Por Coletivo Colombianas/os em Floripa.

Desde o dia 28 de abril, milhares de pessoas, em todo o território colombiano, manifestam sua indignação contra o sistema econômico e político; cerca de 25 milhões de pessoas vivem na informalidade no mercado de trabalho. Uma parte do Comitê da greve solicitou a suspensão das manifestações, porém muitos jovens da primeira linha ainda ocupam as ruas em protesto.

Em 15 de abril, o presidente colombiano Ivan Duque propôs ao Congresso reformas baseadas em ideias neoliberais, que desencadearam uma explosão social. A proposta sugeria a arrecadação de muitos bilhões de dólares até 2031, por meio de impostos sobre serviços essenciais e mercadorias que impactariam principalmente nos grupos sociais não privilegiados. Além dessa reforma, foram propostas mudanças absurdas no sistema de educação e saúde do povo.

A explosão social é resultado de desconfortos acumulados, relacionados àquilo que prejudica o povo colombiano há décadas, e chega como uma manifestação consciente e pacífica por parte da população que, simplesmente, não concorda com as propostas do mandatário (lembrando que as manifestações são um direito dentro do sistema que se faz chamar “democrático”). Já a reação do governo, apoiado pela polícia e pelo Escuadrón Móvil Anti Distúrbios (ESMAD), foi totalmente genocida, gerando uma quantidade alarmante de corpos violentados, mortos e abusados nas ruas. O abuso de gênero por parte da polícia tem se constituído como estratégia para afastar as/os manifestantes.

Foto: Hector Hernandez.

A violência de gênero como estratégia

Para ninguém é segredo que o sistema patriarcal na Colômbia faz parte do estilo de vida do país e das injustiças sociais a que colombianas/os estão submetidas diariamente. Não está distante do que vivemos aqui no Brasil. Sabemos que esse sistema, que apoia os comportamentos machistas e retrógrados, gera mortes, desaparecimentos, violências físicas, violências psicológicas e um alto índice de abuso sexual – agressões que são indiferentes para os Estados de direita, neoliberais.

Em dois meses de greve Nacional, a situação parece piorar e entrar em temas mais delicados. Um desses temas são os abusos sexuais que as mulheres estão vivenciando no meio dos protestos. As violências de gênero praticadas por instituições do Estado são de muita dor. A organização Temblores tem divulgado cifras impactantes. Até o dia 16 de junho, foram registradas 28 vítimas de violência sexual praticada por parte da força pública; as cifras podem ser ainda maiores. Esses casos envolvem toques forçados nas partes íntimas, desnudamento e abuso.

Esses números não podem ficar só como estatísticas, pois estamos falando de direitos humanos e de mulheres que representam todas as colombianas e mulheres do mundo. Estamos falando de um sistema machista que pode ser inspiração para outros governos do mundo que seguem ideais neoliberais.

Os fatos precisam ser denunciados pelo mundo inteiro, porque assim como o governo insiste em punir quem quebra um vidro, as mulheres insistimos em punir e não deixar passar as violências contra os nossos corpos e o nosso bem-estar psicológico.

Entre os casos documentados, está a história de uma menor de idade (17 anos) que foi encontrada sem vida (causa suicídio), na cidade de Popayán, logo após ter apresentado denúncias contra agentes do ESMAD que abusaram sexualmente dela durante a detenção.

Outro episódio alarmante foi de uma jovem de 18 anos ameaçada pela polícia. Por meio de vídeos e áudios, foram registrados momentos em que as forças de segurança ameaçam a jovem de abuso sexual caso ela não fosse para a delegacia com eles. E, assim como essas duas situações, provavelmente acontecem casos similares que não são denunciados.

O governo ignora estes casos e se empenha em classificar manifestantes de vândalos/as, em agredir física e moralmente quem não concorda com as suas ideias, em castigar quem quebra um vidro, mas não quem invade os corpos. No passar deste ano, 16 mortes de mulheres trans foram registradas, mas não investigadas.

Casos como esses confirmam o pensamento retrógrado do sistema colombiano no que diz respeito à violência de gênero. É por isso que temos mais um motivo para lutar e protestar para exigir mudanças no sistema, mudanças radicais contrárias à desigualdade e à opressão. Mudanças que abracem a importância das mulheres na sociedade.

É indispensável que, dentro dos movimentos sociais, as mulheres e coletivos feministas participem ativamente e que essa participação seja respeitada. Por isso, consideramos importante trazer um pouco de informação sobre esses movimentos que estão atrás de denunciar e punir as violências e desigualdades de gênero.

O Coletivo feminista Siete Polas informou, nas suas redes sociais, que cerca de 173 organizações e mais de 500 mulheres se juntaram para propor, entre outras ações:

  • Uma reforma de segurança que garantisse vida digna e livre do medo;
  • Justiça contra abusos sexuais e morais;
  • Um plano emergencial para enfrentar o índice de pobreza, incluindo as mulheres que estão assumindo sua carga de trabalho não remunerado e enfrentam índices alarmantes de violência de gênero;
  • Remuneração justa e renda básica em igualdade;
  • Sistema Nacional de cuidados e direitos que reestruture a divisão sexual do trabalho.

As organizações dos direitos humanos conformam que todas as denuncias sexuais estão inclusas na investigação desenvolvida pela Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH). Lembrando que, no final do mês de maio, o governo colombiano negou a visita da Comissão ao país. Depois da polêmica gerada pela resposta do governo, a CIDH conseguiu entrar na Colômbia e se reunir, em 7 de junho, com a vice-presidente e chanceler colombiana, Marta Lucía Ramírez, além de outras autoridades.

“Tivemos uma longa e produtiva reunião, com muitas informações, muitas perguntas por parte da comissão”, declarou a presidente da CIDH, Antonia Urrejola, para CNN Brasil. Igualmente afirmou para os meios de comunicação que as atividades na visita ao país foram satisfatórias, mas os detalhes ficaram para a Comissão.

A CIDH também se reuniu com os grevistas, que apresentaram cinco demandas centrais:
1) que o governo cumpra com os pré-acordos e garantias do direito à manifestação pacífica;
2) que a comissão intervenha imediatamente para impedir a brutalidade policial;
3) criação de uma regulamentação sobre o direito ao protesto na Colômbia;
4) formação de uma comissão independente de investigação das denúncias;
5) respeito ao Acordo de Paz, assinado em 2016.

Depois dessa visita, a violência continua e outros tipos de agressões se fazem evidentes e são aprovadas pelo desgoverno. Igualmente, outros tipos de ações políticas por parte dos mandatários, como a reforma policial, continuam criando desconfortos para o povo.

Organizações ficam à espera ou tentando achar soluções. O povo colombiano se apoia em diferentes grupos e sindicatos, como trabalhadores rurais, caminhoneiros, educadores e indígenas que têm se unido à greve. Alguns prefeitos e governadores também apoiam a causa. E, assim como temos a participação e mobilização dos diversos grupos de resistência feminina, esta grande greve tem movimentado a energia das mães dos manifestantes.

Mães na vanguarda, panelas comunitárias na retaguarda

Durante muitos anos, as mães colombianas, com o coração na mão, pediam para que seus filhos não protestassem contra o governo, com medo dos possíveis resultados violentos de sua manifestação. Quando isso acontecia, ficavam em casa angustiadas, rezando para que eles voltassem com vida. 

Foto: Laura Zamudio Serrano.

A medida proposta pelo governo atual, sem consulta pública, sugeria a cobrança de impostos sobre a cesta básica e serviços essenciais como água, luz e internet. Caiu como uma bomba em meio à crise sanitária gerada pela Covid-19, o aumento significativo do desemprego e um cenário em que seis milhões de colombianas/os ingressaram no mapa da fome. 

A grande preocupação nacional muda, hoje, a visão das mães. Enquanto os jovens resistem, elas também saem às ruas e assumem a vanguarda dos manifestos. Com escudos nas mãos, protegem os direitos não apenas de seus filhos, que têm sido chamados de vândalos, criminosos e dissidentes das FARC, mas de todas/os colombianas/os. Enquanto a ultradireita neoliberal delira e conspira, fazendo uso indevido das instituições que deveriam proteger o povo, e não massacrar, as grandes mulheres geradoras de vida nos defendem.  

Que situação adversa impulsiona mães, principais responsáveis pelos cuidados de suas famílias, à frente de batalha? Quão crítica é a situação econômica, social, cultural e política em nosso país para que essas mulheres se armem de coragem e de escudos improvisados para enfrentar a maquinaria repressiva do Estado, representada pelo Esmad (Esquadrão Móvel Anti Distúrbios) e, até, pelo exército?

Medo e desespero pela segurança dos seus filhos (e os filhos de outras mães) mobilizam um grupo de mulheres que tomam frente ao avanço das forças de segurança pública, apoiando os direitos para um futuro melhor.

Muitas dessas mulheres são mães solo que trabalham até 16 horas por dia para pagar aluguel, alimentação e a educação dos filhos. Segundo o DANE (Departamento Administrativo Nacional de Estatística), as mulheres entre 24 e 54 anos foram as mais afetadas pelo desemprego. Para cada homem que perdeu o emprego, quatro mulheres ficaram sem trabalho. Além disso, no período de pandemia, elas acumulam cada vez mais tarefas não remuneradas. 

Nos protestos, elas se posicionam logo atrás dos jovens, na linha de frente. Desse lugar, ficam atentas, principalmente, a crianças, idosos e outras mulheres, indicando saídas de emergência quando os conflitos entre os agentes de segurança e manifestantes se tornam mais tensos. Elas também são mediadoras: apelam à regra universal de que todos têm mãe, para que os policiais pensem duas vezes antes de atacá-las.

A mãe de um jovem, que não quer ser identificada, comentou sobre um dos confrontos com a polícia em Buga, no Valle del Cauca. “Convencemos os meninos a não atirarem pedras, lembrando que isso poderia ser usado contra eles e que resistência não é sinônimo de violência. Também exigimos do governo e das autoridades garantias para protestar pacificamente”, relatou.

Claudia Ruiz, de 32 anos, mãe de um manifestante de 16 anos da cidade San Juan de Pasto, no Sul do país, acredita que seu apoio é uma forma de dar respaldo moral e estender o cuidado materno ao espaço público. “Hoje a maternidade virou algo coletivo, cuidamos para que todas/os cheguem às suas casas bem”, afirma. “Essa união tem permitido enxergar outra realidade social: a injustiça do sistema que oprime, explora e anula as mães, particularmente as donas de casa. Também é por isso que marchamos, porque hoje é relevante centrar os olhos em quem cuida e reivindicar direitos para todas nós”, defende. 

“Hoje marcho com meu filho porque trabalhei muito para sustentá-lo. Vou cuidar da vida dele e de todos os filhos que protestam por um futuro melhor”, reforça Johana, na capital colombiana, Bogotá.

Com bloqueios de caminhoneiros, indígenas e agricultores nas principais estradas no país, o desabastecimento é generalizado em cidades como Cali, Pasto, Popayán, entre outras. Para que não falte alimento nas cidades, os próprios grevistas estão organizando mercados com produtos de agricultura familiar. Por conta disso, forçadamente, os colombianos de classes média e baixa acabaram reduzindo o consumo de alimentos muito processados. As famosas mingas indígenas, coletivos que representam as diversas nações indígenas do país, atores importantes em manifestações recentes, de 2019 e 2020, se encarregam de fazer música, fogo e panelões para as pessoas que se concentram nas praças, nos parques e nas ruas.

Em dois meses de manifestações e pressão popular, a reforma tributária foi derrubada, junto a outra reforma apresentada pelo governo, na saúde. Também foi cancelada a Copa América em território nacional, outra reivindicação dos manifestantes, que gritavam: “Sem paz, sem futebol”. O sentimento de coletividade entre as gerações mais novas traz ventos de esperança. Mas as reações com violência do governo continuam.

Desde as zonas rurais, indígenas e agricultores ensinam de novo o sentido de mutirão, com as palavras de ordem: “Estamos juntos”. A Colômbia pode ignorá-los, mas eles não se esquecem dos colombianos. De todos nós.  

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