Enquanto famílias se preparavam para as festas de fim de ano nos meses de novembro e dezembro do ano passado, três jovens foram denunciadas à polícia pela prática de autoaborto durante o atendimento médico em Unidades de Pronto Atendimento de Rio Preto e Birigui, municípios do interior de São Paulo.
Procurada pelo Portal Catarinas, a assessoria de imprensa da prefeitura de Rio Preto informou que “em casos de tentativa de aborto provocado há registro em boletim de ocorrência”. No entanto, em resposta a um pedido de esclarecimento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a Secretaria Municipal de Saúde respondeu que não há qualquer orientação que estabeleça a denúncia como prática institucional, uma vez que o sigilo é dever médico.
Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, recomendou à prefeitura de Rio Preto que o Código de Ética Médica e a lei sejam respeitados nos serviços de saúde municipais. Nos casos em que a porta da unidade de saúde é entrada para o sistema penal, a confissão de um crime – um dos elementos mais importantes para a abertura de uma ação penal – é obtida pela violação do direito ao sigilo médico.
A pedido do núcleo, em 8 de março, o Tribunal de Justiça de São Paulo em decisão inédita, reconheceu a ilegalidade das provas obtidas por meio da quebra de sigilo por agentes de saúde e aceitou o arquivamento de uma ação criminal contra uma jovem de 21 anos que foi acusada de ter praticado o aborto.
Ana Rita é uma das responsáveis pelo pedido que integra um conjunto de 30 habeas corpus para arquivar ações penais contra acusadas por esse crime. Cinco habeas corpus foram aceitos, um deles por ilegalidade das provas produzidas durante atendimento médico, 24 foram negados e um ainda aguarda análise do Tribunal.
Há outras decisões que estabeleceram jurisprudência sobre a nulidade de ações penais constituídas a partir de provas obtidas pela quebra de sigilo. Essa, no entanto, é primeira no TJSP. “É uma jurisprudência e precedente importante. Nossa perspectiva é que esse entendimento passe a ser adotado por outras câmaras criminais e juízes de primeiro grau, que reconheçam de fato que as provas colhidas a partir dessas violações são ilegais”, analisa a defensora.
O argumento pauta-se na inconstitucionalidade da criminalização e falta de justa causa para a abertura de ações penais. A negativa à maior parte dos pedidos se deu pelo entendimento de alguns juízes de que as análises propostas no pedido deveriam ser feitas no mérito do processo, e não no habeas corpus que, em tese, discute a legalidade, conforme explicou Ana Rita.
Os pedidos envolvem todos os processos identificados no estado entre 2011 e 2016, em que as rés respondem pelo crime previsto no artigo 124 do Código Penal com pena de um a três anos de detenção: provocar aborto em si mesma ou consentir que outra pessoa o provoque. 24 profissionais foram denunciados por quebra de sigilo aos conselhos de classe, entre eles 11 enfermeiras/os, 11 médicas/os e três assistentes sociais.
De acordo com Ana Rita, a denúncia criminal contra eles precisa partir das vítimas da violação do sigilo. A Constituição Federal afirma em seu artigo 5º que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. O sigilo médico é tematizado no mesmo artigo, que garante, entre outras coisas, a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas. Além de processo criminal, a violação do segredo médico pode levar à ação indenizatória de danos morais e materiais e processo ético-profissional no conselho de classe.
Pesquisa realizada pelo Portal Catarinas e GHS Brasil em tribunais do país revelou que São Paulo é o estado com o maior número de processos por aborto: ao todo foram 250 processos por aborto provocado pela gestante entre 2015 e 2017. Desde 2017, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) abriu 10 sindicâncias para apurar quebra de sigilo médico envolvendo denúncias de mulheres pela prática.
“O Código de Ética Médica é taxativo: é vedado ao médico revelar fato que tenha conhecimento no exercício de sua profissão. No momento em que o médico revela que uma paciente fez o aborto, ele infringe o Código Civil, o Código Penal e o Código de Ética Médica, e cabe à pessoa prejudicada mover ação civil de reparação de danos, ação criminal e denúncia ao Conselho Regional”, colocou o médico Antonio Pereira Filho, Conselheiro e Coordenador do Departamento de Comunicação do Cresmesp.
Fragilidade das provas
Conforme Ana Rita, a atuação da defensoria busca fomentar o debate sobre a ilegalidade da abertura de ação penal sem que haja materialidade e indício de autoria – fundamentais para a caracterização da justa causa.
“Há elementos importantes a considerar: houve aborto e foi provocado? As questões seguintes: existe indício de autoria, foi essa pessoa que o praticou? Quando o promotor denuncia, o juiz precisa avaliar, tem que haver justa causa para instalar o processo penal. Muitas vezes essas informações relevantes e essenciais para justificar a instalação do processo são deixadas de lado”, apontou Ana Rita.
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O aborto é um crime de ação penal pública incondicionada, ou seja, não há necessidade de representação da vítima, basta que a polícia ou Ministério Público sejam acionados para a abertura do inquérito. O crime integra o capítulo do Código Penal “dos crimes contra vida”, e como no caso de homicídio, é julgado no plenário do Tribunal do Júri. Caso não haja elementos que comprovem a acusação, o juiz pode determinar a absolvição sumária da ré. Quando ocorre a condenação pelo Tribunal do Júri, a detenção resulta em regime aberto, normalmente convertida em prestação de serviço à comunidade.
Nos processos em que Ana Rita atuou, as acusadas não foram a júri popular porque receberam o benefício da suspensão condicional, oferecido pela promotoria a quem não tem antecedentes criminais e responde por crimes cuja pena mínima não ultrapasse um ano, como prevê a Lei nº 9.099/95. Em geral as acusadas do crime de autoaborto sem antecedentes criminais aceitam o benefício, conforme estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro em processos criminais no estado, publicado em 2017.
O estudo “Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a partir dos atores do sistema de justiça”, realizada pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Poder Judiciário e Sociedade (UERJ) e IPAS Brasil, divulgada em 2012, já havia constatado a realidade. “É verdade que em geral o Ministério Público cumpre um papel importante propondo a suspensão condicional do processo, mas até chegar a este ponto, a mulher passa por uma verdadeira via crucis”, diz trecho dessa pesquisa.
Sob condições como comparecimento periódico à justiça, pagamento de multas, prestação de serviço à comunidade e restrições como não frequentar bares e não alterar o endereço sem autorização, o benefício da suspensão condicional interrompe o processamento da ação e a produção de provas. O processo pode ser reaberto caso a mulher não cumpra o que foi determinado no período de até dois anos. Com o cumprimento das condições, a beneficiária volta a ser ré primária.
“A suspensão é um benefício interessante. No entanto, para haver suspensão condicional, assim como para haver abertura da ação, é preciso que haja materialidade e indício de autoria nos autos. Há casos em que não existe sequer a prova que a mulher estava grávida. Ela buscou o hospital com sangramento e o feto nunca foi encontrado. Ouviu-se falar que ela abortou e ocorreu a suspensão”, pondera a defensora.
Sob a espada da justiça
Na opinião da defensora, o fato de que a mulher irá responder a ação criminal já impõe peso moral e social, mesmo que a culpa não seja provada. A notícia sobre o possível crime e a abertura de processo criminal, principalmente em cidades pequenas, leva a consequências como a perda de empregos e até a mudança de endereço.
“Num dos casos, a mulher pediu na delegacia para que ninguém do trabalho fosse comunicado. A primeira atitude do delegado foi chamar o chefe dela para ser ouvido. Ela era secretária na prefeitura. Não havia relevância para a oitiva da pessoa. Não se tem ideia do quanto isso interferiu na rotina daquela mulher”, relata.
Para a advogada Ana Paula Sciammarella, integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – Cladem, além do caráter moralista que prevê a impossibilidade de frequentar locais sociais à noite, a suspensão é um fardo para mulheres mesmo quando exige somente a assinatura mensal do termo de compromisso.
“Tecnicamente falando não é pena. Mas é como se tivessem com a espada da justiça na cabeça e dissessem ‘se você sair da linha te prendo’. Há um caso em que a mulher teve gêmeos e não conseguiu mais cumprir a assinatura mensal. Havia mudado do Rio de Janeiro para São Gonçalo, que é bem distante. Tinha dificuldade de se deslocar e de deixar os filhos, precisou justificar para não ser presa”, conta a advogada, uma das responsáveis pela pesquisa realizada pelo IPAS.
Como os processos por autoaborto dificilmente chegam aos tribunais superiores, porque em regra culminam em suspensão condicional, a maioria acaba sem julgamento sobre a constitucionalidade da criminalização e ilegalidade das provas obtidas. Na primeira vez que uma turma do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou habeas corpus para a soltura de funcionários de uma clínica clandestina, o pedido foi acatado com o argumento de que a criminalização da prática até os três primeiros meses de gestação é inconstitucional.
De acordo com o voto do ministro Luís Roberto Barroso, que alcançou a maioria, além de não estarem presentes no caso os requisitos que autorizam a prisão cautelar, a criminalização do aborto é incompatível com direitos fundamentais, entre eles os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e o princípio da igualdade.
O julgamento em 2016 pela primeira turma do STF não altera o entendimento da corte sobre o tema, porém, abre precedentes para a descriminalização da prática. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta à Suprema Corte, pauta-se nessa decisão ao considerar a criminalização inconstitucional e pedir a garantia do aborto até os três meses de gestação como direito a ser assegurado à mulher.
Esta publicação faz parte da série “Do pronto socorro ao sistema penal” com textos inéditos a cada dia. Acompanhe.
Capítulo 2: Quando o hospital se transforma em cárcere: relato de uma jovem algemada ao leito.
Capítulo 3: A justificativa do hospital que denunciou uma paciente por aborto.