e um Plano de ação previsto até 2007.
É importante raciocinar que a trajetória de redução das ações integrais da saúde da mulher (que devido ao princípio da integralidade contempla os direitos reprodutivos) nunca foi abandonada pelos que a ela se opõem. Estas intervenções ocorrem de forma marcante tanto no poder Executivo, como no Legislativo e Judiciário.
No Poder Executivo, revolvendo a história do programa vemos que o PAISM nunca chegou a ser implantado na sua totalidade, nem operacional e nem geográfica, depois a PNAISM foi esvaziada pelas diretrizes do Pacto pela Vida, 2006 que por sua vez foi reduzido aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e, agora, para coroar o retrocesso o atual governo reduziu as estratégias, serviços e ações destinadas à saúde da mulher à Rede Cegonha.
No Poder Legislativo nos deparamos com a transformação do Congresso Nacional em um verdadeiro “Tribunal da Inquisição”. Ocorreu a formação de bancadas fundamentalistas como a “Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida e contra o aborto”, “Frente Parlamentar Evangélica” e “Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida” cujos deputados apresentaram PLs como a “Bolsa Estupro”/Estatuto do Nascituro, Disque Aborto, Informações sobre DSDR como crime, CPI do Aborto, criminalização da heterofobia e PLC Lei geral das religiões, PDC “Cura-Gay” e fim do Estado Laico, entre outros.
No Poder Judiciário proliferam liminares impedindo a realização de aborto previsto em lei. Como foi aprovada a questão das células tronco e do aborto por anencefalia (antecipação terapêutica do parto) as bancadas fundamentalistas reagiram com a PEC 99/2011 que na prática é o fim do Estado Laico.
Desta forma, o Brasil, embora signatário das resoluções da Conferência do Cairo – 94, de Beijing – 95, da I CRPD – Montevideo 2013 e que desempenhou um papel relevante nas conferências ainda não tornou realidade, internamente, os compromissos internacionais firmados.
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Ilustração: Charge do cartunista espanhol Joan Tru, feita para as mobilizações daquele país sobre a temática da liberdade e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.