Em 2013, uma jovem mãe da zona rural de El Salvador, em extrema pobreza e com lúpus, lutou contra o Estado salvadorenho para conseguir interromper uma segunda gravidez, após o feto ser diagnosticado com anencefalia e por representar risco à sua vida. Ela precisou recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) para acessar o procedimento, mas o atraso para que a jovem realizasse o aborto, provocou sequelas na saúde. Em 2017, a jovem faleceu após os problemas de saúde agravarem as consequências de um acidente de trânsito. Dez anos depois que recorreu ao órgão, o caso Beatriz vs. El Salvador será julgado em uma audiência da Corte IDH entre os dias 22 e 23 de março.

Os grupos que levaram a história de Beatriz à Corte IDH são a Associação Cidadã pela Descriminalização do Aborto, o Coletivo Feminista para o Desenvolvimento Local (CFDL), o Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e o Ipas – América Latina e Caribe. As organizações querem honrar a memória de Beatriz e exigir a reparação integral dos danos à família. Também pedem medidas de não repetição para garantir que nenhuma menina ou mulher seja obrigada a passar pelo que Beatriz passou, além da modificação da legislação do aborto no país, que ameaça a vida de milhares de salvadorenhos.

Ao Catarinas, o irmão de Beatriz, Humberto, que utiliza somente o primeiro nome em ações relacionadas ao caso, conta que após o falecimento da irmã, a família assumiu a batalha que iniciou em 2013, por entenderem que essa é uma luta justa. “Esperamos que haja a justiça que Beatriz esperava, que a corte dê uma decisão favorável à família, que o Estado seja condenado pelas violações que minha irmã sofreu e que o Estado cumpra e repare os danos causados a Beatriz, ao filho dela, que ficou sem a mãe que precisava tanto, e a família”, destaca.

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Humberto, irmão de Beatriz, junto as organizações que apoiam o caso | Crédito: Organizações colaboradoras do Caso Beatriz.

“É um momento histórico. Uma das frases que usamos em toda nossa luta é que ‘Beatriz é nossa força pelo direito de decidir’ e dizemos isso porque Beatriz é a mulher que se atreveu”, descreve Sara García, coordenadora de Incidência Política da Associação Cidadã pela Descriminalização do Aborto, ao Catarinas.

Garcia faz parte das organizações que, junto da família de Beatriz, lutam há dez anos para que o Estado de El Salvador seja responsabilizado pelas violências sofridas pela jovem. “Dez anos depois, estamos na Corte para exigir justiça e que isso não se repita. Para nós, esse processo é de esperança e que pode possibilitar grandes transformações, para que mulheres não enfrentem o mesmo de Beatriz e da possibilidade da descriminalização do aborto”, destaca.

As organizações ressaltam que este é o primeiro caso que chega a uma audiência da Corte IDH relacionado unicamente ao direito ao aborto. “Uma sentença por parte da Corte é de comprimento obrigatório”, explica a integrante da Associação Cidadã. A corte é parte da Organização dos Estados Americanos (OEA), integrada por 35 países, incluindo o Brasil. Uma decisão incide sobre todos os países membros.

“Nós somos de uma região que segue restringindo o nosso direito e consideramos fundamental que o caso chegue à Corte, porque as sentenças deverão ser atacadas por todos os Estados. Será uma forma de mudarmos a realidade, não só para nós de El Salvador, mas para todas as mulheres que lutam e buscam justiça nos países que o aborto está totalmente restringido”, contextualiza a entrevistada.

A coordenadora de Incidência Política considera como um fato histórico a chegada do caso à Corte IDH. “A jurisprudência que esperamos que se gere, colocará no centro a noção de que as mulheres são sujeitos de direito e não só objetos de reprodução”, afirma Garcia também relaciona este momento com todo o movimento que a maré verde realiza na América Latina e Caribe nos últimos anos. “Isso está acontecendo no Sul e no Norte e agora está passando na América Central. Beatriz pede justiça e esperança”, aponta.

História de Beatriz

Beatriz se tornou mãe aos 21 anos. De uma zona rural, a jovem vivia em extrema pobreza. A primeira gravidez foi de alto risco, devido à anemia grave, artrite reumatoide, hipertensão arterial, pré-eclâmpsia e lúpus, agravados com nefropatia lúpica. O bebê nasceu prematuro e de cesárea. Beatriz só pode conhecer o filho após 38 dias de internação.

Quando o filho tinha apenas 9 meses, Beatriz engravidou novamente. Naquele momento, o corpo da jovem era menos capaz de suportar e levar a gravidez até o fim. Além disso, desde o início, os médicos diagnosticaram que o feto tinha malformações e que não havia chance de vida após o nascimento. A equipe médica concordou ser necessário interromper a gravidez, porque todos os dias o estado de saúde de Beatriz, já prejudicada pela primeira gravidez, se agravava.

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Vigília lembra a história de Beatriz na Praça da Saúde, na capital El Salvador | Crédito: Organizações colaboradoras do Caso Beatriz.

Em 2013, a história de Beatriz chocou e chamou a atenção de pessoas, organizações, mídia, sociedades médicas, formadores de opinião e tomadores de decisão em diferentes países e regiões do mundo, ao evidenciar a situação vivenciada por mulheres salvadorenhas. A recusa do Estado em tornar as leis relacionadas ao aborto mais flexíveis e falta de vontade política e ação imediata para evitar efeitos diretos sobre Beatriz, desencadeou pressões sociais nacionais e internacionais.

Apesar dos pareceres médicos que desde o início estabeleceram a interrupção gravidez como procedimento imediato para salvaguardar a vida de Beatriz, da demanda social e das organizações sociais, e do monitoramento dos organismos de direitos humanos, o Estado salvadorenho recusou-se a autorizar o aborto. Beatriz foi forçada a continuar com a gravidez inviável por quase mais 3 meses, à custa da perda de saúde.

Após a intervenção da Corte IDH, o Estado salvadorenho foi obrigado a realizar o procedimento de interrupção da gravidez em 3 de junho de 2013. Sete dias depois, Beatriz recebeu alta, conforme solicitado. Beatriz, a mulher que revelou ao mundo os graves impactos da criminalização absoluta do aborto em El Salvador, morreu em 8 de outubro 2017. O estado de saúde agravado, as doenças que ela sofria fizeram com que as consequências de um acidente de trânsito se agravassem.

Direitos reprodutivos em El Salvador

El Salvador tem uma das legislações mais restritivas em relação ao aborto em todo o mundo. Em 1997, o Código Penal do país foi reformado, estabelecendo a proibição absoluta da interrupção da gravidez. Desde aquela data, organizações denunciam a perseguição de mulheres que sofrem uma emergência de saúde durante a gravidez. 

Desde 2009, a Associação Cidadã pela Descriminalização do Aborto, em parceria com organizações nacionais e internacionais, identificou 65 mulheres que foram processadas por aborto e por homicídio qualificado, com sentenças de até 40 anos da prisão. Todas eram denúncias do sistema público de saúde. Um dos casos é de Lesli, jovem de 21 anos, condenada a 50 anos de prisão após sofrer um aborto espontâneo

As organizações também denunciam que a lei que proíbe o aborto em El Salvador, deixou os profissionais de saúde em situação de insegurança jurídica, por não poder oferecer o tratamento médico indicado, inclusive em casos graves de gravidez que representem risco iminente à saúde e à vida das mulheres.

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A história e luta de Beatriz foi lembrada durante o 8 de março de 2023 em El Salvador | Crédito: Organizações colaboradoras do Caso Beatriz.

Em 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou El Salvador pelo Caso Manuela e outras vs. El Salvador, em que julgava situações de direitos reprodutivos. “A Corte reconheceu que, uma vez que a lei que penaliza o aborto absolutamente, mulheres que sofrem abortos espontâneos e outras emergências obstétricas foram criminalizadas”, explica Morena Herrera, presidenta da Associação Cidadã pela Descriminalização do Aborto.

Naquela ocasião, a Corte IDH determinou que o Estado de El Salvador é responsável pelas violações da liberdade pessoal, das garantias de processos judiciais com igualdade perante a lei, direito à vida, à integridade pessoal, à vida privada, e à saúde.

Relatório de Mérito da CIDH no caso de Beatriz

Em janeiro de 2022, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresentou o caso de Beatriz à Corte IDH, através do Relatório de Mérito. No documento, a CIDH considerou que o resultado da legislação de El Salvador e seu impacto nas tentativas de Beatriz de ter acesso à interrupção de sua gravidez, fez com que a gravidez progredisse significativamente, representando um risco permanente que afetou fortemente seus direitos, constituindo violações dos direitos à vida, integridade física, privacidade e saúde, tanto física quanto mental.

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No dia 21, ativistas fizeram uma vigília em apoio ao caso Beatriz em frente a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa Rica | Crédito: Organizações colaboradoras do Caso Beatriz.

A CIDH também considerou que a dor e o sofrimento que Beatriz passou desde o momento em que solicitou a interrupção da gravidez e mesmo após o nascimento e a morte constituiu um tratamento cruel, desumano e degradante. Ainda, que o Estado não ofereceu um recurso eficaz à Beatriz e violou o seu direito de tomar uma decisão e o direito à integridade física das e dos familiares da jovem.

No Relatório de Mérito, a comissão recomendou ao Estado, entre outras medidas: reparar integralmente as violações declaradas; adotar medidas legislativas para estabelecer a possibilidade de interromper uma gravidez em situações de inviabilidade ou incompatibilidade da vida extrauterina do feto, bem como quando há riscos graves para a vida, a saúde e a integridade física da mãe; adotar todas as medidas necessárias, incluindo a formulação de políticas públicas, programas de treinamento, protocolos e estruturas de orientação para assegurar que o acesso à interrupção da gravidez, como consequência da adaptação legislativa seja eficaz na prática, e que não sejam gerados obstáculos que afetem sua implementação, respeitando as normas internacionais de direitos humanos.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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