A prisão de Elisa* por aborto no Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, em fevereiro de 2017, suscitou manifestações dos conselhos de classe de Enfermagem e de Medicina. Por meio da assessoria de imprensa, o hospital informou a abertura de sindicância para investigar a quebra de sigilo. “O Hospital Evangélico de Curitiba considera a quebra de sigilo profissional uma atitude condenável. Já foi aberta uma sindicância para apurar o fato e, caso seja confirmado, imediatamente serão tomadas as providências cabíveis”, comunicou. No entanto, o hospital, que é referência no atendimento a vítimas de violência sexual e oferece o serviço de aborto legal, reformulou sua posição inicial ao informar, neste ano, que o processo administrativo interno constatou que “não houve irregularidade alguma por parte de qualquer funcionário”, em atendimento à lei 10.778 de 2003 que trata da notificação obrigatória em casos de violência à mulher. 

Foi realizado um Processo Administrativo Interno concluindo-se que, não houve irregularidade alguma por parte de qualquer funcionário do Hospital (HUEC) e que, seguimos, rigorosamente, o protocolo do Ministério da Saúde (decreto 5.099 de 03/06/2004, que regulamenta lei 10.778 de 24/11/2003), que determina a notificação obrigatória, nestes casos. A paciente deu entrada no HUEC já em processo de expulsão fetal e afirmando, ela mesma, ter ingerido medicamento para interromper a gestação”, informou em nota enviada por e-mail ao Catarinas.

O equívoco da justificativa enviada pelo hospital se dá em três pontos fundamentais: a lei 10.778/2003 obriga a notificação compulsória para fins epidemiológicos nos casos de violência contra a mulher; detalha que a notificação deve ser feita em formulário ao Ministério da Saúde (e não à polícia), e afirma o caráter sigiloso do processo. “A notificação compulsória dos casos de violência de que trata esta Lei tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido”, diz o artigo terceiro. Conforme expressa o texto, esse tipo de registro no Sistema Único de Saúde (SUS) é considerado fundamental para o desenvolvimento de políticas e atuações governamentais.

“É uma leitura maliciosa, mais do que equivocada. A lei trata dos casos de violência doméstica e não tem nenhum outro propósito que não seja defender mulheres e pensar medidas mais eficazes de proteção. Não há nada que permite nem remotamente sugerir que essa lei possa ensejar informação à polícia ou ao sistema de justiça dos casos de abortamento provocado”, pontuou a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, sobre o posicionamento do hospital.

A procuradora entende que esse tipo de prática só prospera devido ao ambiente de polarização religiosa que tem prejudicado também o acesso ao aborto legal. “O grande problema é que as instituições estão fortemente atravessadas por essa concepção religiosa”.

A lei define como violência contra a mulher “ação ou conduta, baseada no gênero, inclusive decorrente de discriminação ou desigualdade étnica, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado”. O texto é específico ao situar a violência também na esfera institucional: “Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica e que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra” (artigo 1, parágrafo 1º).

No artigo 2º, parágrafo 3, estabelece que para seu cumprimento devem ser observados convenções e acordos internacionais assinados pelo Brasil, como a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em Pequim, 1995. Contraditoriamente, a Conferência é reconhecida por considerar o aborto inseguro um grave problema de saúde pública e recomendar aos países que revejam suas legislações restritivas. “Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de boa qualidade para o tratamento de complicações derivadas de abortos”, diz parte do texto da conferência.

Posição dos conselhos
A posição do hospital compactua com a manifestação, à época, do corregedor-geral do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), Maurício Marcondes Ribas. Ele, porém, usou outra justificativa para defender a prática de denúncia. Segundo Ribas, os profissionais seguiram o protocolo utilizado em casos de violência contra o “concepto” ou de “violência presumida” – termo substituído pela atual lei de violência sexual para classificar estupro de vulneráveis. “Podemos fazer uma analogia com uma suspeita de agressão em paciente pediátrico, caso em que avisamos o conselho tutelar. Toda situação de violência exige notificação. Não houve quebra de sigilo, porque o protocolo de violência presumida foi feito de acordo com os trâmites legais. Esse tipo de notificação está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no programa de atendimento às vítimas de violência sexual do MS”, afirmou o corregedor.

Já o Conselho Regional de Enfermagem (Coren/PR), informado de que a comunicação havia partido de um profissional da categoria, posicionou-se contra a violação do sigilo e chegou a pedir oficialmente à delegacia o nome do profissional que fizera a denúncia. Até o fechamento desta investigação, porém, não havia recebido resposta. “O Coren espera que os profissionais de enfermagem acolham as mulheres em suas necessidades com um atendimento digno e humanizado. Criminalizá-las não compete ao profissional de saúde”, afirmou a assessora executiva Maria Goretti Lopes.

A advogada Sandra Bazzo, consultora da Comissão de Violência Sexual e Interrupção da Gestação da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), argumenta que a afirmação do conselheiro foi equivocada. “Não estamos diante de violação desse feto. Os procedimentos de violência contra menores são voltados somente aos nascidos vivos”, defendeu. De acordo com o o artigo 2º do ECA “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. “O ECA fala em pessoa, logo, nascida viva. Segundo o Código Civil, em seu artigo 2º, a personalidade civil da pessoa começa no nascimento com vida”, explicou Sandra.

Conforme o artigo 66 da Lei de Contravenções Penais é dever legal do profissional de saúde comunicar as autoridades crimes de ação pública incondicionada – que não requerem representação da vítima – como em casos de violência contra menor de idade, exceto quando a comunicação expor o paciente a processo criminal. Segundo a advogada, o segredo médico só pode ser relevado quando a paciente é a vítima ou em caso de dano à coletividade, nunca para criminalizá-la.

“O médico não pode comunicar um aborto à autoridade policial ou judicial, em razão de estar diante de uma situação típica de segredo médico. O segredo médico pertence ao paciente. O médico é apenas seu depositário e só poderá revelá-lo em situações especiais: dever legal, justa causa ou autorização expressa do paciente. Há que se considerar primeiro que o aborto não representa dano à coletividade. Segundo, quando a paciente chega em processo de abortamento, é uma emergência médica. Não se trata mais de procedimento de aborto, mas de uma sequela de situação médica posterior”.

O direito ao sigilo profissional é tematizado no artigo 5º da Constituição Federal que garante, entre outros, a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas. O conselheiro Antonio Pereira Filho, coordenador do Departamento de Comunicação do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), explica que o sigilo médico envolve os códigos Civil, Penal e de Ética Médica. A quebra de sigilo no exercício da profissão é crime previsto no artigo 154 do Código Penal (dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos) e tem como pena detenção de seis meses a dois anos ou pagamento de multa. Na maioria dos casos ocorre o pagamento de multa, porque trata-se de um crime de menor relevância social, mas o médico perde a primariedade. “O Código de Ética Médica é taxativo: é vedado ao médico revelar fato que tenha conhecimento no exercício de sua profissão. Cabe à pessoa prejudicada mover ação civil de reparação de danos, ação criminal frente ao crime que foi cometido e denúncia ao CRM por infração ao Código de Ética Médica”, destaca o conselheiro.

A prática do aborto é considerada crime no Brasil, mas o atendimento humanizado e sigiloso é um direito. Mulheres que chegam ao hospital público com complicações de uma interrupção voluntária ou não da gravidez devem ter garantido esse atendimento, conforme prevê a Norma Técnica do Ministério da Saúde (MS) “Atenção Humanizada ao Abortamento”. De acordo com Débora Duprat, o Código de Ética Médica tem status de Lei Federal e todas as profissionais que tiverem acesso à informação no sistema de saúde devem se comprometer com o sigilo. “Não há possibilidade alguma de permitir a quebra do sigilo médico para dar ensejo a um procedimento criminal contra um paciente. Isso só é possível quando para auxiliar a paciente ou outra pessoa, ou em grave situação de saúde pública, mas jamais para incriminá-la. O hospital não pode fornecer dados, a polícia não pode buscar, o ministério público e o juiz não podem requisitar prontuário médico”, esclareceu a procuradora.

Prontuário médico
Em 16 de março deste ano a juíza Mychelle Pacheco Cintra Stadler, da 1ª Vara Privativa do Tribunal do Júri da Região Metropolitana da Comarca de Curitiba, enviou ofício ao Hospital Evangélico para que este encaminhasse o prontuário médico da investigada no prazo de dez dias, e ao Instituto Médico Legal para o envio do laudo pericial. Por meio do acesso ao Processo Eletrônico do Judiciário do Paraná não foi possível saber se o hospital enviou o documento. Por meio de suas assessorias de imprensa, o Ministério Público do Paraná e a Polícia Civil informaram que não vão se manifestar sobre o caso. A assessoria de imprensa do Ministério da Saúde comunicou que se posicionaria por meio de uma nota oficial, o que não ocorreu.

O que leva um profissional a denunciar?
Quando um profissional de saúde denúncia uma paciente que buscou atendimento emergencial para tratar de um pós-abortamento o que está em jogo não é somente o direito à intimidade, mas fundamentalmente a vida da mulher.

“Há um consenso internacional que garante que a intimidade precisa ser preservada senão as mulheres deixam de procurar o serviço e de se tratar. Isso tem efeitos adversos à saúde. Se estou sabendo que vou chegar ao serviço de saúde e serei estigmatizada não vou mais lá. É o círculo vicioso do abortamento inseguro”, afirma a médica Leila Adesse, Integrante da Rede Inroads – International Network for the Reduction of Abortion Discrimination and Stigma (Rede Internacional para a Redução da Discriminação e do Estigma do Aborto).

Apesar do autoaborto ser crime previsto no artigo 124 do Código Penal de 1940, não existe obrigatoriedade de denunciar mulheres à polícia durante atendimento médico. De acordo com a pesquisadora, ao denunciar uma paciente com a justificativa de cumprir a lei, o profissional de saúde está, na prática, fazendo o contrário.

“Não estamos incentivando que o profissional de saúde não obedeça às leis, a gente quer exatamente que sigam protocolos jurídicos. Eu não posso abrir meu prontuário, fazê-lo é um grande equívoco. O profissional precisa cruzar princípios legais e éticos da profissão: é obrigação manter confidencialidade e segredo de toda informação e não revela-la nem direta ou indiretamente. Sigilo é princípio, prática fundamental do cuidado com a saúde. O médico faz um juramento é o sigilo que define o seu profissionalismo”, afirma Leila.

Acesse o mapa colaborativo da criminalização das mulheres por aborto

Em sua pesquisa de doutorado Aborto e estigma: Um estudo sobre a assistência às mulheres em situação de abortamento no Sistema Único de Saúde”, a médica entrevistou profissionais de algumas maternidades que revelaram também terem sido alvos de suspeitas quando buscaram socorro médico para abortamento espontâneo. “Elas também foram estigmatizadas. Falavam-lhes ‘você como enfermeira tem acesso à medicação, deve ter tomado alguma coisa’. Há uma pressão punitiva, policialesca”.

Geralmente a denúncia não vem desacompanhada, é seguida de um ritual de julgamento, humilhação verbal e negligência no atendimento. “Há um enquadramento da mulher que aborta pelo profissional de saúde. É tratada como criminosa, assassina, promíscua. Perguntam ‘por que você fez isso?’. A mulher é questionada e começa a receber pressão psicológica muito forte. Mesmo que reaja, ela conta para outras mulheres que vão temer voltar àquele lugar. De novo, elas fogem do serviço de saúde”, argumentou Leila.

A pesquisadora identificou que a estigmatização da paciente não se restringe à atuação do médico, ocorre desde a porta de entrada do hospital. “As mulheres escondem como forma de prevenir essa pressão, mas quando profissionais encontram medicamento na vagina delas aí ocorre uma reação forte, por se sentirem traídos. O médico não está para julgar quais causas a levaram a tomar decisão de interromper gravidez. Não cabe ao profissional de saúde ser julgador, nem religioso, nem juiz. Não cabe identificar se é pecado nem crime”.

Punição às mulheres que não cumprem estereótipo
O estudo do Ipas “Delatando a las mujeres: el deber de cada prestador/a de servicios de denunciar” apontou que mulheres e meninas são forçadas a escolher entre procurar atenção médica, o que muitas vezes leva ao encarceramento, ou evitar receber cuidados, o que poderia causar lesão permanente ou morte. Segundo o levantamento, o não cumprimento da confidencialidade pode ocorrer quando os profissionais de saúde desconhecem a legislação e pensam que têm o dever de denunciar. Em outros casos denunciam por convicção religiosa, ou moralidade ou simplesmente por acreditarem plenamente nas leis anti-aborto, mesmo que não tenham a obrigação legal de fazê-lo. Outra motivação é a necessidade de punir as “mulheres que não cumprem o rígido estereótipo de gênero”, que determina o comportamento da mulher como esposa e mãe.

“Antes os médicos denunciavam com a justificativa de que estavam se resguardando, tinham medo de serem criminalizados também. Hoje defendem que denunciam por uma justa causa em defesa da vida. Se o abortamento já aconteceu, é inócuo dizer que é para proteger outra vida, isso não é justificativa para quebrar a confidencialidade. Que vida estão protegendo? Não é a da mulher. Isso é falácia, o que tem é violação da confidencialidade médica”, afirma a advogada Ana Paula Sciammarella, integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem).

Para a advogada, que também é consultora do IPAS Brasil e atuou na pesquisa “Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a partir dos atores do sistema de justiça”, publicada em 2012, as denúncias nos hospitais partem de um senso de justiçamento, constituído a partir de uma visão moralista e religiosa. Ela lembra-se do caso de uma jovem que, denunciada em um hospital e sem poder pagar a fiança, ficou algemada ao leito durante três meses até que a Defensoria Pública, representando a acusada, conseguiu que ela respondesse ao processo em liberdade.

“É violência institucional e de gênero. Há relatos de mulheres que ficam sangrando no corredor e de outras algemadas em camas, escoltadas por policiais homens. Mulheres que sofrem aborto espontâneo também são hostilizadas mesmo nessas circunstâncias”, argumenta.

Em média, o DataSUS (banco de dados do Sistema Único de Saúde) registra por ano 200 mil procedimentos pós-abortamento como curetagem e esvaziamento do útero, sem contar outros ligados a complicações. Não é possível dizer quantos atendimentos resultam em denúncias por profissionais de saúde porque não há dados estatísticos. A pesquisa recente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro enfatizou que são criminalizadas as mulheres pobres, em sua maioria negras, que recorreram ao aborto medicamentoso de forma autônoma ou a procedimentos totalmente inseguros em clínicas ou em casa com a introdução de objetos perfurantes e sustâncias corrosivas. De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, 50% das mulheres que realizaram aborto e recorreram ao sistema de saúde foram internadas devido a complicações. “Parte significativa dessas internações poderia ter sido evitada se o aborto não fosse tratado como atividade clandestina e o acesso aos medicamentos seguros fosse garantido”, diz trecho do estudo.

*Nome fictício para proteger e resguardar a identidade da entrevistada.

Esta publicação faz parte da série Do pronto socorro ao sistema penal” com textos inéditos a cada dia. Acompanhe.

Capítulo 2: Quando o hospital se transforma em cárcere: relato de uma jovem algemada ao leito.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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