A cozinheira e cientista social Naomi Mayer, de 26 anos, defende que a comida não se restringe a ingredientes ou nutrientes, por isso o que comemos ou deixamos de comer é um caminho para pensar e transformar o mundo. Na sua dissertação de mestrado em antropologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ela usou o milho avaxi ete’i, variedade de importância cosmológica e culinária para os Guarani Mbyá, como destaque para narrar articulações alimentares, políticas e territoriais acompanhadas na aldeia Takuaty, localizada na Terra Indígena da Ilha da Cotinga, no litoral do Paraná.   

Atualmente morando no Canadá, a cozinheira desenvolve o projeto Fome de Entender, no qual publica conteúdos autorais sobre antropologia da alimentação, etnologia, divulgações científicas, receitas, ativismo alimentar, etc. É uma plataforma em defesa de uma cozinha com autonomia e soberania a todas e todos. Em 2021, ela fez uma palestra no TEDx Talks, levantando uma reflexão sobre o quanto a relação do homem com a comida tem mudado nos últimos milênios e impactado a diversidade das nossas escolhas alimentares. 

Neste bate-papo, a mestra em antropologia conta um pouco sobre a sua experiência e os aprendizados em campo com o povo Mbyá-Guarani da Tekoa Takuaty. Este conteúdo faz parte da divulgação do projeto “Alimentação ancestral: identidade cultural e mitologia na comida Mbyá-Guarani”, selecionado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura – Edição 2022, executado com recursos do estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura. 

Confira a entrevista na íntegra.

Catarinas: Você poderia contar um pouco sobre a tua história, os teus projetos e a tua relação com o povo Guarani Mbyá? 

Naomi Mayer: No presente, a população Mbyá-Guarani é estimada em dezenas de milhares de pessoas, que ocupam de forma não permanente grande parte do território do sul da América do Sul, território no qual estabelecem redes de parentesco e trocas. Minha experiência com os Mbyá ao longo da pós-graduação se deu entre as aldeias localizadas no litoral do estado do Paraná, e concentrou-se em Takuaty, Tekoa que fica na Ilha da Cotinga, na cidade de Paranaguá. Partindo da perspectiva de que a comida de uma sociedade, assim como a linguagem, é um caminho de investigação antropológica que, potencialmente, leva ao entendimento de outras camadas daquele contexto, parti de um interesse inicial em estudar as mudanças alimentares relacionadas à proximidade destas aldeias do litoral paranaense (em situações de demarcação distintas entre si) com o Porto de Paranaguá, notório exportador graneleiro e cuja atividade gera debates sobre questões ambientais e de território. No início do mestrado conheci Juliana Kerexu, cacique de Takuaty, e compartilhei com ela estas ideias iniciais, que foram bem recebidas e, coletivamente, entendemos que Takuaty seria um campo bastante interessante para pensar sobre a alimentação Mbyá, com isso, iniciamos nossa relação, que só se fortaleceu com o passar dos anos e segue, mesmo com o fim do vínculo de pesquisa acadêmico. 

Naomi Mayer junto aos avaxi ete’i mantidos pelo povo Mbyá-Guarani da Tekoa Takuaty. Foto: Arquivo.

Catarinas: Qual a importância de compartilhar o alimento entre os Mbyá? Como eles praticam e entendem a comensalidade? 

Naomi Mayer: A comensalidade de todo grupo social é implicada por questões que ultrapassam em muito um mero ato de nutrição biológica, individual, funcionalista e automática, e relaciona-se com o que chamamos de cosmologia, ou seja, o modo particular através do qual uma sociedade (seja uma sociedade indígena ou “nós”) compreende e significa o mundo que está à sua volta: se na nossa cosmologia juruá (palavra Mbyá para designar homens brancos) o território, as vidas animais e os recursos naturais, fundamentais para qualquer produção agroalimentar, são tratados como mercadoria, como elementos infinitos que estão à disposição da exploração desenfreada, e insustentável, nas cosmologias indígenas há um entendimento radicalmente distinto sobre o que é a natureza que, por conseguinte, baseia uma relação radicalmente distinta com a prática alimentar. O trabalho de pesquisa etnográfica permite um olhar aproximado sobre estas nuances. Durante o meu trabalho de campo, creio que um dos grandes destaques nesse sentido está na maneira com que o entendimento Mbyá sobre questões de corporalidade e produção de corpos (coletivos e individuais) se manifesta e se alimenta, literalmente, através da comensalidade, explico: além das restrições alimentares relacionadas a diferentes momentos da vida (por exemplo, os impedimentos alimentares e comportamentais que envolvem todo o grupo familiar de uma pessoa gestante, em prol do bom desenvolvimento do bebê) o ato de comer juntos, e comer tipos específicos de alimentos, é fundamental para a manutenção da práxis Mbyá, daquilo que se costuma traduzir como um “bem viver”. Assim como existem palavras ou histórias que os Mbyá simplesmente não compartilham com os juruá, há alimentos ou práticas alimentares que se restringem às pessoas Mbyá. 

Catarinas: Na cultura Mbyá, quem domina a arte de preparo dos alimentos? Como é o cotidiano na cozinha e como a comunidade se envolve? 

Naomi Mayer: Assim como acontece entre vários outros povos indígenas, a centralidade da atividade culinária entre os Mbyá é feminina, não de forma exclusiva, afinal, há homens que gostam de cozinhar e quase todos se envolvem nas atividades agropecuárias ou transações comerciais que definem a obtenção de alimento, seja abrindo uma roça, indo à cidade comprar carne ou saindo pescar. Agora, quando se trata do ato de transformar alimento em comida, ou seja, cozinhar, são as mulheres quem notoriamente detêm os conhecimentos e organizam a vida alimentar de uma tekoa. 

Catarinas: O título da sua dissertação inicia com a frase “Enquanto existir o avaxi, vão existir os Guarani”. Você poderia explicar a importância do avaxi na comunidade que você acompanhou e a razão da escolha desta frase? 

Naomi Mayer: O título da minha dissertação tem relação direta com o momento político pelo qual Takuaty estava passando ao longo do trabalho de campo, como uma aldeia recém fundada, por uma jovem cacique mulher, havia muitas inseguranças em relação a permanência da aldeia, e, na contramão, um dos elementos de força era o cultivo do avaxi. No momento do trabalho de campo, cresciam nos campos de Takuaty as primeiras espigas que lá puderam plantar, e, essa relação muito mais qualitativa do que quantitativa, servia como alimento para a esperança de um futuro com mais tranquilidade. Há muito se sabe na literatura etnológica da importância que as espigas de milho têm entre esta população, nos notórios deslocamentos territoriais Guarani, as mulheres sempre levam consigo espigas, trocam sementes com parentes por onde passam, e sempre guardam algumas, como se as sementes fossem promessas. Essa frase em específico surgiu quando Kerexu estava me contando princípios mitológicos da cosmologia Mbyá, na qual há esta história sobre um tempo muito antigo, quando as divindades deram-se conta de que os Mbyá estavam sofrendo nesta terra, passando por muitas dificuldades, para saná-las, as divindades uniram-se e, cada uma com sua perspectiva distinta, deu uma semente para montar essa espiga multicolorida e diversa. Cada grupo Mbyá recebeu uma espiga, junto da orientação de mantê-las sempre, de modo a garantir a resistente existência Mbyá neste mundo que é, por tantas vezes, adverso para eles. 

Avaxi ete’i: milho criolo da aldeia Takuaty, na Ilha de Cotinga, Paraná. Foto: Arquivo.

Catarinas: Qual alimento feito com avaxi se destaca mais entre os Guarani? Essa importância tem relação com alguma cerimônia? 

Naomi Mayer: Em Takuaty, assim como em muitas outras tekoa, o atual cultivo de avaxi não é suficiente para alimentar de maneira quantitativa a todos, por um longo período, por isso digo que é uma relação qualitativa e, dessa maneira, o consumo cotidiano de milho se vale de fontes e ingredientes não indígenas, como o milho transgênico. Assim sendo, os preparos com avaxi costumam ser destinados a momentos de colheita ou, quando são coincidentes, com a realização da cerimônia do Nhemongarai, traduzido para nosso entendimento juruá como o “batismo do milho”, no qual as sementes são “benzidas” e, concomitantemente, as crianças recebem da pessoa xamã seus nomes Guarani, que têm relação com a origem de suas almas. O notório alimento feito de avaxi, para o Nhemongarai, é o mbojapé, uma espécie de “bolinho” de milho, que por vezes também é acompanhado de uma bebida feita através da fermentação das sementes mascadas do milho. 

Catarinas: Na sua participação no TEDx Talks, você afirmou que os alimentos carregam histórias. Quais histórias o avaxi conta a partir do seu cultivo e preparo entre os Mbyá? 

Naomi Mayer: Assim como vários outros cultivos crioulos mantidos por populações indígenas no território brasileiro, à revelia das violências promovidas pelo Estado que, desde sua raiz, privilegia grandes latifundiários mantenedores de monoculturas destinadas à exportação, creio que a história que o avaxi carrega é uma história de resistências. Resistência diante da padronização empobrecedora que o colonialismo e capitalismo promovem no sistema do agroalimentar (a grande responsável por desconhecermos estas espigas coloridas e multidiversas e pensarmos que milho é só aquele amarelinho e alinhado. Resistência diante de um projeto de país que há 500 anos tenta exterminar a diversidade de povos, culturas e culinárias do nosso território. Resistência diante de uma divisão de terra que mantém métricas coloniais de concentração fundiária. Resistência diante de uma ideia obsoleta sobre o que é ser indígena em 2023. Resistência diante de um modelo hegemônico que trata a natureza como mercadoria e põe em risco a existência da humanidade. Como eu também disse no TEDx, se houver algum futuro, só o alcançaremos se finalmente ouvirmos estas vozes ancestrais, que soam como futuras, nos ensinando sobre comensalidade, coletividade e, radicalmente, sobre uma relação outra com a vida. 

Catarinas: Como cozinheira, qual foi o seu maior aprendizado com os Mbyá? 
Naomi Mayer: Tanto em formações clássicas em cozinha quanto nos ambientes profissionais, é comum pensar os ingredientes como simples insumos, como caminhos através do qual preparar uma boa refeição, avaliando seus aspectos culinários e nutricionais, quando muito, por estes motivos, tendo uma relação mais próxima com um agricultor ou fazendeiro que os fornece. Em uma das primeiras conversas que tive com uma Mbyá sobre meu interesse em pesquisar a alimentação, ela prontamente perguntou se minha intenção era “aprender receitas para levar ao meu restaurante”, uma possibilidade que, ao longo do trabalho de campo, se mostrou muito distinta da percepção Mbyá sobre os aprendizados em torno do alimento. Um primeiro aspecto, é que este aprendizado assemelha-se, por exemplo, ao aprendizado das técnicas de trançar miçangas para criar pulseiras, brincos e colares com padrões complexos e belos, baseado em observação, que conecta mulheres e crianças no cotidiano, assim como os preparos de alimentos: ouvi com frequência menções a memórias de receitas que as avós, mães costumavam fazer. Outro aspecto é relacionado à dimensão da construção do corpo e da coletividade, pois os alimentos partilhados, principalmente aqueles como o avaxi, são incorporados a partir de um entendimento particular (como no caso da gestação), e com significados de resistência.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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