Em fevereiro de 2022, a Corte Constitucional da Colômbia descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gravidez. Neste setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil também pautou a descriminalização do aborto voluntário, até a 12ª semana. A relatora, Rosa Weber, votou a favor da ADPF 442, mas o julgamento foi adiado para um formato presencial pelo ministro Luís Roberto Barroso. 

A ação na Colômbia foi liderada pelo Movimento Causa Justa, composto por mais de 100 organizações.

Em 2020, quando o movimento foi lançado e a demanda levada à Corte, cinco grupos estavam à frente: A Mesa pela Vida e pela Saúde das Mulheres, Católicas pelo Direito de Decidir, Centro De Direitos Reprodutivos, Grupo Médico pelo Direito de Decidir e Women’s Link Worldwide (Link Feminino em Todo o Mundo).

Naquele momento, a legislação sobre o aborto na Colômbia era semelhante ao cenário atual do Brasil. O aborto não era considerado crime em três situações especificas: violência sexual, risco a vida da mulher e feto sem chance de vida extrauterina – no Brasil, a regra só é válida para fetos anencéfalos -, mas, mesmo nesses casos, havia dificuldades para acessar o direito. Também havia um congresso conservador que impedia que debates sobre aborto legal avançassem. Por isso, a estratégia foi acionar a Corte Constitucional.

Causa_Justa_o_Brasil_é_nossa_nova_esperança_de_descriminalizar_o_aborto_na_América_Latina_ADPF_442_STF
Dia da descriminalização do aborto na Colômbia | Crédito: Causa Justa.

Conversamos com Catalina Martinez Coral que integra o movimento Causa Justa e o Centro de Direitos Reprodutivos, sobre os processos na Colômbia para descriminalização do aborto, cenário atual no país e as semelhanças com a situação no Brasil.

Ela desempenhou papel importante em casos significativos, como o Paola Guzmán Albarracíno, primeira decisão pelo reconhecimento do direito à educação sexual e reprodutiva para meninas e adolescentes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2020. Assim como a intervenção que levou à descriminalização do aborto em três circunstâncias perante o Tribunal Constitucional do Chile em 2017.

Confira a entrevista:

Catarinas: No Brasil temos um cenário semelhante ao da Colômbia antes da descriminalização do aborto pela Suprema Corte. Quais foram as principais estratégias utilizadas por vocês para descriminalizar o aborto na Colômbia?

Catalina: Na Colômbia, tivemos um cenário, como você disse, muito parecido com o do Brasil. Tínhamos um contexto de três motivos [risco à vida da gestante, estupro e feto sem chance de vida fora do útero] para poder ter acesso ao aborto. Durante os 15 anos que perdurou esse sistema, havia muitas barreiras para ter acesso ao serviço de saúde.

Por exemplo, sabíamos que apenas entre 1 e 12% dos abortos realizados no país eram feitos através do sistema de saúde e todo o resto era feito clandestinamente e, em muitas vezes, de forma insegura. Também sabíamos que os processos contra as mulheres não haviam sido encerrados ou reduzidos após o modelo das três causas. Desde 2006, quando passaram a valer os permissivos legais, até 2020, quando iniciamos todo o movimento da Causa Justa, havia mais de cinco mil processos abertos contra mulheres pelo crime de aborto no país.

Levando em conta esse cenário, utilizamos diversas estratégias para conseguir avançar na descriminalização. Primeiro, apresentamos uma ação de inconstitucionalidade perante o Tribunal Constitucional para declarar a inconstitucionalidade da criminalização e, então, regular este serviço através de iniciativas de saúde.

Tendo em conta que a criminalização do aborto viola direitos fundamentais das mulheres e das pessoas com capacidade reprodutiva, como o direito à autonomia, à liberdade de consciência, à igualdade, à saúde, à vida, entre muitos outros. 

Também montamos estratégias de mobilização e comunicação que procuraram sensibilizar a opinião pública sobre esta questão. Fizemos pedagogia para explicar porque é que esta era uma questão de direitos e um assunto importante, mas, acima de tudo, para passar uma mensagem para a sociedade de que muitas de nós estávamos em busca dessa mudança legal, porque tínhamos certeza de que era o justo. 

Isso foi muito importante para contribuir com o que chamamos na América Latina de “descriminalização social do aborto” e para garantir que esta conversa seja nacional, que os nossos assuntos estejam na agenda pública e no centro da democracia. Isso enviou uma mensagem forte ao Tribunal de que a sociedade colombiana estava preparada e pronta para dar este passo muito importante que foi a descriminalização.

O nome do movimento de vocês é muito simbólico. Por que dizemos que a luta pela descriminalização e acesso ao aborto livre é uma Causa Justa?

O nome Causa Justa é, sem dúvida, muito simbólico, porque é uma causa pelas liberdades, pelo direito de decidir, pelo acesso ao aborto livre, seguro e gratuito. Ou seja, é uma causa justa porque se trata de reduzir as desigualdades que existem na sociedade no que diz respeito aos direitos reprodutivos e, especificamente, ao aborto. Então, basicamente, porque é uma causa justa.

Percebemos que o fato do crime de aborto existir era completamente discriminatório, desnecessário, ineficaz e injusto. 

Discriminatório por perseguir apenas as mulheres e outras pessoas que podem gestar, principalmente aquelas que viviam em situação de maior vulnerabilidade. Isso criava uma dupla discriminação, porque as mulheres que iam para a prisão ou morriam, devido à existência deste crime no país, eram as mulheres que viviam na pobreza, que faziam parte de algum grupo vulnerável, ou de algum tipo de comunidade que historicamente foi discriminada. Isso era completamente injusto e precisávamos mudar essa situação.

Era desnecessário e ineficaz porque se o objetivo do crime era supostamente proteger a vida pré-natal, isso não ocorria, porque o crime do aborto não dissuadia as mulheres de procurarem um aborto, mas empurrava-as para a clandestinidade e, muitas vezes, para situações de insegurança. Isso era muito injusto porque, novamente, sabíamos quem eram aquelas mulheres que estavam morrendo no país.

E por último, era um crime super desigual porque perseguia a nós, mulheres, e não nos permitia tomar decisões tão íntimas e pessoais sobre maternidade, o que, sem dúvida, nos colocava numa categoria de segunda cidadania, porque não estávamos conseguindo tomar as decisões das nossas vidas.

Por todas estas razões consideramos que a nossa causa é a mais justa e pacífica de todas.

Causa_Justa_da_Colombia_o_Brasil_é_nossa_nova_esperança_de_descriminalizar_o_aborto_na_América_Latina
Celebração de um ano da descriminalização do aborto na Colômbia | Crédito: @victoriaholguin.

Como na Colômbia, a Suprema Corte brasileira irá julgar uma ação que pode descriminalizar o aborto. Um dos argumentos que está sendo usado por conservadores contrários ao direito ao aborto no Brasil é que este não é um tema da Suprema Corte, somente do Congresso. Houve comentários semelhantes na Colômbia? O que você tem a dizer sobre esse argumento?

Na Colômbia também houve críticas de movimentos conservadores sobre o uso do tribunal para avançar no reconhecimento do direito e não no Congresso. Para isso, respondemos de diversas formas, todas legítimas. A primeira coisa é que nossas cortes constitucionais na América Latina são chamadas a realizar uma revisão da forma como a nossa legislação, incluindo a penal, está se adaptando aos valores supremos de nossas constituições.

Então há, sim, uma competência por parte de nossos tribunais e, neste caso por parte do Supremo Tribunal Federal no Brasil, para decidir se o crime de aborto está de acordo ou não com os direitos constitucionais reconhecidos no país. Isso foi basicamente o que fizemos na Colômbia. Podemos questionar se um Código Penal está ou não está se adaptando ao que são os direitos fundamentais reconhecidos pela nossa Constituição. 

A segunda questão é que no Congresso da Colômbia, como ocorre no Brasil, não havia espaço para debater os temas de nossos direitos reprodutivos. Antes de tentarmos essa ação constitucional na Corte, tentamos apresentar mais de 17 projetos de lei e nenhum chegou nem sequer a debates. Então, não havia uma favorabilidade do Congresso e, quando se trata de direito, precisamos avançar, porque os direitos não nos esperam e nossas Cortes têm toda a competência e toda a legitimidade de tomar decisões como sobre o aborto.

Mesmo com a descriminalização do aborto na Colômbia, as pessoas enfrentam barreiras para acessar o procedimento? E ataques que tentam criminalizar novamente a interrupção da gravidez? Como vocês estão organizadas agora para garantir que o direito ao aborto seja mantido e acessado pelas pessoas?

A decisão sobre o aborto na Colômbia não mudou completamente o cenário, ainda existem múltiplas barreiras de acesso ao serviço e muitas forças que tentam nos fazer recuar, mas estamos organizadas em diferentes frentes.

A primeira coisa é que estamos organizadas para mapear tudo o que está acontecendo, tanto no tribunal, quanto no Congresso, que pode representar um perigo, um risco de retrocesso, e estamos respondendo em tempo hábil e eficaz.

Respondemos a tudo o que chegou no Tribunal e no Congresso, não permitimos que nada prejudique esta decisão e isso exige um trabalho coordenado de muitas organizações, não só aquelas que levaram o caso, mas muitas outras que fazem parte do movimento, com as quais estamos constantemente monitorando. 

Causa_Justa_Colombia_o_Brasil_é_nossa_nova_esperança_de_descriminalizar_o_aborto_na_América_Latina
Celebração de um ano da descriminalização do aborto na Colômbia. No cartaz está escrito “Nossas avós nos deram o voto. Nossas mães, o divórcio. E nós as demos a sentencia C-055-22” | Crédito: @victoriaholguin.

A segunda é que estamos trabalhando em estreita colaboração com o governo nacional e com o executivo do país para poder implementar esta decisão. Já emitimos uma política pública sobre como essa decisão deve ser implementada em todo o território nacional e atuamos com o executivo para que seja finalmente implementada em todo o território.

O mais importante para mim é que continuamos trabalhando na descriminalização social, a fazer parte de um movimento, a promover campanhas de comunicação, a mobilizar, continuamos a sair às ruas, a fazer eventos de socialização e pedagogia, porque em última análise, o que queremos é poder chegar à mente e ao coração das pessoas, de maneira que entendam e sejam favoráveis. Queremos que as pessoas nas ruas e nas comunidades do território colombiano, entendam por que esta é uma questão de direitos.

Neste mês que marca a luta latino-americana e caribenha pela descriminalização e legalização do aborto, qual mensagem você gostaria de deixar para nós, brasileiras?

O Brasil é a nossa nova esperança, todas estamos de olho no que vai acontecer. Sabemos que o tribunal vai tomar uma decisão favorável aos direitos das mulheres, à igualdade, à liberdade das pessoas, à cidadania plena e à democracia, porque é isso que significa uma decisão de descriminalizar o aborto.

Por isso, estamos todas muito entusiasmadas e emocionadas, as acompanhando nesta luta e esperamos que isso não só fortaleça a instituição legal e democrática brasileira, mas que seja mais uma gota para continuar fortalecendo este movimento feminista, esta maré verde que continua a crescer em toda a região da América Latina e do Caribe.

Estamos com vocês colegas e esperamos que tudo corra da maneira mais maravilhosa possível para vocês e para todas nós, porque o que é de uma, é de todas.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

Últimas