Uma das lideranças indígenas mais reconhecidas no estado de Santa Catarina, Kerexu Yxapyry, foi oficialmente nomeada secretária de direitos ambientais e territoriais indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, em 8 de fevereiro. Professora e gestora ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Kerexu tem traz em sua trajetória a luta pela educação e proteção dos povos indígenas e pela demarcação da sua Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC). Em 2022, foi a primeira indígena catarinense candidata a deputada federal, alcançando 35 mil votos.  

‘Estou no início do trabalho e bem feliz. Quero agradecer a todos, principalmente ao meu povo e à comunidade da TI do Morro dos Cavalos, que me colocam neste lugar. Agradeço aos companheiros de luta que estiveram comigo. Estamos aqui para falar das questões ambientais e territoriais. E podemos fazer uma articulação dentro do estado a partir dessas áreas. Estou à disposição para conversar, dialogar e ouvir qualquer situação nesse sentido”, disse em entrevista ao Catarinas.

No ano passado, ela integrou a equipe de transição do Governo Federal, participando da construção das pautas prioritárias para os 100 dias de Governo, entre elas a emergência na saúde pública do povo Yanomami. Nesta entrevista, conversamos sobre as urgências da gestão, que incluem a demarcação de terras, a resolução de conflitos, a proteção de territórios e das lideranças indígenas. A liderança também fala sobre a violência contra a mulher indígena, tão evidente na situação Yanomami, mas que está presente em outros povos e territórios. Por fim, também comentamos como funciona a sua pasta, que trabalhará em articulação com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Kerexu Yxapyry fala sobre as prioridades do Ministério dos Povos Indígenas
Kerexu Yxapyry (centro), junto com ministra Sônia Guajajara (esq.) e deputada federal Célia Xakriaba (dir.).
Foto: Equipe Kerexu/Divulgação.

Catarinas: Como a presença indígena no novo governo ajudou a visibilizar a emergência do povo Yanomami?

Kerexu Yxapyry – Antes do Ministério dos Povos Indígenas, a gente trouxe, como Articulação dos Povos Indígenas (APIB), através de uma construção de lideranças, essa denúncia. Durante a transição, foi criado um alerta e foram trazidas as prioridades que deveriam ser atendidas nos primeiros 100 dias de Governo. O caso dos Yanomamis é uma das prioridades para esses primeiros dias. O Ministério dos Povos Indígenas tem este papel de atuar como Governo e somar nesta luta, junto ao Presidente da República, apontando os caminhos. Tudo isso é feito com diálogos interministeriais, como o Ministério da Justiça e da Saúde. Hoje, foi criado um gabinete de crise onde vários ministérios, várias secretarias, conversam e tiram demandas para definir a responsabilidade de cada um. O Ministério dos Povos Indígenas está aqui para defender os direitos indígenas e o cumprimento da lei.

Catarinas:  Qual é a situação atual, três semanas após a declaração de emergência de saúde no território Yanomami, e quais as próximas ações emergenciais para socorrer o povo Yanomami?   

Kerexu Yxapyry – Quanto mais conhecemos a situação, mais crítica ela vai ficando. A nossa ministra esteve esta semana lá e é uma calamidade humanitária. Para você ter uma ideia, quando eu tive o primeiro contato, quando conversei com os agentes de saúde, o que foi mostrado para mim é desumano. Fiquei duas noites sem conseguir dormir, fechava os olhos e enxergava o que tinha visto. Acabava tendo pesadelos. Era muito forte. Mas a sociedade está muito mobilizada. Os ministérios estão mobilizados, o próprio presidente foi até o local, e tem uma mobilização bem grande para trazer esse atendimento e esse olhar para o povo Yanomami. Mas tem muita coisa para fazer. Dentro do gabinete de crise, pensamos em algo emergencial, mas também em projetos a médio e a longo prazo. Além de fazer esse cuidado emergencial com as pessoas, ainda tem a questão do garimpo, da retirada dos garimpeiros. Depois tem a retomada desses espaços, a recuperação do solo, do rio, da mata. É um desafio muito grande pela frente e por muito tempo.

Kerexu ao lado do presidente Lula no último Acampamento Terra Livre.
Foto: Rodrigo Duarte/Apib/Coletivo Proteja.

Catarinas: Em 2021, o Catarinas publicou uma reportagem com relatos de 13 mulheres indígenas que denunciaram diversas violências de gênero sofridas em seus territórios. Uma delas disse que “a Lei Maria da Penha não chega a ser validada nas aldeias”. Com as disputas pelo território Yanomami os abusos cometidos pelos garimpeiros também entraram em pauta. Há previsão de alguma ação conjunta entre os ministérios das Mulheres e dos Povos Indígenas para proteger as mulheres indígenas da violência patriarcal?

Kerexu Yxapyry – O que está acontecendo agora, essas ações são entre ministérios e estão dentro das propostas dos 100 dias do próprio Governo. Quem está dando o comando das atividades, junto com o Ministério, é diretamente a Casa Civil, que faz as articulações para agir no local. A partir daqui começamos a criar toda uma proposta de trabalho. E, a questão das mulheres, é muito forte. Todas são muito fortes, mas agora nós temos muitas vítimas que são acometidas por uma violência intensa, através dos abusos, das mortes, das mulheres que engravidam e que não conseguem ter a gestação por conta das muitas doenças. É muito sofrimento. Nós viemos conversando, colocando na mesa tudo isso. Temos um trabalho que vamos fazer após esses 100 dias, e vamos afunilando especificamente para algumas áreas. E a questão da mulher tem sido trazida com muita força dentro dos debates.

Catarinas: Você atuou no governo de transição, trazendo prioridades para os 100 dias de governo. Entre estas prioridades para o Ministério dos Povos Indígenas, o que você gostaria de destacar?

Kerexu Yxapyry – Temos a questão da demarcação das terras e dos territórios indígenas transfronteiriços. Uma região que precisamos estar em alerta é a Terra Indígena Avá-Guarani, que fica na região entre Paraguai, Argentina e Brasil, na tríplice fronteira. Tem a questão desse impacto da Itaipu, uma binacional, que afetou diretamente a terra indígena. Eles também têm uma identidade compartilhada com os outros países, e além dos territórios perdidos, eles enfrentam a negação do direito nestes países onde o povo Avá-Guarani percorre. Estamos trazendo a questão da violência, dos abusos das mulheres, os roubos de crianças. Temos tráfico de drogas na região e muito suicídio. Estas questões também são prioridades. Temos a problemática do agronegócio, na região Sul e no Mato Grosso do Sul, que envolvem arrendamento de terras. Tem a questão da segurança, da proteção territorial e das lideranças. Esse é outro caminho que estamos trabalhando, que surge, principalmente, com a demarcação de terras. Essas são algumas pautas prioritárias e que estamos trabalhando agora, durante esses 100 dias de governo.

Catarinas: Muito se fala da ameaça do garimpo ao povo Yanomami, e aqui na região Sul, quais as ameaças que os povos indígenas da Mata Atlântica enfrentam? E os povos do interior?

Kerexu Yxapyry – São várias. Temos as ameaças principais que estão dentro desta rede do agronegócio. Há as invasões de agricultores vinculados ao agronegócio dentro das terras indígenas. Há também a questão dos arrendamentos de terras, que por vezes envolve cooptação de lideranças, como está acontecendo no Rio Grande do Sul. Criamos uma sala de emergência com o povo Kaingang de Guarita, que vive sob conflito, ameaças e passa por uma crise sanitária bem forte. Outra questão da região litorânea são as ameaças com os empreendimentos, sejam eles de rede hoteleiras, estradas, etc, que passam pelas terras indígenas. Na região de Entre Rios, em Chapecó, existe também um garimpo muito atuante em busca de pedras preciosas, principalmente nas regiões entre a terra indígena e o município. São questões pontuais e específicas de cada região, mas essa ameaça e perseguição existe em todos os lugares.

Atualmente, Kerexu é secretária de direitos ambientais e territoriais indígenas. Foto: Mídia Ninja/Divulgação.

Catarinas: Como funciona a Secretaria de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas?

Kerexu Yxapyry – A Secretaria de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas trabalha especificamente com a demarcação de terras e com a proteção territorial. A Funai, que agora está dentro do Ministério dos Povos Indígenas, faz a demarcação de terras. O que muda é que o Ministério dos Povos Indígenas faz o papel que o Ministério da Justiça fazia anteriormente. Nós fazemos a análise do processo. Uma rede de advogados e procuradores estarão junto com a gente para fazer análise dos estudos, a partir do momento que a Funai fizer a identificação da terra. Passando por essa análise jurídica, a Ministra dos Povos Indígenas faz a portaria declaratória da terra indígena. Com a proteção territorial é a mesma coisa, passa pela Funai, que faz todo um planejamento das atividades e a Secretaria realiza a demanda.

Catarinas: Podemos dar um exemplo na prática? Em relação à Terra Indígena do Morro dos Cavalos, qual é a atual situação da sua demarcação e como a Secretaria vai articular para que o território seja finalmente demarcado?

Kerexu Yxapyry – Na verdade, a questão do Morro dos Cavalos já está bem adiantada. O que vamos fazer pela Secretaria é encaminhar o documento que já existe, porque todo o processo jurídico já está na Casa Civil. A questão da concessão territorial, por exemplo, temos que encaminhar para que aconteça o ressarcimento do valor para as famílias que moram dentro da terra indígena, os posseiros. É essa a articulação que fazemos depois da homologação. Já estamos articulando tudo para fazer isso, com o mapeamento dos moradores que estão ali. Já existem pessoas em campo fazendo a proteção territorial, fiscalizando e protegendo o território. Isso já está acontecendo no Morro dos Cavalos. É um processo bastante avançado, que está praticamente aguardando a assinatura do presidente. Estamos acompanhando e fazendo as demandas para que mais servidores possam ir a campo. Podemos mobilizar a Polícia Federal, o Ministério Público, e demais instituições para irem a campo. Conseguimos articular junto com a Advocacia-Geral da União, inclusive casos graves. No Morro dos Cavalos atuamos mais na proteção territorial, mas estamos alertas.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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