Kennedy Karai tem 27 anos, é professor do ensino fundamental, liderança na Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça, Santa Catarina, e um dos entrevistados da segunda temporada do podcast Alimentação Ancestral: Comida Mbyá-Guarani, lançado na última sexta-feira (9). Karai também foi o responsável por mediar e traduzir os relatos dos demais indígenas entrevistados na comunidade, ouvidos para os três episódios que serão lançados neste mês de junho.

Como liderança, ele atua em questões burocráticas relacionadas à terra indígena e à defesa dos direitos dos povos originários. Karai também denuncia a campanha de desinformação que tem sido levantada por vereadores, deputados e pelo prefeito de Palhoça que cria um ambiente de conflito, além de colocar a população contra a homologação do território do Morro dos Cavalos. A região foi demarcada em 2007.

O podcast faz parte do “Alimentação ancestral: identidade cultural e mitologia na comida Mbyá-Guarani”, projeto selecionado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura – Edição 2022, executado com recursos do estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura.

Confira a entrevista na íntegra.

Como é a sua atuação enquanto liderança indígena na TI Morro dos Cavalos? Pode compartilhar um pouco da sua experiência e da organização da aldeia?

Aqui na TI Morro dos Cavalos sou professor e liderança de território e sou responsável por lidar com burocracias relacionadas tanto à terra indígena quanto em relação à defesa dos direitos dos povos indígenas. Essa é a minha missão aqui. Aqui temos o cacique, o vice e também as lideranças de território. Eu sou uma delas. Para essa organização, analisamos o perfil de cada pessoa e fazemos a divisão de tarefas porque quando se trata de terra indígena há muito a ser feito. Vai desde a organização cultural até processos jurídicos. Então, temos que ter esse modo de organização e não tem nenhum critério específico para isso. Depende de cada um atuar nessa frente para ajudar o povo porque trabalhamos no coletivo. Não se trata só de uma terra indígena, pois quando fazemos algo fora da aldeia carregamos a responsabilidade de estar representando todo um povo.

Quais os projetos relacionados à alimentação são realizados na aldeia? Há algum projeto de reflorestamento em andamento?

Temos um projeto de reflorestamento em parceria com a Funai, com o IMA (Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina) e também o IBAMA no qual fazemos a extração dos pinus que tem na nossa terra indígena porque o pinus é uma espécie de praga. Onde ele cresce ele destrói tudo que tem perto. Então, temos esse projeto para removê-los e para cada pinus removido é plantada uma espécie de árvore nativa no local. Já temos uma área grande de reflorestamento e está bem bonita a mata nativa, está muito legal o projeto. Também temos aqui o projeto da roça Guarani. Aqui trabalhamos muito com essa questão da agrofloresta, em que plantamos mata nativa e também árvores frutíferas, verduras, outras plantas como milho, mandioca, amendoim, melancia. Tudo que é orérembiú eteí, ou seja, nossa alimentação verdadeira.

Entender a importância do nhanderekó é fundamental para entender a alimentação Mbyá-Guarani porque ele orienta várias escolhas de vocês, incluindo aquelas relacionadas à comida. Como você o descreve?

O nhanderekó é a vida bela. É onde você vive em harmonia com todo mundo, para ter uma saúde boa, uma espiritualidade boa. É o que a gente sempre busca. Respeitar para também ser respeitado. Por ainda não termos o encontro com a terra sem males, a gente tenta fazer deste mundo a nossa terra sem mal.  Esse é o modo de vida Guarani.

Qual a relação entre manter esse modo de vida e manter a alimentação ancestral Mbyá-Guarani? 

O nosso modo de vida engloba tudo. Então, está tudo conectado. O nhanderekó vai desde a agricultura, da espiritualidade, aos nossos ensinamentos na casa de reza. Se não tivermos esse conhecimento, o estudo dos nossos mais velhos, também não vamos saber como fazer a produção dos alimentos, não vamos saber como cultivar, o que cultivar, em que período, etc. 

Foto Entrevista Kennedy Karai
Escola Indígena de Ensino Básico Itaty, na TI Morro dos Cavalos. Foto: Fernanda Pessoa.

Como vocês se mobilizam para que esse sistema continue vivo? Especialmente em relação às novas gerações. 

Desde sempre esses ensinamentos são passados de geração para geração. Aqui, quando o homem está passando da fase de criança para adulto ou quando a mulher está nessa etapa, há um acompanhamento em que todos esses conhecimentos são ensinados. Para nós, a mente está captando tudo nesses períodos e por isso acreditamos que eles são perigosos, pois ideias ruins podem surgir. Por isso também costumamos dizer que a casa de reza é nossa primeira escola. É nela que elevamos os conhecimentos para vida e nossos professores são os mais velhos, os conhecedores e portadores desses conhecimentos tradicionais milenares. Além disso, hoje temos uma escola com um currículo diferenciado, uma escola bilíngue, em que conseguimos trabalhar dentro de sala o registro desses ensinamentos por escrito ou vídeos. Conseguimos registrar para ter guardado também para as novas gerações porque com a chegada da tecnologia temos um pouco de dificuldade para fazer com que os jovens acompanhem o nhanderekó.

A mesma ferramenta usada pelos não-indígena para tentar nos derrubar nós usamos para o nosso benefício. 

Qual é considerada a terra boa para os Mbyá-Guarani? Como vocês a descrevem? 

A terra boa é a terra onde a gente consegue ter, digamos, uma abundância. Seja ela em caça, seja ela em alimento plantado, seja ela em medicinas, e seja ela também um lugar onde você possa cultivar tudo isso na tranquilidade. Na paz. Essa é a yvy porã.

Qual a alimentação você considera ideal? 

A alimentação ideal hoje é a alimentação sem agrotóxico. Acho que o agrotóxico é que está matando muita gente, trazendo doenças para os nossos corpos. Acredito que o cultivo de algo sem agrotóxico traz saúde para todo mundo e é algo que mantemos forte nas nossas comunidades, esse cultivo orgânico, porque isso é saúde. Isso nos fortalece. Então, acho que o alimento ideal é o que todo mundo deveria ter acesso, os alimentos orgânicos.

Foto podcast Comida Mbyá-Guarani
Tereza Brizola, mulher indígena entrevista no podcast Alimentação Ancestral, acompanhada de sua família e de Kennedy Karai. Foto: Fernanda Pessoa

Em relação ao território, como está a homologação da TI Morro dos Cavalos? 

Temos a portaria declaratória da demarcação da terra indígena de 1988 hectares, desde 2007. E estamos em busca da homologação, da última etapa desse processo demarcatório em que o presidente assina o decreto de homologação e a União e o Estado tem a obrigação de levantar a quantidade de famílias não-indígenas que estão dentro desse território, fazer a indenização e a readaptação deles. Esse é o ponto em que estamos. Era para a homologação ter saído em abril, mas não aconteceu. Agora tem essa fila de 14 terras para serem homologadas e, segundo o presidente Lula, a qualquer momento pode sair mais uma leva de terras indígenas sendo homologadas.

Quais conflitos relacionados ao território vocês têm enfrentado? 

O estado de Santa Catarina é um estado muito preconceituoso, não só com os indígenas, mas também com o pessoal do Quilombo, do MST, etc. Hoje, principalmente aqui em Palhoça, prefeito, vereadores, deputados e até mesmo o governador do estado estão numa campanha muito forte de espalhar notícias falsas.

O estado está escondendo os deveres que ele tem que cumprir. Ele tem a obrigação de fazer o levantamento das famílias que estão dentro da terra indígena, não nos limites, mas sim dentro e indenizá-las e realocá-las para que não haja nenhum tipo de interferência no modo de vida de cada família. Mas, o estado tem ocultado essa informação e espalhado fake news para a população, criando uma zona de conflito.

Quando vamos no mercado ou até dentro da terra indígena, sofremos ameaças porque quem deveria estar trabalhando para a população, buscando manter a paz e a harmonia, está usando esse poder para semear a discórdia. Isso é algo muito  triste. Temos medo que algo de ruim possa acontecer dentro da nossa comunidade, então buscamos levar a real informação para a população. Sabemos do sofrimento de todo mundo, do que cada um passa, ainda mais se tratando da questão de moradias e terras. Esse é o momento que estamos vivendo. Na esperança que saia essa homologação logo e também buscando garantir os direitos dos moradores não-indígenas que estão aqui dentro, para que eles sejam alocados e também indenizados de modo correto e para que não haja nenhum tipo de conflito. 

Diante desse cenário difícil, como a sociedade pode se aliar e contribuir com essa defesa? 

Estamos lançando coisas na internet, nos jornais, mas por não termos esse diálogo com o município de Palhoça em si, mesmo aqui dentro, não tem um modo específico de conseguir levar essas informações. Então, temos muitas pessoas nos acompanhando nas redes, sejam elas favoráveis ou contrárias à terra indígena, temos usado esses meios. Também estamos levantando novamente a campanha pela homologação do Morro dos Cavalos e lançando mais informações nas nossas redes também. A principal ajuda que a gente está pedindo hoje é que as verdadeiras informações que temos divulgado sejam compartilhadas para o maior número de pessoas. Para que todo mundo possa ter o entendimento do que realmente está acontecendo e saibam que o vereador Pitanta (PSD), o prefeito de Palhoça (Eduardo Freccia – PSD) e os demais que estão nessa campanha de desinformação estão mentindo. Eles estão dizendo que bairros de Palhoça vão desaparecer com a demarcação da terra indígena, sendo que a terra indígena chega a 1% do estado.

Confira a audiodescrição do primeiro episódio:

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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